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projects ISSN 2595-4245


abstracts

português
Investigação teórico-prática com foco na arquitetura da paisagem que propõe um retiro espiritual e físico tomando-se o ninho e o devaneio como signos da relação do eu consigo mesmo e com o espaço frente às desordens da atualidade.

english
Theoretical-practical investigation focusing on landscape architecture that proposes a spiritual and physical retreat considering the nest and reverie as signs of the relationship between the self and itself and with space in the face of today's disorders

español
Investigación teórico-práctica centrada en la arquitectura del paisaje que propone un retiro espiritual y físico considerando el nido y la ensoñación como signos de la relación entre el yo y sí mismo y con el espacio frente a los trastornos actuales.

how to quote

PORTAL VITRUVIUS. Ninho. A fenomenologia do habitar. Projetos, São Paulo, ano 22, n. 255.01, Vitruvius, mar. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/22.255/8542>.


Perspectivas críticas ao habitar

A falta de condições de suporte existenciais pela arquitetura massificada atual que se concentra predominantemente na função prática e deixa os processos de significação ao acaso foi a inquietação que motivou à essa investigação teórico-prática. O ritmo acelerado da vida contemporânea e a dificuldade de encontrar propósito e significados leva a uma desvalorização do ser pois existe uma necessidade/vontade humana pelo simbólico. Essa condição imprime significados físicos, emocionais, intelectuais que vão incitar padrões de comportamento e manipulação do corpo em prol de uma significância e identificação social, cultural e espacial. Esse reconhecimento do meu eu em si mesmo e no mundo potencializa uma ligação de pertencimento.

A experiência da hostilidade e desorientação gerada pela alienação em relação ao espaço tem tomado então o lugar do verdadeiro sentido de habitar. O termo genius loci (1) exemplifica a relação fundamental do homem com o lugar onde ele vive como uma questão de sobrevivência, no sentido físico e psicológico, isto é, como fundação ontológica. A base de apoio existencial dependeria de duas capacidades do homem relativas ao espaço: orientar-se e identificar-se. Fundamentada em uma abordagem fenomenológica, a pesquisa propõe um retiro espiritual e físico que pretende incitar a criação de uma rede ontológica pelo sujeito, à partir de condições materiais e imateriais.

Martin Heidegger (2) desvela que a maneira como você é e eu sou, o modo segundo o qual somos sujeitos sobre essa terra é o habitar. A relação entre o homem e o lugar habitado revela então não só o caráter e essência daquele espaço como também pressupõe a identidade humana e o vínculo de identificação ali criado. A criação de um propósito existencial está portanto em transformar um sítio em lugar revelando os significados presentes de forma potencial no ambiente escolhido. Com base nesse tipo de análise é possível compreender a vocação do lugar e através da arquitetura propiciar o homem a habitar.

Genius loci: o espírito do lugar

O sítio escolhido foi a Serra da Calçada, no município de Brumadinho MG, localizado à 25km da capital mineira e nas proximidades das ruínas do Forte de Brumadinho, um exemplar de arquitetura civil do século 18.

Serra da Calçada, mapa de localização, Brumadinho MG
Elaboração Julia Zanon, 2019

O percurso se conforma como uma transição do mundo exterior ao interior, onde adquire-se uma posição de exposição às condições naturais do sítio, que estimulam e ampliam a noção do próprio corpo. O sol, as nuvens, os ventos são determinantes para a intensidade das sensações que vão se revelando ao longo do caminho. Percebe-se uma variedade de escalas, cores, padrões e geometrias que se mostram como estímulos visuais, táteis e orientativos. Toda essa diversidade é traço do endemismo local devido ao solo composto em predominância por campos rupestres quartiziticos e ferruginosos, rico em minério de ferro e que propicia uma alta especificidade de vegetação. A longitudinalidade da paisagem (cotas altimétricas que ultrapassam 1400 metros) garante uma dualidade perceptiva: ora os sentidos são direcionados pelo micro, ora pelo macro.

