O tema da oscilação entre o interesse ou desinteresse pela arquitetura latino-americana entre os estudiosos do “Primeiro Mundo”, seria digno das pesquisas realizadas com os recursos informatizados por Juan Pablo Bonta sobre a teoria e a crítica nos Estados Unidos (1). Ao longo do século XX, ocorreram sucessivas ondas de apaixonados estudos resgatando as contribuições locais ao Movimento Moderno. Iniciados nos anos trinta por Alberto Sartoris – que incluiu obras do Continente em sua Encyclopédie de l´Architecture Nouvelle –, se prolongaram nos catálogos editados pelo MOMA de Nova York: o Brazil Builds realizado por Philip Goodwin em 1942 e Modern Architecture in Latin America since 1945 de Henry-Russell Hitchcock. Nos anos sessenta foi Brasília quem atraiu a atenção – positiva e negativa – dos historiadores, assim como a relevância de algumas personalidades: Carlos Raúl Villanova em Venezuela – estudado por Sybil Moholy Nagy –, e Clorindo Testa na Argentina. Nikolaus Pevsner afirmou naquela ocasião (1963) que o Banco de Londres e América do Sul em Buenos Aires, constituía uma obra digna de figurar entre as principais do “Primeiro Mundo” (2). Ao receber Luis Barragán em 1980 o cobiçado Prêmio Pritzker, surgiu uma nova onda de publicações difundindo na Europa e Estados Unidos a produção latino-americana, resumida nas obras de Niemeyer, Legorreta, Barragán, Miguel Ángel Roca, Clorinda Testa, Ricardo Porro e Rogelio Salmona. Autores pouco relacionados com a área – por exemplo, Kenneth Frampton, Manfredo Tafuri, Francesco dal Co, Josep Maria Montaner –, se aproximaram superficialmente do tema em busca das estrelas – ou negando-as –, ainda que sem descobri-las em sua totalidade, como ocorreu com o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, recém iluminado ao receber o Prêmio Mies van der Rohe 2000 (3). Valerie Fraser se insere, no início do século XXI, dentro desta corrente de estudiosos e críticos.
É arriscada a tarefa de entrar num campo do conhecimento arquitetônico no qual já tratou com profundidade um grupo considerável de críticos locais. O acúmulo de livros, textos e ensaios publicados por Marina Waisman, Ramón Gutiérrez, Roberto Segre, Roberto Fernández, Silvia Arango, Arturo Almandoz, Francisco Liernur, Hugo Segawa, Ruth Verde Zein, Enrique de Anda, Carlos Eduardo Comas, Antonio Toca, Humberto Eliash, Mariano Arana e outros; definiram teses e elaboraram documentos imprescindíveis sobre o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo de seus respectivos países. A autora, ao percorrer em várias ocasiões a região, conheceu alguns destes trabalhos – ainda que não todos os necessários –, com o fim de amadurecer sua visão pessoal sobre os temas tratados no livro. Formada em história da arte em Inglaterra, centrou sua atenção sobre o vínculo entre a arquitetura e o Estado no México, Venezuela e Brasil entre os anos trinta e sessenta; e também sobre a inter-relação com as artes plásticas, tanto nas duas cidades universitárias de Caracas e México D.F., como nas obras da vanguarda brasileira – o Ministério de Educação e Saúde e a Cidade Universitária de Rio de Janeiro – até Brasília. Ainda que sua análise da produção dos países citados não pretenda alcançar um exaustivo aprofundamento, conquistou algumas aproximações novas: no México, assinala aspectos desconhecidos da relação de José Vasconcelos com a arquitetura acadêmica mais que com a vertente neocolonial, e apresenta um desenho original de O´Gorman (1932) – talvez antecessor do conjunto Pedregulho de Reidy – de um bloco de habitações coletivas com serviços comuns; da Venezuela, aparece uma foto inédita do pavilhão realizado por Carlos Raúl Villanova e Luis Malaussena na Expo Universal de Paris de 1937, destacando bastante a figura de Cipriano Domínguez, ainda pouco difundida fora de seu país; sobre o Brasil, é provocativa a interpretação da obra paisagística de Burle Marx, desde sua intervenção no MES do Rio de Janeiro (1938).
