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MOURA, Rosa. Curitiba e Portland: ingredientes comuns, resultados distintos. Resenhas Online, São Paulo, ano 06, n. 064.01, Vitruvius, abr. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.064/3115>.


A despeito de diferenças geográficas e culturais, as cidades Curitiba e Portland, esta no Oregon, Estados Unidos, têm em comum o generalizado reconhecimento como exemplares no planejamento e desenho urbano, apresentando similaridades em fatores que influenciaram seu desenvolvimento nas últimas décadas. A obra City making and urban governance in the Americas. Curitiba and Portland aprofunda-se na análise comparativa entre elas.

Para a autora, as experiências dessas cidades permitem explorar dinâmicas de governança associadas a determinadas sistemáticas de planejamento, e seu papel na elevação dos níveis de livability urbana e democracia. Ilustram áreas urbanas sob pressão de intenso crescimento, tendo respondido aos desafios postos com o que pode ser qualificado entre os mais renovados e abrangentes esforços em planejamento. Enfrentando tendências negativas, essas cidades oferecem, com relativa eficiência nos resultados, exemplos de tratamento integrado de questões como crescimento populacional acelerado e suas relações com uso do solo, transporte e sustentabilidade.

Clara Irazábal integrou-se à vida cotidiana dessas cidades, para desmistificar imagens impostas ao senso comum. Critica a limitação das muitas pesquisas que se restringem a instituições de governo e à base econômica dessas cidades, dado que assumem esses elementos como chaves para o sucesso das políticas locais. Salienta que para reconhecer o efetivo papel da governança e da participação cidadã é necessário explorar temas referentes a poder, cultura e subjetividade na produção do espaço. Admite que há uma única sinergia derivada da combinação de três componentes que produzem extraordinários resultados no processo de planejamento: liderança visionária, ampla e contínua; planos e políticas abrangentes, coordenados e efetivos; empowerment, inclusão e envolvimento sustentado dos cidadãos. Conclui que, no caso das cidades analisadas, ambas tiveram fortes lideranças e efetivos planos e políticas, mas pecaram no tocante à participação, seja pelo excesso – como em Portland, cujo exercício constante de construção e manutenção do consenso tem por vezes se tornado exaustivo e oneroso –, seja pela ausência – como em Curitiba, onde a preocupação de cidadãos, políticos e ONGs é quanto à sua não inclusão na dinâmica de planejamento –, seja ainda pela má administração dos processos participativos – situações que colocam os modelos em risco.

Uma introdução remete ao debate teórico da convergência ou divergência, sob argumento de que a discrepância entre as duas teorias está mais na aparência que na essência. Para a autora, um dos elementos considerados na convergência é a presença de traços da arquitetura e do urbanismo da globalização, independentemente da localização das cidades, perceptíveis na concentração espacial dos negócios internacionais, na gentrificação de áreas centrais, na fragmentação de espaços públicos, resultando na fortificação de condomínios e na guetificação de segmentos excluídos da população, entre outras características. O mesmo elemento tem potencial na formação de novas identidades, influindo no teor das contestações sociais e políticas da cidadania, alimentando assim a divergência.

Resgata de Cohen, sobre a convergência, que fatores econômicos, sociais, infra-estruturais, ambientais e institucionais vêm criando problemas similares em áreas urbanas, independentemente do nível de desenvolvimento das cidades. O que difere são as condições desiguais para enfrentar problemas, determinadas pela cultura local, capacidade de manejo financeiro e gestão, recursos disponíveis e organização política. Paradoxalmente à globalidade, a grande similaridade não deixa de advir do fortalecimento do fenômeno de afirmação do local no contexto geográfico internacional.

Das correntes contestadoras, destaca argumento de AlSayyad, de que não há um significado único que condicione distintas expressões do local. Ele questiona os indicadores socioeconômicos citados por Cohen e a extrema importância do meio construído, apontando que as similaridades desse meio são meras aparências, e que é imprescindível considerar as diferenças entre os processos históricos da colonização e pós-colonização, a condição de dependência, independência e nacionalismo, assim como discernir os condicionantes culturais e históricos que explicam o desenvolvimento físico das cidades.