Serra da Calçada, formações rochosas típicas do local, Brumadinho MG
Foto Julia Zanon, 2019

A presença de inscrições rupestres em diversas grutas constitui um patrimônio espeleológico da região e representam parte dos rastros de ocupação e significação histórica deste local. O Forte de Brumadinho e uma lavra a céu aberto, localizados próximo à área de intervenção constituem um sítio arqueológico relacionado à economia da mineração iniciada no século 17. Este complexo evoca uma memória coletiva que foi fruto de um processo no contexto social citado e se torna assim como as pinturas rupestres, uma ponte direta ao passado. Temos então nesse lugar uma tensão dialética entre a lembrança e o esquecimento, uma vez que o que está distante é resgatado para o presente (3).

O tempo do lugar

A memória aparece como parte indispensável do conceito dessa investigação pois o seu resgate representa tanto um melhor entendimento do lugar quanto do próprio sujeito e suas respectivas essências. As experiências constituem o corpo sensível de um sujeito que é vinculado ao mundo e às coisas através delas mesmas. A lembrança aparece como uma condição imaterial que resgata uma marca arquivada pela experiência do passado para uma ação presente. O movimento dinâmico que nos transporta para outro momento só acontece quando algo possui significado para nós, portanto a existência da memória está relacionada à identificação. A supressão ou anestesia dos processos de significação tendem a condicionar os processos de esquecimento.

O tempo nos é então remetido. Para existir o sentimento de passado é preciso que haja um instante entre o presente e o passado. O corpo é o limite entre estes tempos, uma vez que ele é o condutor e o influenciador desse movimento. A lembrança surge como uma repetição não linear de acontecimentos do passado, é um destaque em um conjunto de ocorrências que estão inseridos em um contexto (espacial, temporal, social). E, o resgate acontece dentro de um quadro de interesses atuais e momentâneos. O tempo se revela então em uma condição autoral pois remete a uma relação individual entre o ser e o mundo, e em uma condição não linear pois é um instante estabilizado e descontínuo, onde existe consciência do mesmo.

Habitar poeticamente

A poesia é incorporada nas reflexões acerca do habitar que se revela como “estar na presença dos deuses e ser tocado pela proximidade essencial das coisas” (4). Essa afirmação revela um habitar que está em face do sagrado e também em face do que é terreno, próximo. Pode-se dizer então que o indivíduo habita o espaço que constitui o entre instaurado entre céu e terra. E ademais que o habitar não é estático, podendo ser descrito como um permanente estar a caminho. Na busca da construção de significados, o indivíduo deve também se pôr a caminho, no sentido de questionar o lugar, o espaço abrindo assim um acesso à essência do seu habitar.

Heidegger apresenta o fenômeno de “não se sentir em casa" (5) como uma condição onde o indivíduo é colocado fora da sua esfera de intimidade. Pode-se entender que nesta condição as necessidades espirituais não estão sendo supridas. A relação distante entre o sujeito contemporâneo e o habitar pode ser então reiterada pois a arquitetura que é em grande parte reproduzida atualmente atende somente às funções práticas.

O filósofo francês Gaston Bachelard associa o verbo encolher à fenomenologia do habitar, e, como o ninho reflete uma primitividade imaginária do anseio de se encolher em um refúgio "como um animal em seu buraco", movimento que conduz à ideia de um dinamismo de retirada (6).

O ninho representa então o momento do habitar e, traz consigo uma imagem com valor ontológico que tem como desígnio retomar a sensibilidade do poder do refúgio, da intimidade. O estímulo da imaginação pela imagem aprofunda lembranças vividas e assim desprende-se do medíocre. O retiro espiritual e físico voltado para a condição transitória da dimensão do ser humano e sua relação com o espaço e a natureza é portanto um retorno à verdadeira essência e, por vezes, o lamento dessa intimidade perdida.

Como segunda intenção projetual têm-se o desejo de potencializar o espaço para propiciar momentos de devaneio, sendo esse uma alternativa à produção de significação. Como um fenômeno espiritual, o devaneio é uma forma de se atingir o equilíbrio psíquico. O devaneio está livre de qualquer propriedade relacionada à função. Ele nasce na solidão, na tranquilidade, no engrandecimento da realidade através do sonho. A auto-valorização é necessária pois é o momento em que usufruo do meu próprio ser. Portanto, a intenção é a criação de espaços para estes instantes de significação. As práticas de meditação, solidão, silêncio, contemplação, reflexão, consciência, crescimento têm como objetivo ir além do que é fixado pela percepção dos sentidos e potencializam uma retomada de consciência do eu, que estimulam um fechamento sobre si mesmo mas também uma abertura sobre a extensão de suas próprias interpretações. O devaneio sugere uma suspensão do tempo onde a meta é a verticalidade: ou estou submergido na profundeza ou flutuando na altura. O tempo é então retido naquele instante.