Sem dúvida, cabe assinalar alguns aspectos que não foram totalmente esclarecidos em sua tese. Não é fácil privilegiar três países no contexto latino-americano sem referência às tendências globais do período estudado, tanto no que se refere ao apoio estatal a obras significativas no período de entreguerras – mesmo os países que não tiveram governos “fortes”, casos da Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile, promoveram edifícios públicos de importância –, como no surgimento de um movimento “regionalista”, a partir dos anos sessenta, resultado da busca de uma identidade nacional latino-americana. A autora assume como paradigmas os edifícios da CEPAL em Santiago do Chile e as Escolas Nacionais de Arte de Havana – talvez sobre-valorizadas em sua significação no contexto latino-americano –, o caminho que elas representaram foram desenvolvidas também por múltiplos profissionais de cada país: Severiano Porto e Sergio Bernardes no Brasil, Fernando Martínez Sanabria, Rogelio Salmona e Laureano Forero na Colômbia, Eduardo Sacriste e Claudio Caveri na Argentina, Julio Vilamajó e Mario Payssé Reyes no Uruguai, Enrique Seoane e José García Bryce em Perú, entre outros. No epílogo do livro se emite um juízo injusto, superficial e descontextualizado sobre a crítica realizada por Roberto Segre a as Escolas Nacionais de Arte, sem recorrer às fontes bibliográficas recentes que justificaram a análise ideológica da mencionada obra crítica, alheia a qualquer vínculo conceitual com a então União Soviética (4).
Existem significativas ausências na temática estrutural – a relação Estado-Movimento Moderno e o conseqüente regionalismo – desenvolvida pela autora nos três países estudados: México, Venezuela e Brasil. No primeiro, surpreende a escassa presença de Luis Barragán, só citado fugazmente, cuja obra resume em termos estéticos e conceituais, as buscas iniciadas por O´Gorman e a Cidade Universitária. Pode se afirmar que o intimismo de Barragán pouco tinha a ver com as iniciativas construtivas do Estado mexicano, resultou numa obra paradigmática, o Museu de Antropologia de Pedro Ramírez Vázquez (1963), síntese entre tecnologia e tradicionalismo, seguido pelo hotel Caminho Real de Ricardo Legorreta e as igrejas de tijolo de Carlos Mijares. Edifícios que introduziram a linguagem regionalista na dimensão urbana local (5).
Na Venezuela, teria sido interessante aprofundar a delicada relação entre Carlos Raúl Villanova e o ditador Pérez Jiménez, fazendo alusão à vertente monumental que o governo apoiou com maior ênfase, materializada nos projetos de Luis Malaussena: a Escola Militar e o Passeio dos Próceres, obras contemporâneas à Cidade Universitária (6). Asimismo, resultaron obviados os profesionais que continuaron a herencia do Maestro, com anterioridade a a realização do Metro, obra descrita por Fraser: Tomás Sanabria, José Miguel Galia, Jimmy Alcock e Carlos Gómez de Llarena, entre outros.
