Novos tons no concreto da arquitetura do oeste paulista
Texto de Evandro Fiorin
Os traços da chamada arquitetura paulista no oeste do Estado de São Paulo, se disseminaram, principalmente, a partir da década de 1960, seja em projetos escolares do Plano de Ação do Governador Carvalho Pinto, ou no desejo de modernização de alguns políticos e das elites, com a construção de espaços públicos e coletivos (1). Em Presidente Prudente, há que se somar a esta produção, a sensível contribuição dos projetos residenciais de arquitetos formados na capital paulista, os quais se estabeleceram nesse município nas décadas seguintes, tais como Fernando Karazawa e Hélio Hirao (2).
Karazawa, formado no Mackenzie, depois de trabalhar com Ruy Ohtake em alguns projetos residenciais, no final da década de 1960 e início de 1970, trouxe para o Oeste de São Paulo um desenho primoroso em estruturas de concreto. Com grande desenvoltura plástica, de um fazer detalhista e artesanal, elabora os princípios da chamada arquitetura paulista em seu viés técnico e construtivo. Evidentemente, os principais pressupostos políticos lidos dessa produção, no seu âmago mais revolucionário, já não podiam se fazer valer. Mesmo assim, seu trabalho dotou de características próprias essa arquitetura e foi de encontro a sua aclimatação ao interior (3).
Hirao, com formação pela FAU USP nos anos 1980, trabalhou em escritórios de arquitetura da capital e quando voltou para Presidente Prudente buscou aliar sua prática profissional ao ensino, sendo responsável, de início, por disciplinas de desenho e cor da Oficina Cultural Timochenko Whebi (durante os anos 1990) e, mais tarde, junto à Universidade Estadual Paulista. Em 1995 teve o projeto de sua residência premiado com menção honrosa pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento São Paulo (4). Uma casa que busca a racionalização de um fazer em suas empenas e uma leitura regional do cromatismo presente nas obras de Artigas.
Na realidade prudentina, tanto nas residências de Karazawa, como na de Hirao, o repertório da chamada arquitetura paulista tem que se adaptar as especificidades do local, à escassez de mão-de-obra especializada e, sobretudo, a uma nova ambiência muito particular. Sendo assim, esses projetos ganham os contornos mais compassivos em sua relação com o seu entorno e palhetas cromáticas regionalizadas. Gradis e elementos vazados agora deixam circular o calor e revelam o interior ao exterior. O cinza outrora predominante na capital ganha mais cor, não apenas como forma de contribuir para impermeabilização das empenas, expostas ao sol do Oeste Paulista, mas, também, para revelar a expressão das atmosferas interioranas. O vermelho queimado, os tons de amarelo ensolarado e de azul anil, estampam a singeleza das estruturas de uma nudez cinzenta de Karazawa; um cor-de-rosa caipira, um amarelo estonado e um azul celeste trarão à tona, uma aquarela de matizes nos planos da residência de Hirao.
É nesse contexto peculiar, de formas sob a luz, que nascem os espaços de concreto com os tons alaranjados da arquitetura de Cristiana Pasquini. Filha do Oeste Paulista e de uma mãe artista, estuda arquitetura no Norte do Paraná, em Londrina (5). Convidada a integrar a Cooperativa, passa a dividir o espaço de trabalho com o coletivo de profissionais de projeto de Presidente Prudente, dentre eles, os arquitetos Karazawa e Hirao. Na garagem que lhe foi destinada para o seu ateliê, recebia, sempre aos fins de tarde, a visita de Karazawa. Do bate-papo que ali se desenrolava surgiram projetos conjuntos, mas, sobretudo um aprendizado; para Pasquini: “Karazawa foi uma segunda escola” (6).
A arquiteta nos relatou em entrevista, que ficou debruçada por diversos meses em uma simples encomenda do mestre: o projeto da reforma de um portão para uma de suas casas. Uma honra, mas, também, uma provocação: desenvolver, com o rigor oriental a modulação já existente, um caráter singular, estruturalmente e plasticamente certeiro, utilizando todas as peças disponíveis. Dessa laboriosa prática, das conversas e ensinamentos do colega arquiteto, mas, também, do inegável talento, lhe veio a experiência para fazer o seu próprio portão!