Essas idéias são aferidas na leitura comparativa do decorrer do trabalho. Na parte I, Cidadãos e suas Cidades-Estado: uma abordagem da governança para o desenvolvimento urbano, uma reflexão teórica sobre governança urbana e participação nas definições dos modelos aprofunda a discussão conceitual sobre governança, como um processo que transcende o Estado. É proposto seu uso, juntamente com o de participação cidadã, como ferramenta para compreensão dos processos urbanos e instrumento de inclusão de agentes da sociedade no planejamento e gestão da cidade.

A parte II, Governança e a prática do urbanismo nas Américas (1960 e 2003): Curitiba e Portland, discorre acerca da perspectiva de políticas de desenvolvimento urbano e regional. Para desvendar Curitiba, além de explorar os determinantes do regime político vigente e do seu projeto hegemônico de planejamento, a autora contrapõe a aclamação internacional do modelo à voz quase isolada de alguns pesquisadores e ativistas nacionais, combinada a evidências empíricas de seu trabalho de campo. Identifica fatores que fragilizam o modelo de planejamento e governança, e que podem resultar na erosão do grau de reconhecimento conquistado.

Sobre Portland, destaca elementos que permitiram a transformação recente do meio ambiente urbano, conjugando a ação dos diferentes níveis de governo à contínua participação da sociedade civil. Juntos, definiram, defenderam e implementaram planos locais e regionais destinados a acomodar crescimento com sustentabilidade do meio natural, livability urbana, e a lograr destaque econômico da cidade na região. Ação esta que não esteve isenta do clima de tensão da instabilidade crônica dos programas urbanos em estruturas mais fechadas do poder municipal, incorrendo às dificuldades inerentes às negociações e construção do consenso – premida entre grupos pró-crescimento, anticrescimento, ou a favor do crescimento smart, qual seja, aceitando sua inevitabilidade, mas alegando que o mesmo deve ser conseqüentemente planejado para provocar o mínimo de danos ao meio e ao desenvolvimento da metrópole como um todo.

Na parte III, O meio construído na Era da Globalização: o fazer a cidade e a (re)produção da desigualdade social e espacial em Curitiba e Portland, são destinados capítulos específicos às temáticas contemporâneas do debate urbano, alternando-os entre essas cidades. É dada centralidade à importância que as metrópoles vêm assumindo na economia global e na nova ordem social, e aos impactos, no meio construído, resultantes das dinâmicas desse processo fortemente competitivo. A autora antecipa que a oferta de moradia não apenas reflete as desigualdades socioespaciais como as determina, atribuindo-lhes especificidades conforme a cultura local. Mostra como alguns produtos da arquitetura são destinados a criar uma imagem contemporânea da cidade, ampliando seu grau de competitividade no mundo globalizado. A análise observa como as formas globais de dominação são mediadas pelas lutas e cultura locais.

Particulariza em Curitiba a leitura sobre as cidades muradas e edge-cities, expressivos elementos do design urbano da globalização, tornando-se as novas formas de produção e consumo do espaço, sob comando do capital imobiliário internacional. Formas que provocam mudanças no caráter do espaço público e na participação dos cidadãos na vida pública, impactam as escalas regional e metropolitana, introduzindo elementos de alienação, porém, paradoxalmente, permitindo recriar a possibilidade da vida em comunidade – positividade posta em dúvida por autores como Bauman.

Analisa a arquitetura e a construção da imagem, abordando detidamente a evocação da tradição versus transnacionalismo crítico. Discute a configuração simbólica e espacial de Curitiba como cidade multicultural no tocante à formação étnica, preservação e representação, invenção e commodificação da tradição no meio construído, assim como as reivindicações e contestações que se sobrepõem à subjetividade social e ao espaço urbano. Demonstra como a tematização de instalações que exploram o vernacular é uma das práticas mais usadas oficialmente pelo município, evocando tradições arquitetônicas do Primeiro Mundo em prol da construção da imagem urbana e do turismo. A criação dos inúmeros (e seletivos) memoriais étnicos se insere no processo singular de reinventar a tradição, no qual uma definição do futuro é contemplada na reconstrução editada do passado.

