A idéia de que a obra de arte apresente um bem de valor intrínseco, estranho ao trabalho comum, permeia a maioria dos estudos sobre a arte. A obra do historiador e pensador da arte Giulio Carlo Argan (1909-1992) refuta tal noção e parte de uma premissa contrária: a de que a arte consista num modo de produção de valor entre outros, portanto circunscrito historicamente, e de que assim constitua uma forma paradigmática de trabalho.
História da Arte Italiana, de Argan, lançada pela Cosac & Naif, é uma obra vasta e algo enciclopédica, em três volumes. Seu projeto é expressamente didático: dirige-se aos estudantes do ensino público médio e universitário, da Itália, e os livros também compreendem uma pequena coletânea, com textos de referência, de outros autores, organizados por Bruno Contardi, colaborador de Argan.
Analogamente, o acervo de ilustrações é abundante, e tem qualidade – inclusive na edição da Cosac & Naif – e portanto dispensa a consulta, pelo menos para o básico, a outras fontes. Tudo isto torna a obra extremamente útil ao estudante. Mas o seu interesse ultrapassa em muito o horizonte prático das obrigações escolares e contribui efetivamente para a sua dignificação. Pois oferece uma história da arte muito superior em termos de densidade de reflexão e de riqueza de dados à História da arte, de E. H. Gombrich, que a Zahar publicou, e que, sem tirar aqui o mérito de sua fluência e clareza, foi concebida originalmente para o curso secundário inglês. Ademais, para o leitor brasileiro que já leu algo de Argan, o conjunto pode ensejar uma visão mais sistemática acerca da obra vasta e complexa do autor.
Isto, no caso, é crucial, porque, diversamente da maior parte da historiografia didática de raiz anglo-saxã a que se recorre, a obra de Argan, precisamente por não ser de cunho empirista, pede uma aproximação ciente do raciocínio ambicioso e sistemático do autor. Com efeito, a se considerar o ponto de vista pós-moderno, que, como se sabe, gravita em torno da fragmentação e da recusa à historicidade – ou que, no dizer de Robert Kurz, faz da incoerência virtude –, o autor italiano será o último de uma linhagem de pensadores com a ambição de refletir sistematicamente.
Já foram publicados de Argan no Brasil: História da arte como história da cidade (Martins Fontes, 1992); Arte moderna – do Iluminismo aos movimentos contemporâneos (Companhia das Letras, 1993); Clássico Anticlássico – o Renascimento de Brunelleschi a Brueghel (Companhia das Letras, 1999); Projeto e destino (Ática, 2000). Há também uma ensaística notável e consistente, de autores brasileiros que discutem o pensamento de Argan (1).
Na obra presente, porém, se distingue mais facilmente o fio do pensamento do autor. Apesar do que o título sugere, a obra não se prende ao meio italiano. O título e a destinação ensejaram a Argan uma estratégia: dirigir-se a um público jovem e amplo, sujeito a uma educação de massa e a uma indústria cultural, já pautadas pela irreflexão e pela recusa do juízo histórico.
Se o estudante italiano é o primeiro interlocutor circunstancial, o móvel é levá-lo a se situar num ponto de vista histórico, dialético e materialista, extensivo a uma escala bem maior de interlocutores. Em síntese, o propósito do autor foi o de fazer uma história reflexiva – da arte ocidental, por certo-, que vem desaguar e nutrir os debates sobre a arte moderna.
Nesse sentido, o pretexto serve, porque a arte italiana, mais do que nenhuma outra, esteve ao longo de muitos séculos no centro dos acontecimentos da história da arte. O tema propicia, pois, um raciocínio sobre o desenvolvimento histórico das várias práticas e experiências denominadas de “arte”, que, no caso desta obra, abrange da pré-história e, a seguir, da arte minóica, de Creta, a um breve capítulo sobre o romantismo e o futurismo italianos.
A brevidade se explica; é que os três volumes em questão se ligam argumentativamente a um quarto, Arte Moderna, publicado originalmente, em 1970, ou seja, logo após os três em questão. E a mudança do título, apesar dos elos de ligação, também é explicável; não cabia aqui persistir sob a mesma denominação, uma vez que com o advento da arte moderna as linhas mestras desta independem do campo italiano, reduzido na modernidade a uma posição periférica.
