No final dos anos 80 uma ilustre crítica de arquitetura brasileira ouviu de um ilustre crítico de arquitetura anglo-americano que nada de interessante estava acontecendo no Brasil. Tal crítico estrangeiro tinha acabado de publicar um livro sobre arquitetura latino-americana sem nenhuma referência ao Brasil por exemplo. Claro que a colega brasileira discordou citando “desconhecidos” como Lina Bo Bardi, João Filgueiras Lima (Lelé) e Paulo Mendes da Rocha, mas o estrangeiro respondeu que nunca tinha visto publicação nenhuma sobre eles. Poucos anos depois quando se reencontraram o ilustre crítico anglo-americano veio perguntar sobre um tal “Mendez du Rotcha”. Mas ainda demoraria uma outra década até que Paulo Mendes tivesse sua obra devidamente editada, tanto no Brasil quanto no exterior onde é, agora mais que nunca, referência principal da arquitetura contemporânea brasileira.
O interessante da estória é que acostumados a carreiras em que primeiro se publica todo tipo de desenho e idéia para só depois se ter a chance de se construir alguma coisa, é difícil para Europeus e Norte-Americanos entender a extensa obra de Paulo Mendes da Rocha sem o auxílio da mídia impressa. É como se a obra construída se tornasse invisível na ausência da obra publicada, numa triste inversão de valores arquitetônicos. Ou porque é mais fácil e barato transportar livros que pessoas, o que também não deixa de ser triste já que nenhum catálogo por mais completo que seja substitui a vivência do espaço.
Mas o fato é que não apenas gostamos de livros, precisamos deles como pequenas arquiteturas simplificadas e portáteis. O livro de Helio Piñón, objeto desta resenha, vem oportunamente cumprir este papel. Não que a obra de Paulo Mendes dependa deste ou daquele livro mas o registro de suas idéias em relação às obras é sempre bem vindo. A documentação fotográfica é admirável, as fotos de Helio Piñón e Nelson Kon entre outros fazem da cuidadosa produção gráfica e editorial um dos pontos fortes do livro.
Neste sentido cabe destacar o que me parece ser a maior contribuição do livro em questão: a entrevista de Paulo Mendes da Rocha editada por Luis Espallargas Gimenez. É que por um lado o texto introdutório de Helio Piñón não traz quase nada de novo para o público brasileiro alem de reforçar, em linguagem bastante hermética por sinal, as principais qualidades da obra de Paulo Mendes. Já a entrevista, por outro lado, parte da feliz idéia de formatação em que as perguntas não estão diretamente presentes no texto, o que reforça a voz de Paulo Mendes da Rocha como num monólogo. Mas para bom entendedor basta perceber que o entrevistado não teria se colocado de maneira tão precisa sem boas perguntas a desvendar preciosos momentos de seu pensamento arquitetônico.
Por exemplo, diz a lenda que Buckminster Fuller costumava arrasar concursos e júris com uma pergunta certeira: quanto pesa o seu edifício? Pois não é que Paulo Mendes da Rocha sabe a resposta na ponta da língua ao falar da casa do Butantã. Esse comprometimento com a construção, com a estrutura, com a materialidade fica evidente em vários momentos da entrevista como quando discute a estabilidade relativa de todo edifício. Cabe ainda notar que depois de 20 anos imersa em teorias e discursos, a disciplina da arquitetura tem se voltado a questões de prática, construção e materialidade, aspectos que a obra de Paulo Mendes nunca deixou de abordar.
Em outros momentos é a delicadeza do desenho que se sobrepõe ao rigor da construção, quando, por exemplo, Paulo Mendes descreve o uso da tubulação de água quente na mesma casa do Butantã como um gesto de carinho à sua família. Como se em alguns momentos a arquitetura se dobrasse aos usos mais corriqueiros e ao mesmo tempo mais saborosos da vida doméstica.
Ou quando explica com uma clareza excepcional as razões por trás da loja Forma: uma vitrine se expande por toda a frente do terreno para tirar maior proveito da visibilidade em relação aos automóveis ao mesmo tempo em que se faz mais baixa para a escala doméstica do mobiliário. E a consciência quase áspera de que a loja não esta ali para vender para pedestres mas sim para receber clientes, arquitetos e decoradores que chegam em seus respectivos automóveis.
Mas o melhor de Paulo Mendes da Rocha se revela na justaposição de questões técnicas e estéticas, uma reforçando a outra e alcançando um resultado de pura poesia. Traço e cálculo andando lado a lado como na discussão sobre a horizontalidade do piso a céu aberto do MUBE. Contraflechas e drenagem nas placas independentes reforçando a perfeita horizontal do chão que ao mesmo tempo protege o teto imediatamente abaixo. A solução mecânica abraça a solução bioclimática que serve a solução das águas que obedece ao rigor do desenho. Pura delicadeza.
No momento em que a obra de Paulo Mendes da Rocha se torna definitivamente conhecida no mundo inteiro, o livro de Helio Piñón traz uma significativa contribuição para que esta delicadeza em forma de desenho se revele.
sobre o autor
Fernando Lara, arquiteto, professor da University of Michigan.