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OHTAKE, Ruy. Uma contemporaneidade histórica: a arquitetura em discussão. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 041.02, Vitruvius, maio 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.041/3157>.


1.

Visitei, quando ainda estudante, a casa mais conhecida de Le Corbusier a Ville Savoie (projeto de 1929). Uma emoção longa e muda foi a aproximação a essa casa, no topo de uma colina. Força plástica entre a serena proporção do 1º pavimento e a volumetria do terraço-jardim da cobertura, a quase pictórica relação entre os cheios e vazios, os pilotis a lhe conferirem uma surpreendente leveza e a rampa interligando os três pavimentos, um passeio pelos espaços da casa e o vislumbre da natureza que a envolve. Pouco antes dessa viagem, havia lido Espacio, tiempo y arquitectura de Sigfried Giedion (1888–1968), edição espanhola. Leitura que me permitiu compreender a Casa Savoie, além daquela emoção imediata: aí estavam em pilares, concreto, vidro e vazios, os cinco postulados do Modernismo propostos por Le Corbusier, e mais ainda a conceituação de espaço-tempo, ao observar que a estrutura independente da casa permitia que o cubo elevado do pavimento superior, além de vazado, também tivesse vazios em várias direções. Constituiu a leitura básica na formação do arquiteto daquela época (final da década 50), ao lado de Bruno Zevi (Saber ver arquitetura), Stamo Papadaki (Work in progress: Oscar Niemeyer), Nicolau Pevsner (Pioneers of modern design), Le Corbusier (Obras completas), Lewis Mumford (Arte e técnica), entre outros.

Decorridos pouco mais de quarenta anos, é lançada agora a edição em língua portuguesa de Espaço, Tempo e Arquitetura. Nesse intervalo, a arquitetura conheceu extraordinária produção, pontilhada de diversificadas proposições, quase inimagináveis no período anterior, época da edição inicial do livro. Daí se compreender porque Giedion acrescentara mais de cem páginas a essa primeira edição (1941), em sucessivos adendos e capítulos até 1967 (ele viera a falecer em 1968), em função dos novos movimentos que a arquitetura começa a experimentar no pós-guerra. O próprio subtítulo colocado por Giedion, “desenvolvimento de uma nova tradição”, denuncia seus propósitos e sua instigante percepção.

2.

Adendo significativo é dedicado ao arquiteto dinamarquês Jorn Utzon (Ópera de Sidney, 1957), eleito por Giedion como o representante da então terceira geração de arquitetos contemporâneos, que surgia a partir da década 50, procurando, afirma ele, consolidar as tendências escultóricas na arquitetura. Ao referir-se, com comentários entusiasmados e pormenorizados à Ópera de Sidney, salienta que “ele (Utzon) une de maneira inovadora duas intenções separadas: o exterior com maravilhosas abóbadas acopladas e o interior, espaço independente e funcional de uma ópera, inserido sob as abóbadas” e que “após meio século de desenvolvimento, a arquitetura contemporânea (década 60) inaugura um novo capítulo promissor para o futuro” (p. 701-707). Sem dúvida, um dos pontos altos do texto. A inquietação intelectual de Giedion o fez perceber, já naquela época, os “futuros caminhos da arquitetura”, que vieram a se confirmar, despontando, a partir da década 80 trabalhos de Jean Nouvel, Frank Gehry, Zaha Hadid, Renzo Piano, Calatrava, etc. (1)

3.

Giedion sempre considerou que o historiador de arquitetura devesse manter estreito contato com as concepções contemporâneas e que, ao estar impregnado pelo espírito de sua época, pode detectar aspectos do passado desapercebidos pelas gerações anteriores. Indiferente ao chamado distanciamento histórico, participou intensamente das atividades dos arquitetos de sua época, sem receio que isso pudesse ser uma ameaça à sua imparcialidade, à sua dignidade, à sua amplitude de visão. Com essa perspectiva, selecionou mestres da arquitetura, alguns deles fora do Movimento Modernista, examinando o cenário cultural, econômico e social que envolveu cada arquiteto cujas obras receberam magistrais e perspicazes comentários, permeando de proposições conceituais a sutis pormenores. Uma das razões que o tornaram um dos autores mais lidos no ambiente arquitetônico.

