Vários recortes seriam possíveis para contar um pouco da historia do Projeto O2 Filmes – São Paulo a pedido da nova e bem-vinda Revista Contraste da FAU – USP.
Em [19]95, recém-formada arquiteta, ouvi de Roberto Schwarz um comentário que apenas guardei, sem entender muito: “Arquitetura e Cinema são, das Artes, as mais complexas”. Nunca perguntei o que ele quis dizer exatamente, nem sei se hoje ele diria o mesmo ou se foi uma simples fala em conversa informal.
O fato é que me lembrei desse comentário em vários momentos do trabalho de Projeto e Obra da reforma da O2.
Em abril de 2007, Fernando Meirelles me chamou na produtora, que já funcionava bem instalada em um galpão alugado (aproximadamente ¼ da área total atual) e recém comprado junto com outros seis galpões na Vila Leopoldina, formando um total de 7.600 m², uma meia quadra nesse bairro em transformação.
Andamos por tudo, bem rapidamente. Sobe, desce, abre porta, fecha porta, olha aqui, olha ali. No fim do passeio, sentado no espaço de pré-produção do filme Ensaio sobre a cegueira onde estavam uma série de fotos interessantes de lugares, cidades, pessoas, imagens de quadros e maquetes de espaços, ele disse:
Simples! Precisamos reformar a Produtora e dar um jeito de integrar o novo espaço dos galpões. Vou te passar uma planta baixa e em cinco minutos você vai entender tudo. Pensa num conceito e vamos nos falando.
Silêncio. Arquiteta pensando: Simples? E agora?
Cena: O pessoal trabalhando na preparação daquele filme, incrível e complexo, e, ao lado, aqueles galpões de antigas oficinas e concessionarias totalmente detonados, tudo cimentado, poucas aberturas e pouca luz. Áreas já sendo invadidas, assim mesmo, uma divisória aqui, outra ali, para novos trabalhos, filmes publicitários, testes de Elenco, trabalhos de Pós-Produção, tudo ali, pulsando e pedindo espaços (melhores?).
Muita energia e criatividade, e certo receio, expresso por vários, de que, ao crescer, reformar e construir com projeto, perderiam a informalidade criativa, os encontros casuais e decisivos nos corredores. Um arquiteto imporia uma ordem racional/ estética? Viria estragar a brincadeira, o trabalho espontâneo e criativo?
E agora?
O que fazer com esse desejo de rua?
Recorri ao texto de Italo Calvino, em Cidades Invisíveis, no embalo de Ensaio sobre a Cegueira.
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebe-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem continuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preserva-lo, e abrir espaço”.
Sendo assim, a meu ver, eles tinham duas alternativas:
– A primeira: ok, vão em frente, sem projeto nem arquiteto, com espaços construídos da noite para o dia. Toca o pau! Libera a ocupação.
– A segunda: “é arriscada e exige atenção e aprendizagem continuas: tentar saber reconhecer quem e o que no meio do inferno, não é inferno, e preserva-lo, e abrir espaço”.
Fechamos com a segunda e fomos em frente. Fernando, cineasta, arquiteto de formação e jardineiro (como diz), representando a O2, participou ativamente do processo, bancando a opção. Como Buscapé, em Cidade de Deus, “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”: tratava-se de “abrir espaço”.
Para uma Produtora de Filmes, abrir espaço, em dois sentidos:
– Como uma cidade que acolhe, abrindo caminhos, vielas, pátios, ruas, praças, criando espaços de convivência e diversos locais de trabalho. A cidade como local de encontro e troca de ideias, de trabalho, lazer, cultura e arte. Muita luz e fluidez, jardins, contemplação e reflexão.
– E, abrir espaço para novos conteúdos, filmes, séries de TV e longas. Mais entretenimento, cultura e arte.
O trabalho de Arquitetura se deu passo a passo, em camadas, mantendo as cascas e articulando os galpões de diversos usos com circulações claras e informais. Estruturas / caixas de madeira ocupando os espaços e criando vazios, curingas.
A cada camada superposta, na horizontal e na vertical, com aberturas e entradas de luz e jardins, fronteira a fronteira, em plantas e cortes, até chegar às elevações das ruas. Abrir. Se comunicar com a cidade, o bairro: levar/ trazer vida, civilidade.
Muitos desenhos, croquis, e-mails, reuniões, projetos executivos e complementares. Muitos profissionais em obra, equipe de arquitetura, paisagismo, engenharia, estrutura, ar condicionado, elétrica, telefonia, hidráulica e reuso de água, comunicação visual, iluminação, design têxtil, diversos fornecedores e serviços.
Uma verdadeira produção de Espaço.
E assim foi a historia. Simples! Em cinco minutos: um ano por minuto.
Julho 2007/ julho 2008, no primeiro minuto:
– Levantamento do espaço físico e do programa.
– Estudo preliminar e anteprojeto funcionando como roteiro.
– Divisão em três etapas de obra.
– Definição da construtora e esquema de gerenciamento (O2, arquitetura e engenharia) e instalação de escritório na obra.
– Reforma de telhados.
Segundo: julho 2008 / julho 2009
– Projetos executivos, obra e jardins da Etapa 1 – galpões de elenco, financeiro, áreas externas de estacionamento e calçadas.
Terceiro: julho 2009 / dezembro 2010
– Projetos executivos, obras e jardins da Etapa 2 – pós-produção (mobiliário produzido nos estúdios de Cotia).
Quarto: 2011
– Projetos executivos, obras e jardins da Etapa 2 – galpão de produção 1 e 2, copa, sala de projeção, recepção, entrada e áreas externas, pátios, praças e calçadas.
Quinto: 2012
– Projetos executivos, obras e jardins da Etapa 3 – galpão de produção 3, produções executivas, atendimento e diretores.
Em fevereiro de 2013 concluímos o processo de projeto e obra da reforma da O2 Filmes.
Um processo aberto, criativo e transformador.
Simples! E complexo, ao mesmo tempo.
notas
NE – Este texto foi originalmente publicado em: Revista Contraste, n. 2, São Paulo, FAU USP, 2º sem. 2013.
ficha técnica
projeto
Reforma e ampliação O2 Filmes
local
São Paulo SP Brasil
ano
2013
área
Terreno/ intervenção: 7600 m²
Construída: 5100 m²
arquitetura
Arquiteta Cristina Xavier (autora), arquitetos Ana Lucia Pacheco, Felipe Góes, Fernando Rodrigues e Tatiana Onozato (colaboradores)
paisagismo
Ciça Souza
design têxtil
Renata Meirelles
comunicação visual
Roberta Asse
consultoria de cores
Haydée Belda
perspectivas
João Xavier
construtoras
Klar Construtora e Construtora Nartex
estruturas de madeira
Ita Construtora
consultoria estrutura de concreto
Engenheiro Vicente di Stefanno
foto
Cristiano Mascaro / Pedro Kok / Felipe Góes