De fato, a arte moderna, para Argan, se engendrou a partir do Iluminismo e em estreita conexão, mesmo se antitética, com a Revolução Industrial. Assim, com a industrialização tardia da Itália se somando ao peso de sua tradição de excelência artesanal e do individualismo autoral correlato, a arte italiana não dispôs da condição básica da nova arte e caiu fora da nova dinâmica produtiva. Com efeito, a lógica e a energia das transformações da arte moderna passavam a decorrer de uma confrontação ou tensão estabelecida com o sistema geral da produção, dado pela superação do modo de trabalho artesanal e pela produção em larga escala.
O leitor poderá notar que a perspectiva moderna de Argan se delineia a partir da consciência de um descentramento. Falará isso algo ao leitor brasileiro? Decerto, a excentricidade italiana, frente à dinâmica da arte moderna, comporta a valorização da excelência artesanal, conforme dito acima. Já, no Brasil, o descentramento frente a arte moderna é de outro teor e comporta, na sua bagagem, a desvalorização escravocrata do trabalho artesanal.
Não obstante essas diferenças opostas ou em simetria, acha-se, entretanto, alguma tangência hodierna entre tais descentramentos? O certo é que o interesse por Argan no Brasil é de fato bem maior do que em países mais próximos da Itália e nos quais a história da arte está bem arraigada, em outras bases teóricas – talvez, menos consistentes e sistemáticas-, como é o caso da França, da Inglaterra, sem falar nos EUA.
Sem opinar nessa discussão, que não cabe aqui, há um dado, no quadro brasileiro de caos e carência bibliográfica, que pode atuar para a compreensão no país da obra de Argan como surpreendente “vantagem comparativa” em relação ao ambiente intelectual dos países centrais. O dado, no caso, é que o autor enciclopédico e o especialista no patrimônio histórico italiano foi introduzido no Brasil como o observador da arte e da arquitetura modernas. Isso pode ter um efeito catalisador para a compreensão das premissas de Argan. O viés moderno ou o foco na atualidade constitui o prisma de Argan, segundo um partido filosófico que, além de já se delinear no Kant que se mostra interpelado pela Revolução Francesa e pelo destino do Iluminismo, explicita-se com o Hegel que prioriza a tarefa filosófica de investigar o presente.
Assim, o travelling, o modo de prospecção adotado por Argan deriva estruturalmente da experiência formadora da arte moderna. A urgência crítica de julgar a hora, que estrutura, além das suas sínteses, também a sua dicção e os seus pólos de interlocução, como os estudantes, o distingue dentre os demais historiadores e o leva a equiparar a história e a crítica de arte.
Fundar-se no saber da arte moderna não é um ponto de gosto pessoal. Esse partido está diretamente ligado à escolha filosófica de Argan, de tomar a arte como modo paradigmático de trabalho, e este, por sua vez, como base da consciência, seguindo a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e também a obra de Marx. Nesse sentido, a arte moderna foi, dentre todas as demais modalidades artísticas históricas, aquela que se concebeu fundamental e completamente como trabalho, totalizando-se reflexivamente como tal. Assim, ela tornou uma lei a explicitação de sua própria produção, mostrando os insumos, a ordem da produção e criticando o seu próprio valor. Desse modo, Argan não só concebe a arte como uma entre outras formas de produção de valor, mas como “liberação do trabalho de suas negatividades sociais” (Occasioni di critica).
Logo, é a partir da arte moderna, posta como negação frontal da alienação que rege o trabalho assalariado no sistema geral da produção, que Argan analisa as formações passadas. O juízo de determinação histórico lhe permite, por um lado, situar a experiência artística entre outros modos de produção e apropriação do valor, próprios à época.
Julgada historicamente, a arte figurativa ou mimética do período clássico grego (séc. 5 a.C.) surge não como algo intemporal, mas como a resultante de uma mescla de consciência e idealização, a forma cognitiva da sua atualidade, um mergulho na premissa de então, de unidade essencial entre a Physis (Natureza) e o Logos, como princípio da consciência. Analogamente, a arte dos mosaicos cristão-imperiais de Ravena é correlacionada ao princípio do neoplatonismo plotiniano de negar a especificidade da matéria para transubstanciá-la em luz.
