O arquiteto Alejandro Aravena propõe para a XV Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, em 2016, uma reflexão sobre a superação das dificuldades enfrentadas pelos aglomerados humanos nas bordas temáticas dos territórios urbanos ou antrópicos.
Desigualdade, sustentabilidade, tráfico, lixo, crime, poluição, comunidades vulneráveis, migração, segregação, desastres naturais, informalidade, periferias, moradia, qualidade de vida, compõe sistema que perdura nas cidades apesar de outros avanços, em especial o tecnológico e da informação.
A proposta da curadoria-geral é uma convocação ao testemunho.
Quais são, quem são e onde estão as narrativas que contém a dimensão espiritual do enfrentamento do adverso, onde “a escassez de meios intensifica o que é viável”?
Tal convocação tanto quer saber dos resultados como quer desvelar e irradiar os meios pelos quais transformou-se o ambiente construído.
Que humanidade está contida na matéria arquitetônica das batalhas que venceu?
Aravena conclama os Pavilhões Nacionais a compartilharem com o mundo quais são as lutas que cada cultura enfrenta pois elas tramam redes que tocam a todos.
Entendemos que este convite da curadoria-geral deva ser aceito pela representação brasileira.
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Encruzilhadas
A “Casa da Flor” é uma arquitetura onírica, pequena edificação unifamiliar erguida a partir do sonho do arquiteto-construtor-proprietário. É Bem Tombado Estadual do Rio de Janeiro, situada em São Pedro D’Aldeia, a 150 km da capital, e construída entre 1912 e 1985 por Gabriel Joaquim da Silva (1892-1985), filho de escravo com índia, trabalhador nas salinas da região que construiu casa com resíduos e materiais descartáveis e motivado por tal inspiração mística.
Esta construção, representativa de uma manifestação inconsciente do desejo por arquitetura, busca sensibilizar para uma reconexão mais humana do espaço construído, que pelo seu atavismo, ingenuidade e esforço ao longo do tempo, terminam por materializar a própria vida.
Deste modo, a diminuta casa vai além da compreensão ocidental e racional para a simbologia do espaço essencial, representado pela figura da Cabana Primitiva de Laugier, assim como a própria arquitetura do pavilhão brasileiro projetado por Henrique Mindlin, modernamente naif, alcança notas mais elevadas do que pode vir a ser a arquitetura além dos lugares centrais.
A “Casa do Jardim do Cristal”, 1958, é como passou a ser conhecida a casa projetada por Lina Bo Bardi (1914-1992) para Valéria Cirell em São Paulo, no Morumbi, primeira expressiva realização da arquiteta manifestando o que defendia ser o nacional-popular, em oposição às predominantes correntes da época, sensivelmente o modernismo hegemônico dos circuitos de debate e da produção arquitetônica na época, repetitiva na sua vanguarda.
Lina Bo Bardi vai interessar-se pelo homem simples e popular, pelo sertanejo, que no contexto da metrópole paulistana em formação e expansão, significava visão diletantemente ideológica e panfletária, mas é neste tempo, no âmago da burguesia local, que Lina gestava leituras mais profundas dos valores brasileiros, identificando signos da cultura negra e sentidos lentamente burilados por fricção e amálgama, por desejo de converter-se em outra coisa, em brasileiro.
A casa é maternal e também um universo que ao longo do tempo, e através de seus diferentes proprietários, foi conquistando intervenções e amores. A casa corporifica um sonho coletivo.
Nas palavras de Lina essa casa representa o que ela considerava "arquitetura pobre", não no sentido ético mas desprovida do maneirismo da vanguarda.
A condição marginal de ambas as construções contém valores que precisam ser “penetrados” para compreensão mais central dos rumos a serem tomados pelo ambiente construído brasileiro.
E isso nos remete a Helio Oiticica como contestador do espaço cartesiano e eurocêntrico, e que inspira a composição deste setor na expografia do pavilhão.
As casas de Gabriel e Lina dançam juntas numa encruzilhada. Semelhantes e distintas , moles, imprecisas, contudo amorosas e generosas na oferta de caminhos para uma felicidade possível, fulgurando dentro da percepção de crise e confusão da atual situação nacional.