Em Portland situa a reflexão sobre controle do crescimento e oferta de moradia, com suas tipologias arquitetônicas contrastantes e pontos de vista conflitantes sobre planejamento. Foca a análise nos projetos Street of Dreams e Cascadian Tower, divergentes na retórica da qual derivam e nos seus impactos nos planos oficiais da cidade. Tais projetos subvertem ou reinterpretam planos desenhados sob visão das estratégias de gestão do crescimento e na compreensão urbana do Oregon, representando pontos de vista opostos sobre a necessidade de densificação e refletindo os debates sobre preservação ou expansão das fronteiras do crescimento metropolitano. Trazem ainda elementos para a discussão de cyber comunidades ou experiências simultâneas de vida espacial e a-espacial.

No capítulo Nike vis a vis Adidas: espacializando o planejamento regional investiga em que contexto as sedes desses complexos corporativos foram concebidas e se instalaram em Portland, enquanto produtos de ou reações às principais posturas do discurso do planejamento na metrópole. A comparação incorpora a tensão entre a tríade de premissas em oposição ao planejamento: criação de tipologias suburbanas X tipologias urbanas; produção ou proteção da natureza X comunidade; e processo de design imposto autoritariamente (top-down) X discutido pelas bases (botton-up). A arquitetura da sede da Nike foi conceitualmente concebida com base nas premissas de proteção e enaltecimento do meio ambiente e desejo de incorporá-lo no cotidiano das pessoas, afeto aos objetivos conservacionistas da agenda de planejamento das metrópoles dos anos 1960/1970. Diferentemente, a arquitetura da Adidas Village justifica-se na criação de comunidades sociais mais densas, mais habitáveis, meios físicos urbanos mais inclusivos, correspondendo ao movimento recente do planejamento socialmente-orientado e à agenda social da metrópole, voltada à inclusão e promoção.

Todas essas idéias se articulam no epílogo Governança Urbana e o Fazer a Cidade na América. Inicialmente são sumarizadas as semelhanças e diferenças entre os processos de planejamento e governança das duas cidades, postulados alguns desafios que devem ser enfrentados e alguns ensinamentos a serem aprendidos em prol de seus modelos. Seguidamente, são enumeradas as implicações de uma análise eclética da governança urbana para avaliar processos de planejamento, design e arquitetura urbana, e anotadas propostas e direcionamentos de pesquisas.

Quanto aos desafios de Curitiba e Portland nas próximas décadas, as conclusões de Clara Irazábal sugerem que serão determinados pela interação com o mundo global, cabendo evitar riscos maiores de fragmentação e de perda de identidade local – efeitos estes entre os mais negativos do processo. Como essa interação pressupõe tecnologia, fluxos de informação e poder financeiro, Portland estaria apresentando melhores chances que Curitiba, dada sua inserção em segmentos da indústria eletrônica e condições para o desenvolvimento de estratégias de inovação tecnológica. Curitiba, além de se apoiar em atividades centradas em segmentos industriais não estratégicos à nova ordem, teria ainda de enfrentar as contingências econômicas e financeiras do País.

Com otimismo, salienta que as forças da globalização, entretanto, não são tão fortes a ponto de excluir a autonomia de iniciativas locais. Perante problemas urbanos, experiências de governança, planejamento e produção arquitetônica e urbanística, se aplicadas eficazmente como mediadoras das forças globais, colocando em vigor especificidades das culturas locais, podem promover mudanças substantivas, reavivando a esperança nos resultados positivos da participação democrática no processo de fazer a cidade.

[uma versão mais pormenorizada desta resenha foi publicada na Revista Paranaense de Desenvolvimento. Curitiba, IPARDES, n.109, p. 165-171, jul./dez. 2005]

sobre o autor

Rosa Moura, geógrafa do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Projeto Institutos do Milênio – CNPq.

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