No passado os grandes espaços interiores eram exclusividade dos edifícios públicos, fossem eles religiosos ou civis. Referências fundamentais são o Pantheon romano, verdadeiro arquétipo do espaço único com predomínio da vertical, as basílicas – espaços cuja grande altura era suplantada pela sua extensão horizontal–, originalmente dedicadas a atividades judiciais e comerciais, e que séculos mais tarde foram adaptadas para uso como igrejas cristãs (1) e os banhos públicos romanos, alguns também transformados em templos cristãos, e cujos grandes espaços eram resultado de um equilíbrio entre a extensão vertical e a horizontal.
No século 19, com a multiplicação de programas causada pela industrialização e pela ascensão da burguesia, grandes espaços interiores começaram a fazer parte de outras espécies de edifícios além dos ligados à religião e à administração. Conceitualmente, grandes espaços cujo uso se restringia à planta baixa, passaram a ser envolvidos por várias camadas de espaços para todo tipo de uso. Também é possível imaginar esquematicamente essa estratégia projetual como se os pátios dos palácios renascentistas fossem cobertos e se tornassem espaços interiores.
Aos poucos, a prática de organizar todo um edifício em torno a um grande espaço de altura múltipla foi se tornando comum, como mostram o Museu Antigo de Berlin (Schinkel, 1822), e o Museu Nacional da Construção em Washington (Montgomery Meigs, 1882). No século 20 esse princípio de organização foi se tornando mais comum e mais sofisticado, aparecendo na obra dos mais importantes arquitetos como Gunnar Asplund (Biblioteca Pública de Estocolmo), Alvar Aalto (Academic Bookstore), Kevin Roche (Fundação Ford) e Louis I. Kahn (Biblioteca Phillips-Exeter e Centro de Estudos de Arte Britânica), para mencionar apenas alguns.
A análise de dois exemplos em maior detalhe pode nos proporcionar acesso a algumas características inerentes a este tipo de organização. O primeiro deles é sede da Cia. Larkin, projetada em 1904 e construída por Frank Lloyd Wright em Buffalo, EUA, para o proprietário da Casa Martin, uma das suas consagradas casas da planície.
Chamado por alguns de grande máquina, por outros de entorno perfeitamente integrado, era em primeiro lugar um lugar de trabalho agradável: amplos espaços, luz zenital, silêncio, jardim na cobertura, etc. Seu objetivo era o funcionamento eficiente de um enorme negócio de vendas por correio, um dos primeiros desse tipo no mundo.
Essencialmente, o Edifício Larkin era composto por um bloco principal (medindo 62,5x30m), com 6 pavimentos, onde se localizavam os escritórios gerais, e um bloco bem menor, quase uma miniatura do maior, com 4 pavimentos e centralizado em relação ao eixo transversal, onde se localizavam as entradas, escritórios privados e salas de recepção.
No bloco principal, um vazio central que se eleva em direção à luz circundado por balcões, configuração muito semelhante à das igrejas protestantes que Wright não apenas conhecia como havia projetado em Oak Park na mesma época (Unity Church). Os espaços em torno do vazio central eram completamente livres – logo, flexíveis – pois todos os serviços estavam situados na periferia externa, próximos aos cantos.
Além do pioneirismo no campo das vendas por correio, o Larkin foi um dos primeiros edifícios “ar condicionados” (2) do mundo. Para tanto, havia shafts de tomada de ar exterior e de insuflamento e retorno do ar condicionado – cuja central ficava no subsolo – nos quatro cantos, ao lado das escadas, sendo a distribuição do ar tratado realizada a partir de grelhas colocadas nos parapeitos nas bordas do grande átrio. A integração desse equipamento à forma do edifício foi considerada tão importante por alguns críticos que Reyner Banham chegou a atribuir muito da configuração planimétrica e volumétrica do Larkin à sua solução técnica (3).
Só a má vontade de muitos críticos modernos em relação a Frank Lloyd Wright pode explicar a reticência em relação à modernidade do edifício Larkin. A ornamentação aplicada é escassa e concentrada nos níveis superiores tanto nos níveis superiores tanto no exterior como no interior. A simetria induzida pelo programa e pela localização é tão camuflada quanto os acessos, que ocorrem nas reentrâncias entre os dois blocos. De qualquer ponto de vista exterior há uma marcante verticalidade: os elementos verticais se encontram quase sempre avançados em relação aos planos horizontais.