De Frank Lloyd Wright (1867–1959) coroando uma densa narrativa abrangendo o início do desenvolvimento industrial norte-americano e passando pela Escola de Chicago, o autor observa com entusiasmo, o longo e contínuo exercício do arquiteto e provoca: “a maleabilidade dos espaços internos concebidos por FLW trouxe vida, movimento e liberdade ao corpo rígido e inerte da arquitetura moderna”. Seria um alerta? Giedion apesar de reconhecer em Wright o arquiteto mais dotado de agudeza de espírito, um gênio com uma vitalidade de inexplicável riqueza, procura entender a ausência de seguidores de sua arquitetura, entre outras razões, pelo fato de a arquitetura norte-americana naquela época estar corroída pelos modismos clássicos e góticos, fato esse que se repete em várias cidades brasileiras, notadamente em São Paulo. Da “pequena e encantadora“ Casa Roberts (1907), Giedion destaca que a planta tipo “moinho de vento” possivelmente tenha influenciado Mies van der Rohe. Do conhecido projeto dos escritórios Johnson, o autor faz uma indagação que já é a resposta: “por que um local de trabalho não poderia uma vez só se basear na poesia?” citando elogiosamente os espaços descomunais e os pilares em forma de cogumelo. Fica no ar, agora, uma interrogação: o Museu Guggenheim (1943–1959), considerado por muitos como a obra mais significativa de Wright, não recebeu nenhuma referência.

Le Corbusier (1887–1964), pela lição de idealismo, pela convicção profissional, é o arquiteto celebrado no livro. Ao observar que o poder de Corbusier residiu na sua força arquitetônica, enaltece o grande espetáculo de arquitetura, referindo-se ao terraço-jardim da cobertura de Marselha (1947), exalta Chandigarh (1956), que considera sua maior ousadia arquitetônica, atenta para a incorporação do equilíbrio flutuante das forças, leveza e transparência nas dezenas de casas, em La Tourette sente que todo o edifício exala uma ardente vitalidade, destaca a abordagem escultural de Ronchamp, identificando-a como uma aspiração da arquitetura contemporânea, e aponta uma direção para os arquitetos: “Le Corbusier expressa tridimensionalmente à imaginação social”, aludindo-se à Unidade de Habitação de Marselha, onde o arquiteto levou ao 7º andar do edifício, uma rua com lojas, alimentação, estúdios e ateliês, passeio público, “procurando com isso reconstruir uma relação rompida entre o indivíduo e o coletivo”.

Desde o princípio, Le Corbusier manifestava a irresistível força do gênio e, além de formular já em 1926 os célebres cinco princípios do Movimento Modernista, converteu a estrutura independente, ou o esqueleto de concreto, em linguagem de arquitetura, abrindo enormes possibilidades de desenhar volumes, espaços e vazios, e a isso chamou de “arquitetura espiritual”, da qual a Ville Savoie constitui-se no mais belo e puro exemplo. Giedion ao lhe atribuir dois talentos, o de saber reduzir (sem simplificar) um problema complicado a elementos básicos e o de sintetizar esses resultados com clareza primorosa, evidencia seu trabalho indissolúvel, como arquiteto, urbanista, pintor, escultor, poeta e pensador, e poder-se-ia mencionar, a mão aberta em Chandigarh, as texturas das paredes de Cambridge, as cores das paredes das sacadas de Marselha, de onde, anota Giedion, “Le Corbusier capturou na moldura arquitetônica a alma da paisagem de Provence, que Cézanne foi capaz de apreender”, os baixo-relevos de Firminy, os vitrais de Ronchamp, a concepção do Modulor. Essa a personalidade que, não sem razão, recebeu mais de 300 citações ao longo da narrativa de Giedion.

Com relação à escolha do projeto para o edifício da ONU (1947) em New York, cabe um reparo: a preferência unânime, entre os 10 arquitetos convidados que participaram do concurso, recaiu sobre o projeto de Oscar Niemeyer, o qual concordou, posteriormente, em deslocar a posição do bloco da Assembléia, atendendo ao velho mestre Le Corbusier. Portanto, diferente do longo relato apresentado por Giedion.

