Bruno Santa Cecília, jovem arquiteto de inquestionável talento, premiado em concursos de arquitetura nacionais e locais, nos brinda, desta vez, com um trabalho analítico e crítico sobre a obra de Éolo Maia. Esse trabalho de Bruno tem uma grande importância para o ambiente arquitetônico mineiro, principalmente por três aspectos que é preciso ressaltar. Primeiro, porque revela, entre nós, uma nova geração de arquitetos que se dedica à pesquisa científica, retirando dela os fundamentos de sua prática profissional.
O sonho de alguns arquitetos mineiros de se dedicarem, simultaneamente, ao fazer arquitetônico e à pesquisa científica sobre esse fazer iniciou-se com Sylvio de Vasconcellos que, há mais de quarenta anos, tentou consolidar um grupo de pesquisa na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Infelizmente o Centro de Estudos criado por Sylvio teve vida curta, sendo desmantelado em decorrência do Golpe Militar de 1964, que inviabilizou a permanência de Sylvio na Escola e no país. Foi com a criação do Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – NPGAU, quarenta anos depois do Golpe, que se retomou a empreitada de Sylvio. O Mestrado em Arquitetura e Urbanismo criou o lugar da pesquisa científica entre nós, oferecendo-se aos arquitetos que querem desenvolver o seu potencial analítico e crítico em benefício de sua prática profissional, numa evidência de que o fazer não é dissociado do pensar.
O segundo aspecto que merece atenção é o desenvolvimento de um método de análise do objeto arquitetônico apoiado em “operadores projetuais pragmáticos”, conforme as próprias palavras do autor. Qual é a diferença entre o método de análise proposto por Bruno e as outras abordagens analíticas e críticas que se fazem da Arquitetura?
A diferença é que Bruno se arrisca na demonstração de que há quatro atributos essenciais aos quais a Arquitetura deve atender: (1) a relação com o lugar; (2) o conteúdo técnico-construtivo da obra; (3) o equacionamento das demandas de uso; e (4) o tratamento plástico dado ao edifício. Ao analisar a obra de Éolo Maia à luz desses quatro operadores, Bruno constrói um caminho metodológico para o processo de projeto, embora esse não seja o seu objetivo inicial. Entretanto, esse subproduto – o caminho metodológico – é o que diferencia a análise crítica empreendida por Bruno das demais análises que encontramos nos livros de história e crítica da Arquitetura. É o que torna objetiva a análise do autor, pois possibilita que discutamos criticamente as conclusões atingidas e, eventualmente, as refutemos.
Por ser objetivo, esse caminho metodológico pode ser utilizado não só para olhar compreensivamente a Arquitetura, como também para fazê-la. Pode-se, eventualmente, contestar a suficiência desses quatro operadores para abarcar um objeto tão complexo como a Arquitetura. Isso, entretanto, não invalida a empreitada do Bruno nem desmerece a sua ousadia em enquadrar o olhar do crítico. Há de se destacar que, em momento algum, o autor tenta enquadrar o fruidor ou usuário do objeto arquitetônico. O seu método de análise é voltado para o arquiteto, para aquele que precisa compreender o fazer de uma obra para retirar daí ensinamentos para o seu próprio fazer.
E essa não é uma tarefa trivial. Bruno não se ocupa das subjetividades que possam estar manifestas nas obras, embora não as negue. Centra-se tão-somente nos aspectos objetivos e desvinculados dos sentimentos e sensações de autores ou fruidores. Coloca-se como o fruidor circunspeto, à busca de respostas para as questões objetivas que a obra pode revelar, independentemente da subjetividade do autor, a qual possa estar nela presente. Bruno tenta nos ensinar a olhar o visível, o mensurável, o palpável de uma obra de Arquitetura.
O terceiro aspecto que merece atenção especial no trabalho do Bruno é o processo criativo de Éolo Maia. Embora o processo do arquiteto não seja o foco da discussão, ele transparece no texto, quando da aplicação dos quatro operadores escolhidos por Bruno.
Conheci Éolo na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, na década de 1960, quando fomos contemporâneos. Alegre, simples no trato e espalhafatoso nas idéias, o arquiteto enchia os espaços por onde transitava com as suas fantasias, as suas alegorias e as suas metáforas. Lembro-me de uma vez em que lhe perguntei como seria uma boa maneira de representar um vidro numa perspectiva. – A gente representa o reflexo – disse ele – e o reflexo pode ser de qualquer cor, desde que seja reflexo; a transparência do vidro está no reflexo ou na imagem do outro lado.
Nisso, ele ia desenhando. A explicação estava ali, no desenho de uma figura de roxo, num fundo negro (eram os dois bastões de cera que ele tinha nas mãos). Eu não me convenci da técnica de representação, pois não conseguiria reproduzi-la: era pura abstração. Era Arte. O desenho ficou lá, perdido sobre alguma prancheta, como ficaram perdidos muitos desenhos de Éolo, pelas pranchetas e bares da vida. Suas obras, entretanto, estão aí, para serem compreendidas, assimiladas e, quem sabe, preservadas da demolição que sacrificou o nosso patrimônio modernista dos anos 1950 e 1960.
Éolo publicou diversas de suas obras. Ele valorizava muito as exposições e divulgações em revistas e livros. Alguns viam nisso certo exibicionismo profissional, talvez por não compreenderem sua necessidade de compartilhar com os colegas a sua paixão pela Arquitetura.
Uma outra característica de Maia era a sua capacidade de assimilar, criativamente, todas as tendências da arquitetura nacional e internacional. Assim, ele misturava em suas obras uma quantidade de elementos plásticos, com muito gosto, obtendo resultados peculiares e atraentes. Resultados que geralmente superavam as respectivas fontes de inspiração. Era nesse aspecto que ele se revelava um grande arquiteto-autor: quando fazia emergir a originalidade da própria criação em meio a tantas influências.
O trabalho do Bruno, que nos traz Éolo, é fruto do esforço de um jovem arquiteto que abre mão de promover sua própria obra – a qual já possui densidade para ser publicada – para se debruçar sobre a produção de um colega que o antecedeu. Não vejo afinidade arquitetônica entre as arquiteturas de ambos. Não se trata de um discípulo prestando tributo ao mestre. Trata-se de um arquiteto que reconhece o valor do seu diferente. É uma atitude generosa e que engrandece a Arquitetura.
[texto publicado originalmente como "Prefácio" do livro]
[leia também "Mapeamento da trajetória de Éolo Maia", de Mara Gama, sobre o livro de Bruno Santa Cecília]
sobre o autor
Maria Lúcia Malard é arquiteta, Doutora pela Universidade de Sheffield , Inglaterra, Professora Titular do Departamento de Projetos da EA-UFMG e Pesquisadora do CNPq. Atua no Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- NPGAU. É coordenadora do Crupo de Pesquisa Estúdio Virtual de Arquitetura - EVA, com financiamentos da Fapemig, Finep e CNPq.