Serra da Calçada, vista geral, Brumadinho MG
Foto Julia Zanon, 2019

A orientação espacial reflete uma necessidade de orientação psíquica do homem pois ela resulta em uma segurança emocional. O círculo é um símbolo associado à revelação do indivíduo em sua própria consciência, o que inclui o relacionamento entre o homem e a natureza, visto que este faz parte integral desta. O espaço projetado com a influência deste símbolo pode exercer uma atuação específica sobre o ser humano que experimenta aquele lugar.

No processo de materialização desses conceitos, a arquitetura pretende então admitir suas possibilidades em um espaço que permita o olhar para trás mas também aponte para direções futuras em um presente de suspensão momentânea.

Corpo sensível: do sujeito à arquitetura

Partindo então da sensação como fatores determinantes para a experiência do espaço e do próprio corpo, é proposto o reconhecimento de dois tipos de relação “eu-mundo”. Segundo Iñaki Ábalos (7) são elas: a percepção imediata que é “ativada pela ação das coisas frente ao sujeito em sua presença”; e a percepção ligada à rememoração e imaginação que é ativada por uma memória pessoal em uma rede de intencionalidades.

As estratégias de materialidade, articulação formal e o exercício do detalhe foram pensados de forma que a percepção pudesse ser potencializada e sensações fossem reforçadas à medida em que novas são criadas.

A proposição do exercício da caminhada manifesta-se como um princípio conceitual revelado no projeto. Em um primeiro momento a caminhada é uma condição para o acesso à área de intervenção e posteriormente, ela se transforma em possibilidades de exploração, novas perspectivas visuais, eventos como meditação individual ou em grupo. O corpo em movimento sente a oscilação entre o espaço estático e o espaço dinâmico e, dessa forma, é possível estimular sentidos que afloram de relações contrastantes mas complementares.

A implantação foi prevista de forma que fosse possível reconhecer a participação do Forte de Brumadinho dentro das condições desejadas. As ruínas encontram-se em nível inferior em relação à implantação do projeto. O espaço livre para a contemplação do conjunto antigo é preservado e o seu posicionamento precede o ponto de acesso à nova área projetada. Os caminhos já existentes e os futuros afirmam a continuidade desses elementos na da paisagem do mesmo modo que realçam a singularidade de cada tempo ali retratado.

Serra da Calçada, vista do Forte de Brumadinho e trilha de acesso. Ao fundo, o distrito de Casa Branca, Brumadinho MG
Foto Julia Zanon, 2019

Sem recear uma relação direta com as ruínas do forte o uso das pedras nas estruturas que emergem do solo e se distribuem quase que de forma labiríntica, aparece como uma reinterpretação da forma e da espacialidade assim como uma expressão construtiva e material com um valor do passado. A partir de uma lógica radial, o espaço foi conformado para se atingir o fenômeno desejado: momentos de diálogo e experiência interior. Segundo Carl Jung (8), a imagem circular compensa a desordem através de um ponto central em relação a qual tudo é ordenado. A estruturação de diferentes pontos “de centro” e diferentes raios orientou então o desenho espacial. Dessa forma, pode-se entender o uso deste símbolo para retomar o valor de uma condição humana sensível na qual a arquitetura pode ter papel determinante.

Detalhe da construção do Forte de Brumadinho MG
Foto Julia Zanon, 2019

As aberturas nessas estruturas são direcionamentos aos diferentes campos perceptivos. As formas que sugerem olhos aparecem como uma força de integração entre o ato de olhar e o evento proposto pelo espaço que é a contemplação. “Compreende-se que o olho tenha a vontade de ver suas visões, que a contemplação seja também vontade” (9). A perspectiva gerada pelo desenho da abertura permite não só um aprofundamento da paisagem mas também da intimidade de quem observa. A possibilidade de captar novas e diferentes realidades visíveis e invisíveis depende da intensidade em que cada um se dispõe a observar. Os rasgos que encerram também abrem enquadramentos de vista e criam focos de concentração. Permitem diferentes comunicações, ora com o céu, ora com as montanhas, ora com o horizonte.