É incompreensível a presença de inúmeros erros no estudo da arquitetura brasileira, ante a profusão de textos, ensaios e documentos publicados sobre o tema. Ao citar o texto de Lucio Costa, Razões da nova arquitetura, o coloca em 1930, como uma conferência na ENBA, quando foi escrito em 1934 como proposta para o curso de Urbanismo da Universidade do Distrito Federal (7). Sobre o MES, tampouco é verdadeira a afirmação de que “a maioria dos materiais foram importados do exterior”. A parte pesada da construção e a serralheria foram realizadas localmente e somente foram importados os equipamentos técnicos e as luminárias. Também atribui a solução final do projeto a Le Corbusier, quando ela foi elaborada pela equipe de arquitetos cariocas, sob a liderança de Oscar Niemeyer (8). O croquis de Le Corbusier que aparece na página 155 não se refere ao “segundo projeto” do Mestre para a Esplanada do Castelo, mas a reprodução do edifício terminado, realizada após a construção do MES, publicada na Oeuvre Complete e que tanto irritou a Costa e Niemeyer (9). Ao saltar de forma brusca da arquitetura de Rio de Janeiro para a de Brasília, fica totalmente incógnita a produção da década do sessenta. As figuras de Álvaro Vital Brazil, dos irmãos MMM Roberto (e não Milton) e Sergio Bernardes são fundamentais para compreender as alternativas de projeto que se contrapuseram a as imagens formais de Oscar Niemeyer. É certa que em São Paulo foi essencial a presença de Gregori Warchavchik para definir a Primeira Modernidade, o “regionalismo” paulista é incompreensível sem a presença de João Vilanova Artigas ou Joaquim Guedes.
Em resumo, cabe reconhecer o esforço significativo realizado por Valerie Fraser para interpretar algumas das vertentes da arquitetura moderna latino-americana. Os defeitos citados no empenam os objetivos do livro, de difundir a arquitetura da região entre os pesquisadores do “Primeiro Mundo”, pouco familiarizados com o tema. Sem dúvida, o estudo de nossa complexa realidade, implica um domínio mais detalhado das fontes elaboradas localmente em cada país, tanto sobre a arte e a arquitetura como sobre o novelo inescrutável dos fenômenos sócio-econômicos-culturais que definem o universo do “real maravilhoso” latino-americano. Apenas assim, a superficialidade do very typical, se transforma no descobrimento profundo da multifacetada paisagem arquitetônica que nos diferencia e nos caracteriza.
notas
1
Juan Pablo Bonta (1933-1996), arquiteto e crítico argentino, professor da Escola de Arquitetura da Universidade de Maryland, realizou um estudo sobre os historiadores e críticos da arquitetura mais importantes do século XX nos Estados Unidos, e como foram citados e referidos ao longo desse período, ordenando os dados estatísticos com a ajuda de computadores. Juan Pablo Bonta, American Architects and Texts. A computer-aided analysis of the literature, MIT Press, Cambridge, 1996.
2
Francisco Bullrich. Arquitectura Argentina 1960/70, Summa, n. 19, Buenos Aires, out. 1969, p. 37.
3
Nos referimos ao juízo depreciativo sobre a arquitetura brasileira que aparece na obra de Manfredo Tafuri e Francesco dal Co, Architettura Contemporanea, Electa Editrice, Milán 1979, pág. 337; à declaração de Kenneth Frampton, de desconhecer Paulo Mendes da Rocha em Malcolm Quantrill (Edit.) Latin American Architecture. Six Voices, Texas A&M University Press, Collage Station, 2000, pág. ix; e aos juízos emitidos por Josep María Montaner sobre os críticos locais em sua nota “Crítica de arquitetura em Latinoamérica”, publicada em Summa+, n. 38, Buenos Aires, ago./set. 1999, p. 178. Cabe assinalar que alguns scholars norte-americanos, como Quantrill – em seu livro participam Marina Waisman, Fernando Pérez Oyarzún, Mariano Arana, Louise Noelle, Silvia Arango e Alberto Petrina –, e Koshalek, tiveram o cuidado de apoiar-se nos críticos da região: Ver: Jorge Francisco Liernur, “América Latina. Los espacios do outro”, em Richard Koshalek e Elisabeth A. T. Smith, A fin de século. Cien anos de arquitetura, El Antiguo Colegio de San Ildefonso, The Museum of Contemporary Art, Los Ángeles, México D.F., 1998.
