A antologia Arquitetura do Século XX e outros escritos reúne 18 artigos escritos por Gregori Warchavchik, publicados entre 1925 e 1931, com exceção de um que data de 1958. Organizados sob três temas: primeiras intervenções; arquitetura do século XX e outros escritos, pelo professor Carlos A. Ferreira Martins, que também assina a elucidativa introdução, ressaltando a dívida da historiografia arquitetônica para com este arquiteto. Colaborador assíduo dos jornais diários divulgando a nova arquitetura, Warchavchik é, como bem lembrado por Martins (p.20), mencionado pelos vários críticos como autor de um único texto – Acerca de Arquitetura Moderna, o primeiro que publica em 1925, dois anos depois de ter chegado ao Brasil. Ao lado do texto de Rino Levi Estética das Cidades, publicado no mesmo ano, este artigo apresenta as primeiras idéias modernas no contexto arquitetônico brasileiro, esclarecendo a necessidade da arquitetura acompanhar o seu tempo, introduzindo assim, a noção zeitgeist no debate arquitetônico.
Esta coletânea é uma importante contribuição à história do pensamento arquitetônico brasileiro. São textos instauradores do pensamento moderno na arquitetura nacional, que recuperam o debate que aqui se travou quando da execução das primeiras obras racionalistas, e além de descortinar um vasto campo para novas discussões, reaviva a memória de bons tempos em que arquitetura freqüentava as páginas da imprensa diária como pauta da área de cultura e não dos classificados imobiliários. Esses textos revelam que muitas idéias atribuídas a outros arquitetos, foram lançadas pioneiramente por Warchavchik, tendo sido, mais tarde, buriladas e aprofundadas por aqueles que o sucederam nessa cruzada moderna.
Os artigos aqui reproduzidos foram escritos contemporaneamente aos primeiros congressos de arquitetura moderna – CIAM e explicitam uma afinada sintonia com as idéias neles debatidas. O relatório do I CIAM - 1928, entre outras recomendações, chamava a atenção para a necessidade dos arquitetos exercerem influência sobre a opinião pública para fazê-la conhecer os meios e os recursos da nova arquitetura. Foi com esse propósito que Warchavchik se dedicou a escrever, como claramente expressou no último, dos dez artigos que integram a série Arquitetura do século XX: “Escrevemos por uma missão de cultura, e não por veleidade combativa. O nosso propósito, em verdade, é contribuir, com o que está ao nosso alcance, para a formação da opinião pública, para estimular e esclarecer a consciência estética coletiva, a fim de levantá-la à altura de nossa época. (...) hoje, a missão dos que escrevem sobre arte não é mais lutar: é convencer e instruir. É dar às massas populares a noção indispensável do belo que tem de substituir a noção antiquada, que os pseudo-professores de beleza lhes inculcaram.” (p.142)
Alguns desses textos, elaborados como justificativas às obras que projetou, recuperam a dimensão da polêmica criada por seus projetos no ambiente paulistano, dividindo arquitetos, artistas e críticos num acirrado debate via imprensa. De um lado: Rino Levi, Warchavchik, Mário de Andrade; Oswaldo de Andrade, defendendo e promovendo a nova arquitetura, versus Christiano Stockler das Neves, Dácio de Moraes que insistiam na perpetuação dos valores clássicos e que foram apoiados por José Mariano Filho, insistente preservador do movimento neo-colonial. O mais completo levantamento do material publicado na imprensa, resgatando o debate travado sobre a introdução da arquitetura moderna no Brasil, foi realizado no início da década de 1980 pelo arquiteto Ricardo Forjaz Christiano de Souza numa exaustiva pesquisa para o antigo IDART – Departamento de Documentação e Informação Artística – hoje incorporado à Divisão de Pesquisa do Centro Cultural São Paulo. Essa documentação, ainda inédita, disponível apenas para consulta, complementa as idéias de Warchavchik aqui apresentadas, permitindo recuperar a totalidade do debate.