O
Ecos
Aparentemente território exótico da arquitetura internacional, o Brasil oferece amplo espectro humano e cultural, onde as forças daquilo que era entendido como utopia americana podem ainda oferecer ao planeta redenções e respostas.
País negro, mestiço, tropical, empresa colonial escravista, hedonista, vanguardista, alegre, leve, intenso, mantém pulsante, cotidianamente, em seus rincões mais profundos, valores de vida, liberdade e a busca da felicidade, que tanto associamos a América do Norte.
No Sul poderia haver uma outra reposta ao atual mundo da pós-industrialização e do pré-apocalipse climático. Amor, ordem e progresso?
Ora empresa colonial que sonha com metrópoles fulgurantes, ora simulacro de ocidente surrealista, ora amálgama amoroso de forja católica, vaga-se no Brasil em outro espaço-tempo onde dobram-se, ininterruptamente, sobre si mesmos, a escravidão latente, a ousadia estética, a invenção de vida, a memória calorosa e o design que busca carnalmente a junção entre os diferentes.
A aparente complexidade e ineficiência do nosso ambiente construído pode conter também respostas mais elaboradas e generosas aos desafios que a humanidade estabelece desde sempre em viver junto, em lembrar, amar, progredir e superar.
Estaríamos verdadeiramente alienados do mundo ou haveriam nas diversas realidades urbanas brasileiras histórias de forças sismológicas capazes de reestruturar territórios, cuja arquitetura não é um fim em si mesmo mas um meio pelo qual novas realidades são vislumbradas?
Logo, fazer mais com o que se tem não seria sentido imperioso mas também jornada prazerosa.
Logo, imprecisão e incompletude seriam formas abertas à cooperação?
Essas formas débeis criariam mensagens? Estariam sendo apreendidas ou reverberam em sequências sem fim?
Mas estas falências constantes também criam ciclos curtos de fazer e de refazimento.
Como seriam tais ecos dessas mensagens hoje? Onde reverberaram?
Desde o fim da ditadura na década de 1980, o Brasil faz esforço pela democracia e seus feitos são singulares: reformas, estabilidade econômica, fortalecimento das instituições públicas, consolidação do estado de Direito, acesso à educação, ao trabalho, à saúde, distribuição de renda, inclusão, cidadania. A perfeição não existe em nenhuma luta social mas os feitos para um país de proporções continentais com mais de 230 milhões de habitantes são muitos.
As agendas econômicas e sociais foram prioritárias nos últimos 30 anos.
A agenda territorial e do planejamento urbano ainda é incipiente e anacrônica salvo pontos luminosos.
As emergências nacionais ainda induzem os governos a desprezarem processos de planejamento, de projeto, de design, flexibilizando o ambiente de contratação de obras públicas em favorecimento a grupos financeiros-construtores, e diminuindo o papel fundamental da gestão do tempo da produção do ambiente construído por arquitetos e urbanistas. Brasília e seu lema de realizar “50 anos em 5” ainda são capital político no país e têm ressonância pela esfera política.
A modernidade brasileira descontextualizou as centralidades históricas e culturais na direção de escalas metropolitanas estéreis, massacrando os registros da sua ocupação original e sua capacidade de restituição de vigor: os centros urbanos que eram vivos e pulsantes em manifestações culturais são hoje tecido esgarçado; as populações negras e seu êxodo para as áreas informais e periferias, sujeitas à violência e segregação; estes são hoje o reflexo da condição urbana brasileira.
Os centros urbanos históricos que ofereceram guarida ao homem popular, aos povos negros escravizados e trazidos à força ao país, que ofereceram contra-formas ao barro do corpo social da cultura brasileira, que contiveram o melting pot católico-candomblé-amoroso-libidinoso-antropofágico do Brasil, que foram os palcos da conquista da democracia, que são os palcos das festas populares, dos carnavais, são também esvaziados, precários, de baixa ocupação residencial, sujeitos a pressões grosseiras do mercado, e em eterna luta por vitalidade como consequência dos rastros funcionalistas e racionalista que organizaram o território urbano no anos 40 aos 60. Modernidade branca.
Brasil, nação afrodescendente, sendo o primeiro país de maioria negra a sediar as Olimpíadas, tem na graça da cultura desta matriz, a fagulha da sua preciosidade, sua unicidade, sua plena e real força americana. É através da contribuição da população afro-brasileira que exercemos a busca da felicidade. É pela mensagem da cultura negra que somos impelidos a ficar juntos, ao amor, ao gozo, a dança, a uma inteligência humana superior, em conjugação de rara beleza.
E assim constituem identidade, a cultura do ambiente construído brasileiro, o ambiente cultural, que é forjado nestas três centralidade sobrepostas: os centros urbanos, a identidade negra, a ação cultural.
Os ecos podem também ser ritmos.
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Juntos
“Sonho para fazer e faço"
Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985)
Cultura negra, população negra, centralidades históricas, acesso à cultura através da arquitetura, de conteúdos de design, são os relatos do pavilhão brasileiro, na busca pelo entendimento do que seria estarmos "juntos".
Juntos no desamparo do ambiente construído e dos processos que deveriam fomentar o bom desenho das cidades: o espaço público, o edifico público, o planejamento urbano. Juntos, como sociedade civil, pelo esforço de construir a esfera pública e que conquista a arquitetura lentamente.
A sofreguidão, a imprecisão, o inacabado das soluções são pontos de abertura à cooperação e ao desejo de tonar-se coisa outra e rara: brasileiro.
A proposta da exibição é contar e recontar a história de pessoas que lutam e que conquistam mudanças na passividade institucional das grandes cidades brasileiras, conquistando arquitetura em processos lentos, cujo vagar não é problema mas um apontamento de solução ao esfacelamento político do planejamento do território.
A mostra é uma composição dessas trajetórias e parcerias, do processo do encontro do ativista, do lutador, com o arquiteto e com a arquitetura, tornando-se irmanados pela elaboração do novo espaço.
Os lugares onde viveram, onde estudaram, trabalharam, constituíram família, ou seja, a celebração da vida dessas pessoas, que seriam retratadas em vídeos, fotos, cartas, artigos, poesias, pinturas, textos, dados, fatos, desenhos, diagramas, compondo, pela oferta do consumo deste material, uma dispersão no tempo e no espaço destes esforços heroicos – um memorial para estas vidas imbricadas na melhoria do ambiente construído, nas suas comunidades, no resgate de um modo de ser e saber.
Arquitetura é cultura.
Não é uma mostra apenas de projetos mas de processos e seus estados da arte, ora concluídos, ora em projeto, ora por fazer, ora inacabados.
Os processo falam de arquitetura, urbanismo, patrimônio cultural, publicações, ativismo e tecnologia social.
O imperioso em exibi-los é que são a contra-argumentação ao silêncio das políticas territoriais no Brasil, onde se tanto avançou, mas tanto falta sobre o chão em que vivemos e sobre o ambiente construído como lugar da inclusão.
Juntos.
nota
NA – Reporting From The Front, exposição no Pavilhão do Brasil, Biennale Architettura Venezia 2016, de 28 de maio a 27 de novembro de 2016. Curadoria de Washington Fajardo. Bienal de São Paulo / Ministério das Relações Exteriores / Embaixada do Brasil em Roma / Ministério da Cultura / Funarte.
NE – Projetos selecionados para a mostra brasileira na Bienal de Veneza 2016 publicados pelo portal Vitruvius:
PORTAL VITRUVIUS. Vila Flores. Um processo arquitetônico: ressignificação, coletividade e aprendizado. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 184.01, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.184/6015>.
PORTAL VITRUVIUS. Casa Vila Matilde. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 184.02, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.184/5857>.
PORTAL VITRUVIUS. Conjunto Habitacional do Jardim Edite. Projetos, São Paulo, ano 13, n. 152.04, Vitruvius, ago. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/13.152/4860>.
sobre o autor
Washington Fajardo é arquiteto, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural e também assessor especial do Prefeito Eduardo Paes para assuntos urbanos. É curador da mostra brasileira na Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza de 2016.