4
As críticas às Escolas Nacionais de Arte e à Brasília se basearam mais nos conteúdos ideológicos do que no questionamento a seus valores estéticos e à capacidade criadora de seus respectivos autores. Naquele momento (a década dos anos sessenta), se considerava o regionalismo formalista ou esteticista como um freio à necessária modernização “apropriada” – parafraseando a Cristian Fernández Cox – dos países latino-americanos. No caso de Cuba, se identificava a formação da sociedade socialista com a possibilidade de empregar tecnologias e métodos construtivos que permitissem resolver os agudos problemas habitacionais e o déficit de serviços públicos, dentro das possibilidades econômicas e materiais locais. De nenhuma maneira os juízos emitidos tiveram relação alguma com “a aproximação de Cuba à União Soviética”. Além disso, a autora não recorreu aos dois principais livros escritos sobre o tema: Roberto Segre Diez años de arquitetura em Cuba revolucionaria, Ediciones Unión, La Habana, 1970; e Arquitectura e urbanismo da revolução cubana, Editorial Pueblo e Educación, La Habana, 1989.
5
Se a tese da autora consiste em demonstrar que a arquitetura latino-americana maturou uma personalidade própria nas obras realizadas na década dos anos cinqüenta, devia culminar sua análise com as correntes e figuras que se desenvolveram na década de sessenta, e abrem um caminho contraposto à perda de identidade que se produz com o tecnocratismo das ditaduras militares e a influência do International Style corporativo. Por isso, Ramírez Vázquez, Carlos Mijares e principalmente Ricardo Legorreta, constituim a afirmação dos enunciados presentes na Cidade Universitária e a continuidade da estética de Barragán. Ver: Enrique X. de Anda, Historia da arquitetura mexicana, G. Gili, México, 1995; Enrique X. de Anda (Coord.), Ciudade de México. Arquitectura: 1921-1970, Gobierno do Distrito Federal, México; Conserjería de Obras Públicas e Transportes, Sevilla, 2001.
6
Todavia, a antítese entre Villanova e Malaussena não foi aprofundada na caracterização dos critérios assumidos pelo governo de Pérez Jiménez em relação à arquitetura. A vertente monumental era, sem dúvida, mais aceita que a corrente de vanguarda identificada com a Cidade Universitária. Um indício claro aparece na recusa oficial ao monumento para o coronel Carlos Delgado-Chalbaud realizado por Le Corbusier, com o respaldo de Villanova, que seria realizado por Malaussena. Ver: Silvia Hernández de Lasala, Malaussena. Arquitectura académica na Venezuela moderna, Fundação Pampero, Caracas, 1990; Alejandro Lapunzina, “La Pirámide e o Muro: notas preliminares sobre uma obra Inédita de Le Corbusier em Venezuela”, em Joseph Quetglas (Edit.) Massilia, 2002. Anuario de Estudios Lecorbusierianos, Fundação Caja de Arquitectos, Barcelona, 2002, p. 148-161.
7
Lucio Costa. Registro de uma vivência, Empresa das Artes, São Paulo, 1995, p. 108-116.
8
A documentação detalhada sobre a evolução do projeto do Ministério de Educação e Saúde está contida no livro de Mauricio Lissovsky e Paulo Sergio Moraes de Sá, Colunas da Educação. A construção do Ministério da Educação e Saúde, Edições do Patrimônio, Ministério da Cultura, Fundação Getúlio Vargas, Río de Janeiro, 1996.
9
Le Corbusier teve conhecimento do edifício terminado ao receber em seu estúdio de Rue de Sévres à engenheira Carmen Portinho (1945), esposa de Affonso Reidy, que lhe mostrou as fotos da obra. Logo, reproduziu na Oeuvre Compléte, o croquis que aparece neste livro. Na carta escrita por Lucio Costa em 1949, afirma “O esboço feito a posteriori, baseado nas fotos do edifício construído, e que você publica como se se tratasse de uma proposição original, nos causou, a todos, uma triste impressão”. Em Cecília Rodrigues dos Santos, Margareth Campos da Silva Pereira, Romão Veriano da Silva Pereira, Vasco Caldeira da Silva, Le Corbusier e o Brasil, Tessela/Projeto, São Pauo, 1987, p. 200.
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é atual coordenador do PROURB