Le Corbusier desenvolveu obras de maior porte nos últimos quinze anos de vida, e atravessava uma fase de intenso trabalho, quando veio a falecer, deixando como legado, seu idealismo, suas influências que se espraiaram a todos os continentes e um expressivo número de seguidores. Lê-se o brado lancinante de Giedion: “arrancaram o lápis de sua mão”.

4.

Duas omissões: a estranha ausência de Oscar Niemeyer, que já tinha construído o conjunto de Pampulha (1943), a residência de Canoas (1956), as obras principais de Brasília (inauguradas em 1960), além do edifício do Ministério da Educação, este coordenado por Lúcio Costa, com croquis inicial de Le Corbusier e desenvolvido pela equipe brasileira, que se constitui num dos grandes marcos do Modernismo. Nota-se, igualmente, a ausência de observações mais desenvolvidas sobre Brasília (1960), cujo Plano Piloto abriga 500.000 habitantes, e ainda mais quando o próprio Giedion, no capítulo “Planejamento Urbano” reconhece que na cidade moderna somente fragmentos foram realizados. A rápida referência à praça dos Três Poderes, mesmo com duas ilustrações, parece ser insuficiente.

5.

Antes de abordar a arquitetura do século 20, Giedion abre três capítulos, remetendo ao Renascimento até o século 19, onde vários aspectos são analisados sob sua lente contemporânea, e aludindo-se, por exemplo, ao Capitólio de Roma, observa que um grande artista como Michelangelo é capaz de criar forma artística de sua fase histórica, bem antes que esta fase tenha começado a tomar forma tangível. Analisa, no início da industrialização, o uso do ferro e do aço na arquitetura, e também o do concreto armado, e o autor se refere a Eiffel e sua emblemática Torre a níveis técnico, estético e emotivo, e a Maillart com as lajes cogumelo e as surpreendentes pontes. Antes de chegar à arquitetura contemporânea, não deixa de saudar Van Der Velde e Victor Horta pelos esforços em retirar os enfeites que mascararam a arquitetura conservadora que dominou a Europa no século 19, e segundo Giedion, restabelecendo a “moralidade na arquitetura”.

Nos capítulos dedicados ao urbanismo, fica clara a dificuldade, na Europa, de se concretizarem projetos urbanísticos no período em torno da 2ª Guerra Mundial, e Giedion crava uma sentença: “o futuro da arquitetura está indissoluvelmente ligado ao planejamento urbano”. Por isso, sente-se, em seus comentários, a ausência de Brasília, inaugurada antes da 4ª edição. A recuperação econômica dos países europeus, principalmente a partir da década 80, e o autor já falecido, possibilitou importantes intervenções, em Barcelona, Berlim, Lisboa, permitiu as grandes obras de Mitterand em Paris, e mais recentemente verifica-se o gigantesco “boom” das cidades chinesas.

6.

Hoje, quando se observa uma retomada, denominada por críticos de arquitetura, de Modernismo Tardio, torna-se muito oportuno o lançamento da edição em língua portuguesa de Espaço, Tempo e Arquitetura, que mereceu uma criteriosa apresentação de Ana Luiza Nobre. Cabe ressaltar o alcance do texto de Giedion, ao observar criticamente a educação de hoje, direcionada à especialização cultural enquanto a educação das emoções é negligenciada (p. 908), de modo que se chega ao paradoxo curioso de que sentir, atualmente, se tornou mais difícil do que pensar, e arremata: “nossa consciência cultural pode despertar repentinamente, porém não sem antes um desejo intenso de uma mudança interior e jamais sem uma preparação direcionada para o futuro”.

[texto publicado originalmente no “Caderno Mais” do jornal Folha de São Paulo, em 17 abr. 2005, a pedido do corpo editorial.]

 

notas1
Aqui no Brasil, o professor e crítico Agnaldo Farias foi o precursor na ênfase a esses novos conceitos da arquitetura contemporânea.

sobre o autor

Ruy Ohtake é arquiteto.

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