O projeto
A intervenção urbana temporária “Inflexão: resistência e censura” (1) se faz a partir de projeções de imagens nas empenas dos edifícios do MAC USP junto ao parque do Ibirapuera em São Paulo. A fachada do Pavilhão de Bienal (primeira sede do museu) voltada para a Avenida Pedro Alvares Cabral e a fachada do MAC USP voltada para o monumento do Obelisco. As projeções serão feitas de forma cruzada entre os dois edifícios. Um equipamento será instalado no terceiro andar do Pavilhão da Bienal e projetará imagens de obras artísticas realizadas durante o período da ditadura militar na empena do MAC USP. Outro equipamento será instalado no último andar do MAC USP, no mirante e projetará notícias de casos de censura a manifestações artísticas ocorridas nos últimos anos na empena do Pavilhão de Bienal. Desta forma, as imagens em uma empena e as notícias na outra estarão expostas em combinações aleatórias. Os feixes de luz dos projetores poderão ser vistos em maior ou menor grau dependendo da umidade do ar. No cruzamento entre eles estará o ponto de inflexão, um desvio no caminho, momento central da intervenção, quando passado e presente se confundem, lá está a poesia.
A memória
Lugares de memória existem no sentido material, simbólico e funcional. Se diferenciam dos lugares de história pela vontade de memória. Seu principal objetivo é parar o tempo, bloquear o esquecimento; são sempre um fenômeno atual, uma construção vivida no presente, enquanto a história representa o passado (2). A ditadura militar produziu uma série de lugares de memória espalhados por todas as regiões da cidade de São Paulo, mesmo que escondidos, camuflados e esquecidos. Tornar públicos estes espaços é parte do movimento necessário para que tais fatos não voltem a se repetir.
No caso do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP, criado pouco antes do golpe militar de 1964, a atitude do seu primeiro diretor Walter Zanini foi conceber um espaço para experimentação artística, liberdade, encontro entre jovens artistas e aproximação com países da América Latina e do leste europeu, em um período de repressão e censura que vigorou no país entre os anos de 1964 e 1985 (3). O momento atual de intolerância e censura a manifestações artísticas no Brasil, torna urgente a reflexão sobre importância da liberdade de expressão na produção artística.
O MAC USP (4) foi criado em 1963 de maneira polêmica a partir da herança do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM SP, que abrigava cerca de 1700 peças e era respeitado tanto pelas suas obras internacionais como nacionais, pertencentes a Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977) e sua esposa Yolanda Penteado (1903-1983). No mesmo período foram criados outros museus junto a Universidade de São Paulo – USP: o Museu de Arqueologia e Antropologia (hoje Museu de Arqueologia e Etnologia) a partir da transferência da coleção de Pré-História de Paulo Duarte (1899-1984); a incorporação do Museu do Ipiranga; e a criação do Instituto de Estudos Brasileiros a partir da aquisição da Biblioteca Yan de Almeida Prado (1898-1987) (5). Walter Zanini foi o primeiro diretor do MAC USP (1963-1978) abrindo o museu para a experimentação, o encontro de jovens artistas contemporâneos e a arte conceitual nas décadas de 1960 e 1970.
Funcionou provisoriamente até 1992 no terceiro andar do Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera. Nos arredores do museu estavam localizados dois pontos de repressão, tortura e desaparecimentos durante a ditadura militar. O primeiro é o Quartel General do II Exército, onde foi criada a Operação Bandeirante – Oban, que em maio de 1968 foi transferida para a 36° Delegacia de Polícia, no mês seguinte, o quartel foi alvo de um ataque a bomba, onde um soldado morreu. O segundo é o Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna – DOI-CODI, local da 36° Delegacia de Polícia, sediou, a partir de 1969, a Oban, substituída pelo DOI-CODI, onde estima-se que mais de oito mil pessoas tenham sido ilegalmente detidas e torturadas, foi desativado em 1982 (6). Esta proximidade urbana, nos leva a questionar o quanto e se as ações do museu eram monitoradas pelas forças de repressão do estado.