Neste modo de julgar, como noutro, marcadamente sintético e reflexivo, vale o que foi formulado por Walter Benjamin no Trabalho das Passagens (nº 2, 6): “Descobrir, na análise do pequeno momento particular, o cristal do acontecimento total”. Assim, o prisma da arte moderna, como trabalho, leva-o a ver em cada experiência o que jaz armazenado como trato próprio e específico da matéria transformada, como trabalho concentrado no intento material da experiência configurada a partir do indicativo preciso e urgente do agir.
Logo, o trabalho como organização e esforço que em cada contexto prefigura a experiência segundo um projeto de futuro, mas que, no calor da ação, resta sujeito ao regime de valor da época, desponta decantado pela análise. Assim, o trabalho, beneficiado pela análise moderna que o confronta à historicidade do valor, é redimido. Ou seja, liberado das cadeias de antes, desperta para vir alimentar a experiência presente e atual da arte, mesmo no caso do objeto antigo, que, como evidência de trabalho, subsiste e apresenta um novo valor resultante da síntese atualizadora.
Desse modo, ao mesmo tempo em que toda experiência artística histórica, sob o prisma da arte moderna, surge como trabalho e, logo, como transformação intencional do seu presente, as raízes da experiência moderna, em contrapartida, se aprofundam e se redefinem, porquanto afloram os seus elementos constitutivos passados, extraídos pelo juízo que diferencia e pela reflexão que os atualiza e totaliza dialeticamente.
Nesse sentido, por exemplo, a arte medieval românica é desdobrada como reafirmação da obra de Deus, revelada também pelo trabalho humano. Por sua vez, o processo de glorificar a Deus via o ato do trabalho serve ao homem novo, do burgo, para se liberar da servidão ancestral ao castelo, auto-afirmar-se como produtor de bens e do próprio presente e faz da catedral a obra máxima da arte românica, uma construção multiplamente funcional, que serve de memória cívica, de tesouro comunal e como proteção física da população.
A reinterpretação de modalidades artísticas do passado também explicita elementos constitutivos da arte moderna e correlatamente afirma o teor desta como construção histórica. Em suma, é possível afirmar que a “artisticidade”, exposta como trabalho acumulado, ao ser combinada ao juízo histórico arma uma reflexão que volta necessariamente ao contexto moderno. Dessa forma, afirma-se também que a arte é uma prática de conhecimento do presente e que este, como objeto de trabalho e portanto em transformação, comporta um projeto de futuro, entrevisto como o do trabalho emancipado, à luz exemplar da arte moderna.
O que advirá daí para o debate da situação da arte no Brasil? Com certeza, já se poder prever que tanto mais fecundos serão os desdobramentos quanto mais largo o círculo de leitores atingidos. Para tal, é importante que a editora responsável pela versão brasileira venha a atender ao espírito originário do projeto, que concebeu a História da Arte Italiana como equipamento de uso corrente para o estudante do sistema público italiano.
Se é importante a preservação do patamar de reprodução visual alcançado nesta edição, cumpre, por outro lado, oferecer também ao estudante daqui, com menor poder aquisitivo, uma versão acessível. Sem o que, no fogo lento que faz o caldo das exclusões à brasileira, haveremos de provar mais um caso de “idéias fora do lugar”. Um exemplo? Interpretar a obra de Argan e a arte moderna como modelos de linguagem. Este ponto de vista seria o de um novo “classicismo”, o que, para Argan, ao contrário do “clássico”, significa “desconfiança na capacidade da arte de exprimir a realidade histórica presente”, vale dizer, denegação da urgência moderna de entender o presente e projetar autonomamente o futuro.
Nota
1
Ver Rodrigo Naves. “Prefácio”, in G.C.A., "Arte Moderna – Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos", op. cit., págs. XI-XXIV; Paulo Sergio Duarte, “A história que se escuta e vê”, "Jornal do Brasil", suplemento "Idéias", 12/12/92, págs. 6-7; Lorenzo Mammì, “Prefácio à edição brasileira”, in G. C. Argan, "História da Arte Italiana". Ademais, o Centro Maria Antonia, da USP, realizou um seminário Argan (10-12/11/2003), com seis palestras e que reuniu um público grande.
[resenha publicada originalmente na seção Trópico da UOL]
sobre o autor
Luiz Renato Martins é professor do departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.