A aliança entre projeto paisagístico e participação delineia o foco temático desenvolvido por Sylvia Adriana Dobry Pronsato em Arquitetura e paisagem – projeto participativo e criação coletiva, campo de discussão para o qual ela traz sua experiência como arquiteta e docente de arquitetura, pesquisadora e artista plástica.
O fio condutor de seu livro refere-se à dimensão política da ação na paisagem e como esta ação pode ser um vetor positivo ao gradual trabalho de emancipação que se coloca à frente de todos nós, a rigor, interminavelmente. Este trabalho defronta-se, em instância primordial, com a questão da alienação e suas conseqüências impressas nos “lugares de vida”, nos limites com que saberes, não-saberes e práticas espaciais cruzam-se no cotidiano. A atual perda de referenciais históricos e geográficos dos citadinos, lembra a autora, é apenas uma das pontas do alheamento mais amplo e sistêmico elucidado por Marx, em que os humanos não se reconhecem como autores das instituições sociopolíticas vigentes – aceitando de modo indiferente ou fatalista tudo que existe - ou, pelo contrário, julgam – à medida mesma do seu desconhecimento das condições históricas – desfrutar de plena liberdade para mudar suas vidas.
Uma das ações que estão no fundamento da contra-corrente deste processo de alienação refere-se ao trabalho de compreensão destas condições socioeconômicas e históricas, e de seus referenciais locais, visto que sua ausência impede toda proposição crítica. É neste plano que se situa o alvo das preocupações centrais de Sylvia Adriana Dobry Pronsato, interessando-lhe mira-lo a partir da convergência de dois eixos: do projeto participativo e da dimensão estético-criativa. Neste sentido, a idéia de intervenção projetual na paisagem é abordada como um terreno possível ao empenho coletivo de conscientização sobre o lugar, suas fronteiras, obstáculos e potências. A participação dos habitantes no conjunto de atividades envolvidas nas decisões e efetivação desta intervenção é um aspecto nuclear, fazendo da reconfiguração paisagística uma oportunidade ao grupo para a afirmação e exercício de seus direitos e cidadania.
As dificuldades deste tipo de ação não são poucas, quer no âmbito da mobilização deste coletivo, assim como naquele de sua sensibilização para a possibilidade projetual em pauta, na existência de interesses conflitantes e no estabelecimento de linguagens comuns. No que se refere ao enfrentamento e construção desta ‘linguagem em comum’ do grupo envolvido, Sylvia Adriana Dobry Pronsato dá especial relevo ao trabalho cuidadoso com a arte, a percepção e o desenho enquanto um eficaz recurso que transforma aquele que vê e o que é visto, simultaneamente. Assim como o ato de desenhar aguça o olhar e pode ser um modo de educação da própria sensibilidade, desenhar um lugar sob distintas visadas apura a percepção das relações espaciais que o configuram, ampliando as entradas para se pensar sobre suas relações históricas e sobre a dinâmica social ali impressa. O trabalho com a criatividade e com a arte, insiste a autora, multiplica as possibilidades de estabelecer reciprocidades com a paisagem, sendo um poderoso agente no aprofundamento da relação cognitiva com os lugares. Nestes empreendimentos coletivos, o emprego diligente de linguagens artísticas entre os participantes ao mesmo tempo em que propicia o desdobramento dos modos como os lugares podem ser apreendidos, introduz a noção do agir sobre estes espaços e sobre suas representações, o que é extremamente profícuo ao encaminhamento desta linha de projeto paisagístico.
O elogio ao papel pedagógico da arte e de suas linguagens neste contexto, entretanto, não equivale a imunizá-la em relação ao processo de alienação supra citado. Como enfatiza a autora, “a arte se move no interior de um sistema que produz a alienação”, não portando em si mesma garantia alguma contra ele. Trata-se, portanto, de fazer da presença da arte e dos meios artísticos como que pontes a horizontes mais extensos de inteligibilidade, em percursos que provocam transformações internas nos sujeitos que por eles circulam.
A preocupação com a dimensão educacional desenvolvida nestas intervenções paisagísticas estende-se não só aos seus destinatários mais diretos, mas incide também nos arquitetos que compartilham destas atividades, colocando-se em causa seu preparo para atuar em projetos participativos. A premissa básica aqui em vigor é a de que não se trata de mera variação do ato projetual, mas sim de um modo de empreendê-lo que demanda práticas específicas de dinâmica e trabalho em grupo. Neste momento toma a dianteira no livro a questão do ensino de arquitetura e suas aproximações com o tema de ‘realizações coletivas’, citando-se algumas experiências e antecedentes na área.
O espaço educacional é ainda privilegiado sob um terceiro aspecto, ao se destacar o papel da Escola como um importante conector dos habitantes com suas vizinhanças. Trata-se de um ponto de encontro e um catalisador valioso para operar com a idéia de ação na paisagem como trabalho conjunto, favorecendo a organização e a percepção identitária do grupo. A discussão democrática a que se propõe este tipo de trabalho paisagístico, contudo, não se restringe ao espaço da Escola, podendo abarcar outras instituições e instâncias organizacionais. O modo como aí efetivamente se opera é sempre decidido, na situação, ´in loco´, de acordo com as iniciativas encaminhadas pelo grupo como um todo.
A articulação entre projeto paisagístico e projeto participativo não é usual neste país e sua presença indica um enorme campo aberto de trabalho ambiental e político, sobretudo considerando-se quão recente nos é a recuperação do exercício de democracia. Nessa diretriz são destacadas no livro algumas relevantes experiências realizadas nos anos noventa na região metropolitana paulistana, tais como ‘Uma Fruta no Quintal’ (Diadema), e ‘Estudo do Meio da Aldeia de Carapicuiba, das quais participaram Raul I. Pereira e Caio Boucinhas, sólidos paisagistas cuja atuação nesta linha tem sido de valor inestimável. Ambas experiências lidaram com a questão da apropriação dos lugares pelos seus moradores, suas práticas espaciais, e com a complexa temática da educação ambiental em seus preceitos fundamentais e especificidades locais.
Semelhantemente ao que foi acima mencionado quanto à vulnerabilidade da arte, o mesmo se aplica à abordagem participativa no projeto. Sylvia Adriana Dobry Pronsato comenta sobre o perigo da participação ser instrumentalizada para neutralizar conflitos, de modo que nada de significativo se altere nas hierarquias, valores e modos como os espaços são vivenciados e praticados. Tanto mais esta se resume apenas ao nível consultivo, mais se transforma em superficial ou até inócua, uma vez que, desta forma, os integrantes do grupo não partilham das decisões. Interessa, portanto, pensar a participação como exercício de escolhas, um modo do cultivo da deliberação conjunta.
Como se vê, o projeto paisagístico como projeto participativo trabalha num plano de riscos, vulnerável, porém é indispensável, e precisa ser feito neste país. Cada vez mais. Neste campo nossas experiências são recentes e a bibliografia específica está em formação, motivos que situam a propriedade do livro de Sylvia Adriana Dobry Pronsato, um texto cuja tônica é incisiva quanto à necessária aproximação da percepção da paisagem ao político.
sobre o autor
Vera M. Pallamin é docente da FAUUSP e integrante do LABPARC – Laboratório Paisagem, Arte e Cultura da mesma instituição. É autora de Arte Urbana (Annablume, 2000) e organizadora de Cidade e Cultura – esfera pública e transformação urbana (Estação Liberdade, 2002).