Entre as ações do MAC USP estão a realização das exposições da Jovem Arte Contemporânea – JAC entre 1967 e 1974, com o propósito de incentivar a produção artística de jovens artistas e ao mesmo tempo renovar o acervo do museu através dos prêmios-aquisição, possibilitando a entrada de trabalhos ainda não legitimados pelo mercado e pelo circuito oficial. Um local de encontros e debates, onde foi possível o desenvolvimento de propostas artísticas, happenings, manifestações, exposições de caráter experimental e a participação do espectador no processo da arte. No início as obras eram expostas em paredes ou painéis, divididas entre pintura e escultura. A partir da V JAC em 1971, começam a aparecer apresentações artísticas ligadas a arte processual e a arte conceitual. Essa abertura proporcionada por Walter Zanini, fez com que o museu ficasse marcado no meio artístico como um local onde a liberdade, tão difícil durante a ditadura militar, era possível. O museu constituía-se como um lugar de troca entre os artistas que eram funcionários e os que estavam para estudar o acervo ou desenvolver pesquisas artísticas, se consolidando como um espaço de encontro, debate e criação único na cidade.
Outra ação do museu foi participar da rede de arte postal estruturada desde o final da década de 1960 que a partir dos correios conectou artistas do mundo todo na veiculação de arte e informação. As correspondências eram realizadas entre dois artistas pontuais ou até a organização de publicações e exposições coletivas com centenas de participantes. As obras enviadas, como de costume, não eram devolvidas, o que resultou em um arquivo público no MAC USP sem paralelo em outras instituições brasileiras (7). As exposições Prospectiva74 (1974) e Poéticas Visuais (1977) são dois exemplos de ações desse período, que se diferencia do circuito artístico tradicional por negar a competitividade e a comercialização dos trabalhos. Não existem documentos ou instituições que regulamentam as atividades dos artistas postais, garantindo a liberdade e a horizontalidade da rede, possibilitando a superação da divisão entre centro e periferia. Os artistas participavam com igualdade de destaque. Os temas abordados eram diversos, desde trabalhos focados em pesquisas formais, até trabalhos engajados na comunicação de fatos e pautas políticas. Um exemplo da perseguição a artistas pela atuação na arte postal foi a prisão dos uruguaios Clemente Padín e Jorge Caraballo, em 1977, acusados de suposto “escárnio e vitupério as Forças Armadas”, sendo condenados à prisão pelo governo do Uruguai. A rede de arte postal se articulou internacionalmente para denunciar o ocorrido; a pressão, tanto burocrática quanto artística, obteve resultados e as penas dos artistas foram abrandadas. Como represália, o arquivo singular de arte postal de Padín foi destruído pelas forças repressoras.
O contexto político de ditaduras militares e guerra fria foi decisivo para os artistas na América Latina. Existiu uma tentativa de monitoramento dos correios, porém devido ao volume de correspondências que circulavam, isso era inviável. Artistas como Júlio Plaza, Regina Silveira, Walter Zanini, Angelo de Aquino e Jonier Marin, são destaque deste período. Apesar da censura política e das limitações econômicas, a arte postal foi capaz de abrir outros círculos de intercâmbio entre artistas de países do leste europeu e América Latina. Foram organizadas exposições para além dos centros tradicionais como Estados Unidos e Europa, dando destaque para artistas da Áustria, Polônia, Iugoslávia, México e Argentina. Indicando uma curadoria aberta a explorar e desafiar o regime militar que bloqueava tais países.