De metal, sobre uma grande viga desse mesmo material, que suporta um constructo tramado e poroso, ele se abre para sua nova garagem: o ateliê da Vila Charlote, em Presidente Prudente. Ladeado por um outro portão, pivotante, também leva para a sua casa, no piso superior; a porta larga e a porta estreita. Relembra a dura tarefa do arquiteto na contemporaneidade: murar sem fazer perder um sentido de acolhimento, especialmente, um peculiar caráter de vizinhança das cidades do interior, com seus ricos encontros de calçada.
Generosamente, seu portão se afasta do recuo. A arquitetura dá seu lugar ao urbano; incorpora o passeio e este abraça a árvore existente, a qual, dá sua sombra ao banco improvisado, para o assento de toda a vizinhança. Projeto que busca, assim, construir algumas gentilezas comuns aos ambientes das cidades do interior do país e que, obviamente, também se depara com suas agruras. Cerrado, esse portão de um azul marinho muito enegrecido, também rechaça um maior contato do interior com o exterior.
Uma trama superior, composta por elementos vazados é quem faz as trocas com a cidade, nas elevações nordeste e noroeste. O muxarabiê que revela a rua à frente e a paisagem ao fundo. Um rendilhado que deixa ver o sol nascente e o sol poente. A partir dele se abrem pequeninas frestas, que desenham as formas cambiantes da luz do Oeste Paulista. Resolvem um problema de ventilação cruzada em uma cidade de clima muito quente, e dão sentido a uma espacialidade que absorve a luminosidade de um pôr do sol dos mais emblemáticos. As superfícies perfuradas foram meticulosamente projetadas cobogó por cobogó. Originalmente pré-fabricados, e de cor cimentícia, foram pintados de laranja e amarelo por dentro, com a ajuda de uma fôrma de metal. Um a um, eles desvelam um dégradé proposital, nova ligeireza florescente nas antigas empenas paulistas. Uma arquitetura que é, ao mesmo tempo, firme e dissoluta, contextual e frugal, numa condição experiencial – efetiva e de efeito – de alaranjamento do concreto, bem próprio do seu lugar ambiental.
Camufla-se nos raios de sol vespertinos e matutinos, os quais, sorrateiramente, interpenetram pelos seus orifícios geométricos, mas, também, nas luzes noturnas que vazam pelos seus poros. Também obriga o morador a ter certa resiliência em aceitar a luz que inunda os espaços livres desprovidos de paramentos. Não há subterfúgios nesse edifício. O processo construtivo se revela em cada detalhe, se põe à prova, está à mostra, não quer se esconder, mas sim, sempre desnudar, até a nudez dos corpos.
É uma composição detalhista, produto de um fazer artesanal, também presente no assentar de cada tijolo de alvenaria estrutural que ancora as suas divisas. O rigor construtivo domina as suas opções, seja na verdade dos materiais, ou nas técnicas adotadas. Porém, essa jovem arquitetura paulista, ainda continua a manter uma relação conflituosa com a qualificação da mão-de-obra. Isto porque, esse galpão, como carinhosamente é chamado pelos autores, foi construído por um único profissional capacitado para o erguer na cidade, o que acarretou num longo tempo para a sua execução. Mesmo assim, como os velhos artificies, ainda é possível se surpreender com os resultados singelos conseguidos, apesar das restrições para o barateamento dos custos; o quê, ao final, soa como sagacidade e argúcia, dadas as qualidades espaciais instigantes. E se existem defasagens, elas ainda não impedem de produzir bons resultados em contextos bem diversos. Curiosamente, talvez, elas devam ser lidas, aqui, como os desafios mais oportunos que restaram, para a atualização do legado do que se convencionou chamar de arquitetura paulista (7).