A preocupação em definir um caráter próprio para a nossa produção moderna, estritamente identificada pela historiografia como uma construção de Lucio Costa e assumida pelos seus colegas cariocas, tendo como marco inaugural o edifício sede do MÊS, já havia sido anunciada por Warchavchik praticamente uma década antes, quando associou as vantagens e a adequação da arquitetura moderna às condições locais: “No Brasil há inúmeras razões para adotarmos as linhas puras sem adereços inúteis, já devido à falta de pedra de talho, já porque a flora nos faculta meios para dispensarmos o reprovável emprego de estuque na ornamentação.” (p.52) e mais adiante reforça: “esta arquitetura será a mais regional possível, porque a sua primeira e principal exigência será a de adaptar-se à região, ao clima, aos costumes do povo.(...) as construções terão caráter original, formar-se-á um estilo novo, próprio ao lugar, confortável e de absoluta beleza.” (p. 59) É fato que o ambiente da década de 1920 era muito propício à valorização da produção nacional, haja vista a expansão do movimento neo-colonial na arquitetura, mas associar a produção moderna que se pretendia universal, a uma manifestação nacional, buscando adaptá-la às condições locais, revela um pioneirismo de Warchavchik, ainda que possa ter sido induzido a tal posicionamento, pela sua condição de recém-emigrado, procurando afirmar-se na nova pátria e conquistar uma futura clientela. Warchavchik chegou a defender em seus escritos uma produção eminentemente nacional, realizada por profissionais da terra, combatendo abertamente a produção dos imigrantes, entre os quais curiosamente não se incluía. A influência de sua mulher Mina Klabin, responsável pelos jardins da sua residência, pode ter sido decisiva nessa sua preocupação para com a identidade da arquitetura brasileira. Apesar de pouco tempo no país, Warchavchik discursava como brasileiro, não poupando críticas aos arquitetos estrangeiros: “caminha rápido o progresso da cultura geral em São Paulo, o que nos dará para muito breve os valiosos frutos do bom entendimento entre o público e o profissional. Somente é preciso que os arquitetos se esforcem para substituir os estrangeiros. Estes são os grandes causadores dos disparates cometidos em terras novas. (...) O único que pode criar realmente o estilo para o país é o próprio filho, porque as afinidades que tem em si fazem-no acertar assim que se liberta das influências exóticas.” (p. 53)
Merece atenção o interessante o balanço que fez, três décadas depois, sobre a produção moderna brasileira no artigo Importância e diretivas da arquitetura Brasileira, quando reconheceu a participação dos arquitetos no quadro das atividades técnicas e artísticas do país e a contribuição da produção brasileira ao panorama internacional que, segundo ele, é fruto de uma ação coletiva e não um êxito pessoal de um ou outro arquiteto. Certamente uma contestação, ainda que polida e respeitosa, à postura assumida por Lúcio Costa que sempre exaltou Oscar Niemeyer como um fenômeno genial e responsável único pela qualidade da arquitetura moderna brasileira. Identificando duas tendências dominantes, sendo uma delas “aquela em que preocupações demasiado plásticas interferem” (p. 176) e sem citar nomes, fica evidente no decorrer do texto a quem está se referindo: “arquitetos de talento e imaginação se lançam aos malabarismos plásticos, levados por soluções atraentes, em que se exteriorizam as suas concepções, sempre submetidas, entretanto, à correção da engenharia.” e mais à frente: “há uma tendência muito generalizada para se esquecer mesmo o ponto visual humano. Seria isto um influência da visão aérea ou da tentação que a maquetes estabelecem, de se apresentarem projetos à maneira de tapetes abstratos?”
Mesmo reconhecendo a repercussão da produção moderna brasileira, Warchavchik faz uma lúcida crítica às conquistas arquitetônicas modernas no âmbito da sociedade brasileira, no sentido de não ter conseguido uma participação mais ampla e consistente no sistema produtivo e na qualidade dos nossos centros urbanos, de modo a conseguir, de fato, transformações urbanas tão radicais quanto formalmente se conseguiu: “quero frisar aqui que é em atender apenas a um restrito grupo de pessoas, a uma certa camada de classes sociais, que esta arquitetura tem recolhido sua seiva. Seria imprescindível, assim, cuidar-se de enraizá-la no consenso geral, a fim de que, pelas instabilidades tão facilmente ocorrentes em nosso tempo, não nos velamos a braços com perdas substanciais, no caminho de uma conquista técnica e artística. É também uma de nossas falhas não termos resolvido ainda o problema da habitação do homem comum, da massa proletária, do aménagement rural, enfim rumo à ferme radieuse das indicações de Le Corbusier.” (p. 178)
O quadro da arquitetura brasileira, no final da década de 50, tal como apresentado por Warchavchik se mostrava incoerente com as premissas que anunciou desde 1925, justificando a necessidade de uma nova arquitetura que não só correspondesse às expectativas sociais, econômicas e urbanas do século XX, mas que, de fato, contribuísse para o seu melhor desenvolvimento, participando, no âmbito do espaço construído, do progresso social. “O ideal dos arquitetos modernos, bem como dos urbanistas e dos sociólogos, que não esquecem que estão vivendo no século XX, é conseguir a diretriz prática para orientar a fabricação de casas em grande escala, a fim de proporcionar, com um mínimo de preço, um máximo de conforto, principalmente às classes menos abastadas.” (p. 66) Hoje, frente às precárias condições de moradia de grande parte da população brasileira, podemos afirmar que essa situação identificada por Warchavchik só se agravou. Seu discurso parece ter perdido força frente à tendência dominante, por ele identificada como formalista e pela historiografia como a grande conquista da arquitetura moderna brasileira. Não conseguimos enfrentar os desafios do século XX, entrando em débito no novo século.
A publicação de Arquitetura do Século XX e outros escritos é muito oportuna, os desafios propostos por Warchavchik permanecem, infelizmente, bastante atuais.
[leia também "As propostas das vanguardas modernas", de Renato Luiz Sobral Anelli, sobre o livro de Gregori Warchavchik e o livro Depois do cubismo de Ozenfant e Jeanneret]
sobre o autor
Mônica Junqueira de Camargo, arquiteta, professora-doutora da FAU/USP.