O museu não sofreu censuras e retaliações de forma direta por parte do governo militar. Além da produção e exposição de trabalhos com temática política existem outros fatos e indícios que mostram a ação do Zanini frente à ditadura. A prisão de um estudante que trabalhava no museu por suposta militância política fez o diretor se expor e ressaltar as qualidades do estudante, assim como fez com outros colegas da USP. Existe o caso do arquiteto e artista Sergio Ferro, que em carta pouco antes de partir para o exilio, doa a obra São Sebastião, que retrata a morte de Carlos Marighella pelo regime militar e, como pagamento, pede para que o quadro seja guardado e “um dia, o quadro – ou o que ele lembra – terá que ser terminado” (8). Zanini em resposta e agradecimento pela doação no final de sua carta explicita: “sei de sua luta, pelos amigos”. A ideia de participação política não se manifestava apenas na questão de conteúdo, mas também na busca da renovação das artes plásticas, mobilizar a participação do público, organizar eventos que substituam a contemplação individual pelo protesto, pela denúncia e participação coletiva pública (9).
Quatro exemplos de censura ocorridos nos últimos anos no Brasil, representam o momento de polarização e intolerância em que vivemos: em 9 de setembro de 2017, o fechamento da exposição “Queermuseu” na cidade de Porto Alegre por suposto uso de símbolos religiosos e pedofilia; em 14 de setembro de 2017, a retirada de quadro do Museu de Arte Contemporânea na cidade de Campo Grande após deputados denunciarem suposta apologia a pedofilia; em 15 de setembro de 2017, a censura a uma peça de teatro na cidade de Jundiaí onde um ator transexual interpreta Jesus Cristo (10); em 26 de setembro de 2017, a censura a performance “La Bete” apresentada no MAM SP onde um ator sem roupa interage com o público e supostamente teria exposto crianças e adolescentes a conteúdo impróprio (11).
A intervenção urbana “Inflexão: resistência e censura” evoca a memória dos edifícios sede do museu para falar da postura de resistência do MAC USP frente à repressão ocorridas no período da ditadura militar e a censura a manifestações artísticas ocorridas no Brasil nos últimos anos. A palavra “inflexão” significa alteração da direção normal; desvio; dobra; tipo de entonação ou mudança de pronúncia ao dizer alguma coisa; numa curva, o ponto em que a cavidade se inverte (12). Muita coisa que de forma velada foi produzida e exposta nos piores momentos da ditadura militar de 1964, talvez não passariam pela ditadura da moral que estamos atravessando. Portanto falar sobre a ditadura militar do passado é falar do presente!
O museu funcionou no terceiro andar do Pavilhão da Bienal entre os anos de 1963 e 1992, parte do complexo projetado por Oscar Niemeyer para as comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo, inaugurado como Palácio das Indústrias em 1954. A fachada voltada para a Avenida Pedro Alvares Cabral, tem formato retangular, com maior dimensão na horizontal (11 metros de altura e 44 metros de largura) e superfície de 495 m2. O edifício da sede atual parte do mesmo complexo, inaugurado como Palácio da Agricultura, funcionou como sede do Departamento Estadual de Trânsito – Detran e após reforma em 2013, passou a abrigar a nova sede do museu. A fachada voltada para o monumento do Obelisco, tem formato retangular e maior dimensão na vertical (27 metros de altura e 18 metros de largura) e superfície de 486 m2. As projeções serão feitas de forma cruzada entre os dois edifícios. Um equipamento será instalado no terceiro andar do Pavilhão da Bienal e projetará imagens de obras artísticas realizadas durante o período da ditadura militar na empena do MAC USP (distante 220 metros). Outro equipamento será instalado no último andar do MAC USP, no mirante e projetará notícias de casos de censura a manifestações artísticas ocorridas nos últimos anos na empena do Pavilhão de Bienal (distante 230 metros). Desta forma, as imagens de obras realizadas durante a ditadura militar, partirão do edifício onde elas foram produzidas e expostas sobre a fachada da sede atual e as notícias de censura dos dias atuais, partirão do edifício da sede atual sobre a fachada de primeira sede, expostas em combinações aleatórias entre as imagens e as notícias. Os feixes de luz dos projetores poderão ser vistos em maior ou menor grau dependendo da umidade do ar. No cruzamento entre eles estará o ponto de inflexão, um desvio no caminho, momento central da intervenção, quando passado e presente se confundem, lá está a poesia, que nos remete a pergunta: estamos mais próximos de 1964 ou do século 21?
notas
NA – Para a realização deste projeto foram realizadas entrevistas e conversas com: Giselle Beiguelman, José Gabriel Borba Filho, Renato de Andrade Maia Neto e Renato Cymbalista.
1
Ficha técnica: projeto Inflexão: resistência e censura; local São Paulo SP Brasil; ano 2018; autores Carvalho Terra Arquitetos (autores Bruno Carvalho e Carina Terra).
2
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In Projeto História, v. 10, São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, 1993, p. 21.
3
FREIRE, Cristina. Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo. Annablume: MAC USP, 2013; PALMA, Adriana Amosso Dolci Leme. Invenções Museológicas em Exposições: MAC DO ZANINI e MASP DO CASAL BARDI (1960-1970). Orientadora Maria Cristina Machado Freire. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP, 2014.
4
LOUZADA, Heloisa Olivi. Contrastes na cena artística paulistana: MAC USP e MAM SP nos anos 1970. Orientadora Maria Cristina Machado Freire. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP, 2013; MAIA NETO, Renato de Andrade. Arquiteturas para o Museu de Arte Contemporânea da USP. Orientador Ricardo Marques de Azevedo. Tese de doutorado. São Paulo, USP, 2004; PALADINO, Luiza Mader. MAC USP e CAYC: dois polos de arte experimental na América Latina. Revista-Valise, Porto Alegre, v. 6, n. 11, ano 6, jun. 2016.
5
NASCIMENTO, Elisa de Noronha. Discursos e reflexividade: um estudo sobre a musealização da arte contemporânea. Orientadora Alice Lucas Semedo. Tese de doutorado. Porto, Portugal, Universidade do Porto, 2013.
6
COORDENAÇÃO DE DIREITO A MEMÓRIA E A VERDADE (org). Memórias resistentes, memórias residentes: lugares de memória da ditadura civil-militar no município de São Paulo. São Paulo, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, 2017, p. 75.
7
SAYÃO, Bruno. Solidariedade em rede: arte postal na América Latina. Orientadora Maria Cristina Machado Freire. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP, 2015, p. 11.
8
FORTE, Andrea Siqueira D’Alessandri. Artes plásticas no Brasil: as experiências políticas de Carlos Zilio e Sérgio Ferro nos anos 1960 e 1970. Orientadora Icléia Thiesen. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 2014.
9
CAVALCANTI, Jardel Dias. Artes plásticas: vanguarda e participação política (Brasil anos 60 e 70). Orientador Ítalo Arnaldo Tronca. Tese de doutorado. Campinas, IFCH Unicamp, 2005.
10
Sobre a censura nestes três eventos, ver: GUERRA, Abilio. Notícias dos tempos temerários. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 189.04, Vitruvius, set. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.189/6706>.
11
MIYADA, Paulo. Carta ao prefeito de São Paulo. Sobre o nu no MAM-SP. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.02, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6714>.
12
Inflexão (verbete). Aurélio: dicionário online de português <https://www.dicio.com.br/inflexao/>.
sobre os autores
Bruno Carvalho é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Mackenzie em 2002, pós-graduado pela Escola da Cidade em 2017 no programa Civilização América: Geografia, Cidade e Arquitetura. Trabalhou em diferentes escritórios de arquitetura, desde 2010 dirige o escritório Carvalho Terra Arquitetos. Desenvolve pesquisas sobre lugares de memória, tolerância, reconciliação e arquitetura contemporânea na América Latina.
Carina Terra é arquiteta e urbanista graduada pela Universidade Mackenzie em 2003, pós-graduada pelo Senac em 2017 em Hotelaria Hospitalar. Trabalhou em diferentes escritórios de arquitetura, desde 2010 dirige o escritório Carvalho Terra Arquitetos. Atua profissionalmente também em hospital público de grande porte em São Paulo.