notas
1
Há trabalhos que discutem, mais especificamente, os projetos relevantes que foram empreendidos na cidade de Presidente Prudente, a partir dos anos 1960, sobretudo, a produção da arquitetura moderna e seus processos de apropriação e, também, modernização no município. Confira alguns trabalhos: HIRAO, Hélio. Arquitetura moderna paulista, imaginário social urbano: uso e apropriação do espaço. Tese de doutorado. Presidente Prudente, Faculdade de Ciências e Tecnologia / Unesp, 2008; HIRAO, Hélio; PASQUINI, Cristiana Alexandre; RIBEIRO, Eliana Nunes. Arquitetura escolar moderna paulista, apropriação socioespacial, uso e preservação: o projeto de João Clodomiro de Abreu para Presidente Prudente SP. Tópos, v.4, n° 1, 2010, p. 131-145 <http://revista.fct.unesp.br/index.php/topos/article/view/2249/2058>; MARQUES, Cristiana Alexandre Pasquini Feltrin. Arquitetura em Presidente Prudente: três obras. 2011. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2011.
2
É importante ressaltar que estes arquitetos não foram aos primeiros a difundir a chamada arquitetura paulista em seu viés residencial, no oeste de São Paulo, mas o fizeram com grande maestria. Cf. ALMEIDA, Ana Carolina de; AGOSTINHO, Marcos Vinicius Vincenzi de. Arquitetura pioneira: a trajetória de Kazuo Maezano. In: BARON, Cristina Maria Perissinotto; FIORIN, Evandro. 100 anos Presidente Prudente: arquitetura e urbanismo. Presidente Prudente, Canal 6, 2017, p. 133-142. Para uma maior compreensão da gênese da produção da arquitetura moderna residencial em Presidente Prudente acesse: HIRAO, Hélio; YAMAKI, Humberto; LAMOUNIER, Alex; FIORIN, Evandro; BERNAL, L. O Caráter de três casas modernistas da Avenida Washington Luiz em Presidente Prudente SP. In: 9o Seminário Docomomo Brasil, Interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente, 2011, Brasília-DF. 9o Seminário Docomomo Brasil, Interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente. Brasília, UnB, 2011. v. CD.
3
GABRIEL, M. F. Duas arquiteturas residenciais em Presidente Prudente. In: BARON, Cristina Maria Perissinotto; FIORIN, Evandro. 100 anos Presidente Prudente: arquitetura e urbanismo. Presidente Prudente, Canal 6, 2017, p. 143-154.
4
RIBEIRO, Alessandro Castroviejo; CALDEIRA, Vasco. Residência em Presidente Prudente. Arquitetura e Urbanismo – AU, n. 64, fev./mar. 1996, p. 36-37.
5
Possivelmente, por conta da distância da capital e dos principais centros regionais do interior do Estado de São Paulo, tais como Bauru, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto, Presidente Prudente, no extremo Oeste, fronteira com o Estado do Paraná, tem mais relação e intercâmbios com os municípios de Londrina e Maringá, do que com as cidades paulistas. No extremo Oeste é onde, finalmente, as escolas paulistas e paranaenses, geograficamente se encontram.
6
PASQUINI, Cristiana. entrevista a Evandro Fiorin. Casa Ateliê da Vila Charlote, Presidente Prudente, 13 de julho de 2017.
7
FIORIN, Evandro. Arquitetura paulista: do modelo à miragem. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2009, p. 166. Recupero aqui um argumento sobre as limitações da nossa arquitetura, frente aos inúmeros contrassensos que envolvem sua produção em uma conjuntura mais recente. Especialmente, a necessidade de tomada de consciência sobre um importante papel crítico, que o arquiteto deve voltar a desempenhar, diante das muitas defasagens que enfrentamos no país e que, na maioria das vezes, acabam, no ato profissional, gerando uma redundante reprodução de modelos esvaziados de sentido, como imagens de si mesmos.
sobre o autor
Evandro Fiorin é doutor em arquitetura e urbanismo pela FAU USP, com Pós-Doc na FAUP Porto.