Paralelamente, a pedra também é objeto de um trabalho de escala elucidando o natural se transformando no artificial. Uma mistura de pedras locais triturada com o solo local é passada em uma prensadeira resultando em um aglomerado que pode ser modelado e se transformar em um piso. “Para um terrestre, todas as fontes são petrificantes. Aquilo que saí da terra guarda a marca da substância das pedras” (10).

Outro material utilizado foi o aço corten, que evidencia um contraste de força na relação com a materialidade do projeto. Em oposição à estaticidade da pedra, o aço utilizado na cobertura exprime uma leveza e permeabilidade visual, com o uso de uma tela metálica. A cobertura não funciona como elemento de proteção às intempéries e sim como uma estrutura de dinâmica temporal do projeto. O jogo de balanços, alturas e inclinações evocam a noção do tempo à medida em que as variações de luz e sombra acontecem durante o dia. A composição formal busca um diálogo com os afloramentos rochosos do lugar em uma ligação indireta e de diferente materialidade.

Os novos caminhos foram pensados neste mesmo material na intenção de se mimetizarem junto a paisagem em forma de passadiços sobrelevados em relação ao terreno irregular e rochoso. O uso de grelhas permeáveis permite que a infiltração da água no solo, o crescimento da vegetação e o habitat dos animais não sejam comprometidos pela ocupação das trilhas.

Os detalhes de encontro entre materiais são de grande importância pois devem se dar de forma a preservar uma continuidade temporal e um movimento trans escalar: do macro para o micro e vice versa, além de um movimento de ordenamento onde o natural se transforma em artificial. De acordo com Agripina Ferreira (11) e seus estudos sobre a obra bachelardiana apesar da multiplicidade de transformações e associações possíveis, a matéria sempre permanece a mesma. Em sua totalidade, a intervenção proposta pode ser vista como um rastro contemporâneo que se junta aos rastros do próprio lugar: as trilhas atuais, os caminhos coloniais, o forte e as pinturas rupestres.

Ninho. A fenomenologia do habitar, mapa de texturas e cores locais, Brumadinho MG, 2019. Arquiteta Julia Furtado Zanon
Elaboração Julia Zanon

Desfuncionalizar

Ao questionar a prática funcional que pretende sempre responder à um determinado uso, a arquitetura é pensada como enfrentamento de um problema atual da disciplina estimulando uma discussão e um confronto com os paradigmas atuais de produção arquitetônica no Brasil. Existe uma grande perda da dimensão da importância ética dentro da profissão que acaba sendo avaliada como uma simples questão de ordem técnica dentro de uma prática comercial mercadológica. O arquiteto não pode ter seu papel reduzido à um observador e replicador de modelos disciplinares domesticadores e desumanizados que fazem dos seres humanos massa letárgica. Mas devem sustentar uma prática profissional que reconhece a importância transformadora da arquitetura na relação íntima entre espaço e sujeito.

notas

1
NORBERG-SCHULZ, Christian. O Fenômeno do Lugar. In NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965–1995). 2ª edição. São Paulo, Cosac Naify, 2008, p. 454.

2
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 2.

3
NORA, Pierre. Between Memory and History: Les Lieux de Memoire. In ROSSINGTON, Michael; WHITEHEAD, Anne (org.). Theories of Memories. A Reader. Edinburgh, Edinburgh University. Press, 2007.

4
SARAMAGO, Ligia. Entre a terra e o céu: a questão do habitar em Heidegger. O que nos faz pensar, v. 30, Rio e Janeiro, PUC-Rio, 2011, p. 76.

5
Idem, ibidem, p. 75.

6
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 257.

7
ÁBALOS, Iñaki. A boa-vida. Visita guiada às casas da modernidade. Barcelona, Gustavo Gili, 2001, p. 95.

8
JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 385.

9
FERREIRA, Agripina. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina, Eduel, 2008, p. 47.

10
Idem, ibidem, p. 150.

11
Idem, ibidem, p. 121.

ficha técnica

projeto
Ninho. A fenomenologia do habitar

local
Brumadinho MG

ano
2019

arquitetura
Arquiteta Julia Furtado Zanon

sobre a autora

Julia Furtado Zanon é arquiteta e urbanista graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em 2019, pós-graduanda em História da Arte pela mesma. Desenvolve pesquisas sobre espaço, memória e corpo relacionando arte e arquitetura.

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