Proporcionar dignidade e sentimento de pertencimento aos muitos povos e distintas comunidades, que coabitam locais com recursos escassos e infraestruturas precárias, pode ser considerado um dos grandes desafios deste século 21. Trata-se de um problema conhecido e que persiste no contexto atual, não recebendo à atenção necessária de governos e grupos economicamente mais privilegiados. Esse é o caso, em boa medida, da recente história de regiões que conformam Madagascar, a maior ilha do continente africano, país reconhecido por suas características naturais únicas. Ao mesmo tempo, entretanto, Madagascar detém um dos Índices de Desenvolvimento Humano — IDHs mais baixos do mundo, retrato dos profundos contrastes socioeconômicos e da miséria que assola a maioria de seus habitantes.
Nesse contexto, a organização Fraternidade Sem Fronteiras — FSF, por meio de seus diversos colaboradores, voluntários e instituições parceiras, promove e fomenta movimentos de auxílios humanitários na porção Sul da ilha, mais precisamente nos arredores de Ambovombe-Androy, cidade localizada na província de Toliara. Definida basicamente por uma economia agrícola de subsistência, e com grande desmatamento para a venda de carvão, utilizados pela população para se aquecer e para cozinhar diariamente; essa região sofre constantemente com a falta de água potável para o consumo e mesmo para irrigação de suas terras. As distintas ações de ajuda emergencial, promovidas pela FSF em Madagascar, buscam, nesse sentido, dar o mínimo de condições para uma vida mais digna, principalmente para as crianças que inevitavelmente são os mais vulneráveis, sofrendo constantemente com a desnutrição e diversas doenças, dentre elas a teníase, neurocisticercose, bicho do pé e a subnutrição, causa de muitas mortes de crianças na região.
O trabalho, que se iniciou em fevereiro de 2017 com o Centro de Acolhimento da FSF, em Ambovombe, passou a receber, ao longo dos últimos dois anos, mais doações e voluntários, permitindo a aquisição de um novo terreno de 45.000 m². Esse esforço, aliado à participação e à contribuição direta da comunidade local, possibilitou à criação de um novo e permanente projeto conhecido como Campo da Paz. O local, que atualmente atende mais de 2.500 pessoas diariamente, em sua maioria crianças e mães, oferece atendimento médico, fornecimento de água limpa para consumo e higiene e alimentação de qualidade, que muitas vezes é a única que terão acesso naquele dia. Esses serviços são realizados em grande parte sob a cobertura pavilhão do refeitório, projeto da união entre o grupo Arquitetura Sem Fronteiras e o escritório Bernardes Arquitetura, inaugurado no primeiro semestre do ano de 2021, conformado por sete grandes módulos de 24x6 metros — espaço que abriga o preparo e consumo de alimentos e que colabora nutrindo diariamente milhares de crianças.
A edificação é definida por coberturas de telhas de zinco que conformam meias águas. Estas, por sua vez, se apoiam sobre terças e tesouras de madeira estruturadas por pilares de concreto. O desenho e disposição das águas das coberturas também proporcionam — por meio das correntes ascendentes de ar — a melhora do conforto térmico das áreas internas; além da importante tarefa de captação de água da chuva — escassa na maior parte do ano na região. As fundações são definidas por sapatas de concreto, enquanto as divisões foram erguidas em blocos de concreto executados pelos próprios trabalhadores locais, gerando espaços de usos específicos, como, por exemplo, a cozinha do refeitório e locais para conservação dos mantimentos.
As soluções construtivas adotadas no refeitório seguiram as técnicas mais utilizadas pelos construtores locais, já que mão de obra é muito escassa na região. Tal fato torna-se relevante, pois permite estreitar o diálogo entre os habitantes locais e os espaços idealizados por profissionais voluntários no Brasil. Em outras palavras, ainda que tratando-se de edificações de caráter emergencial, há constantemente o desejo de se propor uma arquitetura que carregue uma preocupação estética e que essa possa ser (re)conhecida por seus construtores e igualmente usuários. Assim, não se trata da busca por reproduzir uma arquitetura vernacular local, mas sim de se concretizar uma intenção estética coerente frente às exigências programáticas mínimas exigidas, possibilidades técnicas e orçamentárias, e respectivos prazos de implementação. Vale salientar que durante a construção do primeiro pavilhão, a equipe de profissionais voluntários da FSF (grupo Arquitetura Sem Fronteiras) e Bernardes Arquitetura viajou até Madagascar, onde tiveram a oportunidade de realizar in loco um workshop das técnicas construtivas adotadas pelo projeto, as apresentando aos moradores locais, por sua vez também construtores, e que poderão reproduzi-las na materialização de futuras construções. Para viabilizar a autossustentabilidade do sistema construtivo, um pequeno galpão para produção de blocos de concreto foi montado no local, permitindo que houvesse baixo custo na fabricação dos componentes e dispensando a necessidade de importação da matéria-prima de outras regiões do país.
Em apoio ao objetivo central do projeto, que é a causa Humanitária, e buscando ir além dos limites físicos do perímetro do Campo da Paz, a FSF junto a equipe da Bernardes Arquitetura e do grupo Arquitetura Sem Fronteiras, idealizaram também o projeto dos Centros de Nutrição; uma construção que busca atender regiões ainda mais necessitadas no Sul da ilha, provido de espaços de avaliação, refeitório, cozinha, farmácia e armazenagem. Seguindo os mesmos princípios do refeitório, a estrutura do pavilhão, por sua vez de escala reduzida, é conformada a partir de dois módulos de 6x4 metros cada, e cobertura duas águas apoiada em tesouras e pilares de madeira, sendo este responsável por acolher os atendimentos médicos e espaços de alimentação. Os fechamentos são em tijolos de barro. Diferentemente do refeitório, aqui, a matéria-prima adotada é conveniente a disponibilidade material na região e sobretudo, pelos conhecimentos dos construtores locais. Por fim, ressalta-se também a adoção de um elemento estruturador em ambas as construções: as calhas posicionadas entre os planos das coberturas, sendo as mesmas responsáveis por conduzir as águas captadas para os devidos locais de armazenamento. Elemento indispensável para a vida, a água potável na região de Ambovombe é de extremo valor. Felizmente, para um grupo crescente de seus habitantes, fruto de ações humanitárias promovida por diversos voluntários, ela passa a fazer — ainda que com muitas restrições —, parte do cotidiano diário de sua população.
ficha técnica
projeto
Refeitório e Centro de Nutrição em Madagascar
local
Campo da Paz, Madagascar
ano
Projeto: 2019
Obra: 2021
arquitetura
Arquitetos Dante Furlan, Bruno Milan, Lais Santos, Daniella Matavelli, Priscila Alexandre / Bernardes Arquitetura/Arquitetura Sem Fronteiras
projeto estrutural de madeira
Rewood
construção
Trata
voluntários de obra
Arquitetura Sem Fronteiras e voluntariados locais
foto
Serge Robson / Fraternidade Sem Fronteiras