Não obstante a clareza da organização espacial e o brilhantismo das soluções técnicas, eficiência não era o único objetivo de Wright neste projeto. A escolha de um tipo associado a edifícios religiosos parece indicar uma busca de transcendência que se revela na referência feita por Wright ao Edifício Larkin como uma “catedral do trabalho”.
Quase 100 anos depois, em 2001 Alberto Campo Baeza vence o concurso para a sede da Caja Granada, em Granada, Andaluzia. Segundo o autor, trata-se de “um grande cubo sobre um pódio, flanqueado por dois pátios”. Que um edifício desses possa ser descrito com tão poucas palavras é uma demonstração da sua clara identidade formal. Programaticamente, a base/pódio abriga estacionamentos, arquivos e um centro de processamento de dados. O cubo é o lugar dos escritórios administrativos.
Apesar do programa trivial que abriga, é no “cubo” – 57m de lado por 36m de altura – que se concentra a maior parte do interesse arquitetônico desse projeto. Um módulo-base de 3m predomina tanto na horizontal como na vertical, configurando uma estrutura vertical que se manifesta com muita força nos dois lados mais atingidos pelo sol, pois ali as vedações estão recuadas 3m e, portanto, essas fachadas ganham tridimensionalidade. Solução semelhante acontece na cobertura, onde a grelha estrutural de 3m de altura ajuda a controlar a entrada do sol.
A elementaridade do exterior não prepara para a surpresa que nos aguarda no interior, organizado em torno a um vazio quadrado de 30x30m, deslocado em relação ao perímetro da planta, o que cria faixas de largura diferente na planta – 15 e 9m – aparentemente facilitando a disposição de salas de trabalho maiores e menores. Esse grande átrio é quadrado na base, mas não é cúbico em volume, pois um auditório ocupa parcialmente os níveis inferiores. Isso e a posição dos quatro gigantescos pilares com 3m de diâmetro – centrada em relação à planta geral (4) mas não em relação ao átrio – dão a esse espaço um aspecto muito menos óbvio do que se poderia esperar. Ou seja, neste caso não se trata apenas de adotar um esquema de palácio renascentista e cobrir o seu pátio, pois o espaço resultante desempenha um papel diferente.
Este magnífico espaço interior, iluminado zenitalmente, é o protagonista desta obra. Chamado por Campo Baeza de “impluvium de luz”, faz referência à casa tradicional romana mas parece ter muito mais a ver com outro edifício romano muito admirado: o Pantheon de Agrippa, do qual Campo Baeza diz ser impossível visitá-lo sem se emocionar. Além da escala sobre-humana sem ser acachapante, da luz zenital filtrada, da elementaridade da arquitetura, o fato de que a maioria das superfícies que o envolvem seja de alabastro também contribui para dotar o espaço de um caráter muito especial, talvez transcendental para alguns.
Apesar das diferenças temporais e culturais Larkin e a Caja Granada compartilham algumas características importantes. Ambos não revelam exteriormente a riqueza dos seus interiores; suas fachadas se referem apenas aos espaços adjacentes. Nos dois casos, o encontro com os grandes espaços verticais é uma verdadeira surpresa: ninguém espera que edifícios administrativos contenham espaços com características normalmente associadas a atividades religiosas ou pelo menos culturais. Os dois fazem da luz zenital seu principal ornamento e consituem pontos altos da arquitetura dos últimos 100 anos
Suas diferenças também oferecem lições importantes. Enquanto o Larkin é uma solução mais ortodoxa, pela sua regularidade e simetria, na Caja Granada vemos o precedente alterado por soluções circunstanciais, resultando em uma surpreendente mescla de complexidade e serenidade.
Infelizmente, o Edifício Larkin foi destruído em 1950, depois de a companhia ir à falência, mas a Caja Granada, junto com o Museu da Andaluzia, seu vizinho e também obra de Campo Baeza, passaram a constituir outro motivo de se ir a Granada, além do Alhambra.
notas
NE – Texto originalmente publicado em Summa+, n. 155, Buenos Aires, fev. 2017.
1
Essas adaptações foram tanto do esquema básico com três naves longitudinais, sendo a central mais larga e mais alta, como de edifícios ou partes de edifícios que foram incorporados às igrejas a partir da queda do Império Romano.
2
Entre aspas, porque apesar de o ar ser aquecido e resfriado, lhe faltava o controle de umidade para ser um sistema complete.
3
BANHAM, Reyner. The Architecture of the well-tempered environment. Londres, The Architectural Press, 1969.
4
Os pilares estão centrados em relação ao espaço interior, isto é, excluindo as duas faixas em que a estrutura serve de quebra-sol.
sobre o autor
Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto e professor de projetos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.