No título do livro – A República ensina a morar (melhor) – há a sugestão de duas premissas que conduzem a um silogismo, cerne do mais recente livro do arquiteto e professor Carlos A. C. Lemos. Ao se debruçar sobre a moradia das décadas seguidas à proclamação da República, o autor desenha por meio da arquitetura um arcabouço histórico para entender as razões pelas quais uma série de normativas municipais e estaduais vão qualificar as maneiras de construir e morar da população remediada, da casa do rico e de seu oposto. O positivismo, o higienismo ou sanitarismo, e o moralismo fim-de-século diligenciaram pelo modo correto de habitar numa cidade ainda de feições coloniais, excitada e carente de transformações, como a São Paulo movida pela riqueza do café na passagem do século 19 para o 20.
Este 15° livro do arquiteto vem se alinhar à trilogia Cozinhas, etc., Alvenaria Burguesa e Casa Paulista. Estudos que se complementam, se sombreiam, se confrontam, seu autor revisita um tema do qual foi um dos pioneiros na FAU. O exame de velhos cortiços até a ostensiva casa burguesa paulista e as múltiplas gradações intermediárias constituiu parte ponderável de sua longa carreira e dedicação como pesquisador, bem como do professor que orientou inúmeras investigações em pós-graduação em torno dessa temática, gerando dissertações e teses, e configurando a produção de um respeitável volume de conhecimento muito peculiar ao quadro da pesquisa universitária paulista em arquitetura.
Ao percorrer a legislação no tocante à moradia, do Código de Posturas Municipais de 1886 até o Código Sanitário Estadual de 1918 (cuja vigência se estendeu até meados do século 20), e as várias determinações que providenciaram a busca da habitação higiênica, o estudo evidencia a vontade profilática no âmago de artigos e parágrafos pouco compreendidos pela população leiga, nem sempre afeita a cumprir regras emanadas pelas autoridades.
Normas que prescreviam a organização dos espaços da intimidade, os interiores das moradias. Os códigos se intrometeram no íntimo do lar – mas uma intimidade e um lar que devem ser relativizados diante da natureza de seus ocupantes. Cortiços, casas operárias, casas de classe média baixa, classe média e média alta, palacetes e construções com usos mistos constituem as sete categorias de habitação que vão orientar uma original contribuição do livro: um estudo estatístico examinando as dimensões das dependências das moradias da época, delineando como foram as casas paulistanas nos anos iniciais da imposição das novas regras republicanas a partir de uma amostragem de 317 plantas de aprovação submetidas à prefeitura entre 1893 e 1907. À natural aridez que emana de interpretações derivadas de números e tabelas, se contrapõe uma outra amostragem apresentada na obra: uma seleção de plantas baixas acompanhadas de sucintos comentários que tornam mais inteligíveis certas sutilezas que se esmaecem se observadas apenas as estatísticas.
No último capítulo, um conjunto de organogramas intenta esclarecer as variações dos modos de morar a partir das relações e usos que se estabelecem nas dependências da habitação, ao longo do tempo. Fascinante construção esquemática que deve ser observada atentamente pela riqueza de hipóteses interpretativas possíveis a partir da composição e decomposição das partes.
A elegante e fluente escrita tão característica do autor conduz uma narrativa cujo teor é reforçado por outra peculiaridade em sua elaboração. Carlos A. C. Lemos teve estreito contato com o que expõe não apenas como pesquisador, mas como profissional relacionado à questão, como arquiteto da Engenharia Sanitária em sua juventude.
nota
Texto originalmente publicado no Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, Sábado, 16 de outubro de 1999. Reprodução proibida sem autorização do autor.
sobre o autor
Hugo Segawa é arquiteto, professor-doutor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo.