Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

how to quote

NOVAES, Adauto. Labirintos do poeta. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 045.01, Vitruvius, set. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.045/3151>.


"Não poder orientar-se em uma cidade não significa grande coisa. Mas perder-se em uma cidade como quem se perde em uma floresta requer toda uma educação. Os nomes das ruas devem então falar àquele que se perde a mesma linguagem dos ramos secos que se quebram, e ruelas no coração da cidade devem refletir para ele as horas do dia tão claramente quanto um vale de montanha. Aprendi esta arte tardiamente; ela realizou o sonho dos quais os primeiros vestígios foram labirintos sobre os mata-borrões dos meus cadernos"
Walter Benjamin

Cidade vertigem é um irresistível convite ao leitor para perder-se na floresta das grandes cidades. É também uma educação dos sentidos, como pede Benjamin. É, enfim, uma viagem contínua pelas ruas do mundo, de cidade em cidade, que nos leva muitas vezes a becos sem saída, sem vias de acesso e sem formas visíveis. Tudo como se fosse uma única cidade, evidente e enigmática, formada de itinerários invisíveis que habitam nosso mundo. Imagens sem objetos, vestígios de cidades que nos incitam a percorrer um roteiro mental – simbólico, imaginário, poético, conjunções que levaram o poeta Afonso Henriques Neto a observar esferas, praças cinzentas de inverno de “fulva neblina” (Eliot), mas também construções que “um dia respiraram o sangue dos vulcões”, na busca de imagens sensíveis contidas na reserva da sua imaginação e na imaginação dos poetas e escritores que o precederam. Com esse artifício, o autor põe à prova nossas referências culturais e políticas e toda topografia racional. Assim, a poesia cria laços entre o imaginário das cidades e os corpos sensíveis. É essa a matéria de Cidade vertigem: evidenciar a inteligência dos objetos que nos cercam e estabelecer relação com o invisível. Isto é, pôr “a poesia de frente para a cidade, esvoaçando línguas de vertigem, carne sulfurosa mas meandros enraizados de anônimo e pânico, cores inexprimíveis”...

O rilkeano Malte Laurids Brigge nos diz que para escrever um único verso é preciso, antes de tudo, ver muitas cidades, homens e coisas. Sabemos que Afonso Henriques, flâneur contemporâneo, trabalhou vinte anos em um único poema e que, não por acaso, em movimento circular, começa o livro com as palavras “de frente para as pestanas (...) de frente para a cidade” e termina com uma elegia ao “reino sem palavras de todos os olhos se abrindo”.  Em sua peregrinação pelas cidades, tudo é possuído pela visão. Ou quase tudo, porque seus olhos são desatentos ao mundo tal como ele é. Voltam-se para objetos que a visão racional negligencia e que estão na iminência de desaparecer do mundo. Para realizar esta visão, foi preciso antes abandonar a racionalidade imposta nas grandes cidades, fugir dos itinerários estabelecidos, “perder-se na floresta”. E este é o segredo do poema-olhar: desejar outra coisa além do que é dado a ver.

Mas quando o olhar transforma-se em palavra, assume a forma de poema, também os objetos perdem sua potência do imediatamente visível e provisório para ganhar nova essência. Assim, a cidade torna-se outra, passa a integrar todo um sistema de relações estabelecido pela imaginação do poeta. Na passagem do olhar à palavra poética, podemos pensar com Jean Starobinski: nesse processo, o olhar é menos a faculdade de recolher imagens e mais a de estabelecer relações. É isso que o poeta faz.

Quem ousa escrever sobre este livro não faz senão aflorar algumas das imensas questões que são nossas questões. Lemos Cidade vertigem como um itinerário de nossas controvérsias e das figuras e coisas acidentais que nos cercam. Penetramos sem cerimônia nos labirintos da cidade não pelo que é dado à primeira vista, mas a partir dos vestígios deixados pela história e pelas experiências individuais e coletivas, ao mesmo tempo tão evidentes e tão obscuras. O poeta Afonso Henriques Neto convida o leitor a pensar com ele o desafio proposto por Paul Valéry: pode o espírito humano superar o que o espírito humano fez? Podemos desvendar os enigmas de uma obra que é nossa, que vivemos, respiramos, desejamos e renegamos ao mesmo tempo?

A proposta do livro é imensa não apenas pelo exaustivo trabalho, mas pelo que ele dá a pensar e pela retomada das idéias que cada leitor faz, inevitavelmente.

Lemos, pois, Cidade vertigem não como uma grande metáfora mas como a tradução daquilo que define a cidade contemporânea: seu caráter necessariamente transitivo e lugar de expressão das formas “ocultas” da experiência. Para dar forma a essa experiência, o poema recorre ao papel transitivo das palavras. Nenhuma delas traz um sentido “em si”, mas depende da posição e do funcionamento instantâneo do poeta e de cada transeunte. As palavras provisórias da linguagem ordinária ganham nova sedimentação. Assim, cada palavra, exatamente pelo caráter transitório, abre no poema uma multiplicidade de sentidos. Cidade vertigem não é metáfora da cidade mas itinerário de pensamentos, uma maneira de orientar-se através da cidade, como diz Wittgenstein: “É assim: nas cidades, as ruas são bem traçadas. Você entra à direita e encontra sinais luminosos. Há regras. Quando você deixa a cidade, encontra estradas sem sinais luminosos. E quando você se afasta mais ainda, não há mais estradas, sinais luminosos, nada para guiá-lo. Apenas bosques. E quando você volta à cidade, pode ter o sentimento de que as regras são más, que não devia haver regras etc.”. Sair da cidade para poder entrar nela. Só assim, a cidade nos ensina a pensar livremente.

Logo de início, um longo e caótico poema em prosa descreve a desordem do mundo-cidade, já anunciando o tom valeriano de toda a obra: a imagem de um caos é um caos. O que é a cidade moderna senão dissipação natural, abuso, velocidade, violência, riqueza, barbitúricos, miséria, intoxicação, ruído, medo etc., tudo isso em doses cada vez mais insuficientes para uma “inteligência sensível” cada vez mais impotente? Como pensar esse caos? Podemos adiantar, de maneira apressada, que a alternativa dada pelo autor não está na busca do paraíso da “simplicidade e da preguiça” de tantos projetos de cidades utópicas, mas na crítica da cidade e do Estado.

Cidade vertigem é um bom exemplo de como se pode pensar a cidade hoje: com imagens, ou melhor, seguindo na linhagem das “imagens dialé-ticas” de Walter Benjamin (para quem a dialética é trabalhada não a partir dos conceitos e do lugar mas sim das imagens), Afonso Henriques trabalha monumentos reais e imaginários, comenta passagens de um estilo de vida a outro, acompanhadas de perdas que só são compensadas por imagens que guardam vestígios do passado, e recolhe tudo o que é considerado supérfluo para depois dar novo sentido às coisas. Esta visão da cidade pode ser lida no fragmento 21, na segunda parte do livro:

uma anticidade não é uma cidade
ao avesso.
anticidade não é desenho
ideal
superposto à linha real
do rosto.
nem o após-equívoco, arco-íris
de borco
(oco da fratura, orco).
a não-cidade confina com o excesso
sem tinta
gesto sem flor
perfume no vácuo.
espaço vivo do amorfo
mais para um esqueleto de luz
a pino luzindo
dentro do poço.
morto na carne do moço.
labirinto
detrás do osso.

Mais que coisa vista, o que o poema escreve é a posição do sujeito no mundo, entre eles, e principalmente, a posição do próprio poeta.

Sabe-se que na ética da existência nunca há superação absoluta. Quando uma imagem aparece como emblema de passagem entre o velho e o novo, no lugar de ser apenas uma sombra da tradição, ela esquece seu lado ingênuo e parcial para revelar, nela mesma, os signos da ruptura. Por isso, o autor faz o itinerário das imagens de cidades, dos antigos, passando pelos modernos até chegar aos filósofos, poetas e escritores contempo-râneos. A imagem é expectativa que aguarda o momento para ser conhecida, que espera ganhar um nome – ou um poema – para despertar como ser, para ressurgir como imagem diferente:

“tudo tem um grau de presença corpórea – escreve Benjamin – que permite buscar, como em um rosto, as marcas que se manifestam. Mesmo uma proposição, nestas circunstâncias, recebe um rosto (com maior razão uma simples palavra) e este rosto é semelhante ao da proposição que lhe é oposta. Assim, toda verdade remete de uma maneira evidente a seu contrário e é a partir deste estado de coisas que se explica a dúvida. A verdade torna-se algo de vivo, ela vive unicamente no ritmo em que tese e antítese deslocam-se para se pensar”. Ou, dito de maneira mais precisa sobre o reino das imagens,“não apenas o index histórico das imagens (dialéticas) diz que elas pertencem a uma época particular; ele diz ainda que é apenas em uma época particular que elas se tornam ‘lisíveis’”. 

Que época particular é essa da Cidade vertigem, obra de poeta-ensaísta que se desdobra na figura lendária do flâneur, ele mesmo produto das contradições das cidades?  Aquilo que era a virtude da grande cidade — o anonimato, a liberdade e a vita contemplativa — é hoje, se não o seu contrário, pelo menos um problema que o poeta-flâneur contemporâneo tenta solucionar. A primeira e grande contradição consiste em reconhecer que estamos irremediavelmente destinados a escolher a cidade como nossa morada, ainda que o anonimato, a liberdade e a vida contemplativa não sejam as mesmas dos tempos, por exemplo, de Descartes, de Rousseau, de Baudelaire e mesmo de Benjamin, quatro autores que, de alguma maneira, foram poetas-flâneurs. Em uma deliciosa carta a seu amigo Jean Louis G., o chamado Balzac, de 5 de maio de 1631 em Amsterdam, Descartes, um dos primeiros a escrever  sobre as virtudes do anonimato na grande cidade, diz: “acho muito estranho que um grande e generoso espírito como o vosso possa acomodar-se a essas imposições servis às quais se está submetido na Corte; e se me assegurais que Deus vos inspirou a deixar o mundo, acreditaria pecar contra o Espírito Santo se vos tentasse demover de tão santa resolução. Deveis até mesmo perdoar meu zelo se vos convido a escolher Amsterdam e preferi-la não diria apenas a todos os conventos dos Capuchinhos e Cartuxos, para onde forçosamente os bons se retiram, mas também a todas as belas moradas da França e Itália, mesmo a esse célebre Ermitage onde estivestes ano passado. Por mais acabada que seja uma casa de campo, faltam-lhe sempre muitas comodidades que só existem nas cidades; e mesmo a solidão que se espera lá não é encontrada com perfeição... É o contrário nessa grande cidade em que estou, não existindo nenhum homem, excetuando-me, que não exerça o mercantilismo, cada um está tão atento ao seu lucro que poderia  ficar o resto da vida sem jamais ser visto por alguém. Passeio todos os dias entre a confusão do povo com tanta liberdade e repouso quanto saberíeis fazer entre as aléias, e não considero de outra maneira os homens que vejo... Mesmo o barulho de sua gritaria não interrompe mais meus devaneios... Que outro país pode gozar de uma liberdade tão grande, onde se pode dormir menos inquieto, cercado de soldados para nos guardar, onde os envenenamentos, as traições, as calúnias sejam menos conhecidas...?”

Hoje, somos todos homens-mercadoria: os sonhos de Descartes e os devaneios de Rousseau deram lugar ao interesse. A figura do flâneur que, segundo Benjamin, tinha como moda passear tartarugas nas famosas passagens parisienses, está “conservada no interior de espaços artificialmente criados, tais como ruas para pedestres, parques e passagens subterrâneas”, como observa Susan Buck-Morss em seu brilhante ensaio O flâneur, o homem-sanduíche e a prostituta. Mais: no mundo capitalista, o flâneur tornou-se figura imaginária, mesmo o flâneur-escritor, que passou a ser símbolo do autor-produtor da cultura de massa. Como Descartes, o único a não exercer a função mercantil em Amsterdam, como a prostituta, que não tinha trabalho (“Mais o trabalho aproxima-se da prostituição, mais se é tentado a descrever a prostituição como trabalho...”), o flâneur era um marginal. A observação é ainda de Benjamin: “A prostituição pode contar como ‘trabalho’ quando o trabalho torna-se prostituição”. Ora, nas cidades contemporâneas é assim: tudo está em processo de revisão e transformação e tudo perde o sentido original, até mesmo a inteligência sensível e as afetividades: “O dinheiro tem sex appeal, e esta fórmula só faz anunciar com todo rigor a razão radical de um fato que supera de longe a prostituição. Sob o domínio do fetichismo da mercadoria, o sex appeal de cada mulher é afetado por um grau maior ou menor pela atração da mercadoria”.

A atração pela mercadoria enche os shoppings e esvazia as cidades. Mas a maior transformação hoje consiste no fato de as ruas perderem o emblema das grandes manifestações. Maurice Blanchot definiu essa nova situação como a morte da política: “Que cada um de nós compreenda o que está em jogo”, escreve Blanchot. “Quando há manifestações, elas não dizem respeito apenas ao pequeno ou ao grande número daqueles que participam delas: elas exprimem o direito de todos  serem livres na rua,  serem livremente transeuntes e agirem de tal maneira como se algo se passasse nela. É o primeiro direito”.

Outro ponto chama a atenção em Cidade vertigem: fora a colagem polifônica de textos de outros autores, em nenhum momento a escrita procura reconstruir ou reconstituir a cidade. Não há uma representação dela, nem mesmo um reflexo da realidade. A construção é feita na linguagem, que é tomada não como um meio de expressão, mas como uma prática e uma experiência poética: a mistura de poesia e prosa poética neste caso é determinante. Ao recolher os vestígios da fala e dos acontecimentos, ao lidar com a prosa, quase sempre sujeita à facilidade muito linear, o autor apropria-se da linguagem ordinária, caminho possível para falar da cidade sem cair na armadilha da abstração e da “arte pela arte”. Todo o livro é permeado pela tensão do desejo de preservar aquilo que pertence à poesia do poeta e a necessidade de revelar os enigmas da cidade. Esta ambigüidade do privado e do público é bem resolvida neste poema em prosa cuja virtude consiste não em exprimir algo mas sim no fazer. O resultado é uma outra prosa tão trabalhada como os versos. Impossível não notar a musicalidade, o ritmo e a sintaxe que modulam o texto. A fragmentação do itinerário e dos vestígios deixados pela cidade impõe condensações e rupturas ao texto, à maneira dos poemas. É isso que dá o sentido de uma poesia pensada, na qual cada palavra pode nos levar ao abismo, como podemos ler nesta imagem de Valéry: “Cada palavra, cada uma das palavras que nos permitem atravessar tão rapidamente o espaço de um pensamento, e de seguir o impulso da idéia que constrói ela mesma sua expressão, parece-me com uma dessas pranchas leves jogadas sobre fosso ou sobre uma escarpa de montanha e que suportam a passagem de um homem em rápido movimento. Mas que passe sem pesar, que passe sem parar – e principalmente que ele não ouse dançar sobre a fina prancha para provar sua resistência!... A ponte frágil em seguida move-se e se rompe e tudo cai nas profundezas. Consulte sua experiência; você vai concluir que só compreendemos os outros, só nos compreendemos graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras. Jamais se deve pesar sobre elas sob pena de ver o discurso mais claro decompor-se em enigmas, em ilusões mais ou menos sábias”. É o que diz, com outras palavras, o pintor Henri Matisse a Aragon: “Não consigo livrar-me de minha emoção copiando a árvore com exatidão, ou desenhando as folhas, uma a uma, na linguagem corrente... Preciso criar um objeto que pareça com a árvore. O signo da árvore”.

Sair da linguagem ordinária e provisória, aquela que é determinada pelo rápido movimento da fala, dançar sobre as palavras, sair da superfície e arriscar o indizível. Afinal, já se disse, o oculto fascina.

Educar-se na vertigem das palavras para perder-se na cidade, como querem Walter Benjamin e Afonso Henriques Neto. É este o irresistível convite de Cidade vertigem.

sobre o autorAdauto Novaes é jornalista, professor e escritor. Estudou direito e filosofia. Foi diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte (Funarte).

comments

resenha do livro

Cidade vertigem

Cidade vertigem

Afonso Henriques Neto

2005

045.01
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

045

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided