Escrito nos anos setenta do século passado pelo crítico marxista inglês Raymond Williams (1) (1921-1988), O Campo e a Cidade na História e na Literatura foi publicado pela primeira (e única) vez no Brasil em 1989. Trata-se de uma importante referência na área do pensamento social sobre campo e cidade e os modos de vida que engendram ao longo dos tempos. Há muitos anos esgotado, e dificilmente encontrável em sebos, sua reedição vem sendo requerida há bastante tempo. Clamor atestado pelos comentários postados nos endereços eletrônicos especializados em livros, bem como na própria página desta obra no site de sua editora. Esta resenha é uma forma de ecoar essa demanda.
Meu exemplar dele já tem as páginas amareladas pelo tempo. Eu o comprei, e o li pela primeira vez, em 1991, quando escrevia meu trabalho de graduação. Posteriormente, tornei a relê-lo várias vezes, em diferentes tempos, e pelos mais diversos motivos. Considero uma obra atualíssima. A análise histórica sobre obras literárias que retratam o campo e a cidade, acompanhada de reflexões detidas nas transformações expressas pelo pensamento social, reforça a especificidade de cada um desses conceitos e sua inter-relação. A observação detém-se ao caso inglês, berço da revolução industrial, incoativa das transformações no convívio entre esses dois ambientes.
Dada a sua proficuidade, o livro permite abordagem por entradas as mais diversas – o urbanismo e a formação da vida urbana, o paisagismo e o bucolismo, a literatura e a pintura são algumas delas. Para esta resenha, escolhi enfocá-lo pela ótica das relações de trabalho envolvidas com os conceitos de campo e cidade. A seguirmos a teoria preconizada pelo psicólogo social romeno (radicado na França), Serge Moscovici, podemos considerá-los, campo e cidade, como duas representações sociais. Assim são considerados nesta resenha. Consideração justificável pelo fato de campo e cidade, neste livro, atenderem às características essenciais de uma representação social: constituírem uma ordem orientadora, um código nomeante e classificador. Vale dizer, nos moldes como são definidas as representações sociais por Moscovici. Essa característica nomeadora e codificadora, inclusive, permite ancorar o trabalho, a divisão de classes, e as idéias de desenvolvimento nas representações de campo e cidade.
Segundo esse foco, há argumento desde a dedicatória, feita aos quatro avós trabalhadores rurais do autor, e durante todo texto. Isso porque, no percurso do livro, Williams deixa transparecer o quanto o reconhecimento de si mesmo, e de sua história pessoal de descendente do campesinato foi determinante das reflexões desta obra. Para citar apenas um dos momentos em que essa influência é notável, reportamos um dos relatos que o autor escutou de seu avô:
“Ouvia meu avô falando do “jantar de trabalhador” num tom que, na época, me parecia – e ainda hoje me parece – de um orgulho compreensível: um coelho apanhado atrás da sebe, uma rutabaga arrancada da beira do caminho – uma refeição para oito crianças” (2).
O reconhecimento da história pessoal como um indutor da narrativa parece calcado no ato de subsumir uma vida pré-literária, condicionante, ela mesma, do porvir de uma compreensão futura do fato literário. Um senso comum, para usar um conceito caro à teoria das representações sociais. Algo que é nitidamente elucidado no seguinte raciocínio de Williams:
“A maioria das pessoas, antes de adquirir qualquer educação literária, aprende a conhecer e dar valor à vida tradicional – bem como a sentir as tensões por ela impostas. Vemos e aprendemos com base no modo como nossas famílias vivem e se sustentam; um mundo de trabalho e costumes locais, e de crenças tão profundamente dissolvidas nas ações cotidianas que de início nem sequer sabemos que são de fato crenças, passíveis de mudança e questionamento” (3).
Essa valorização do saber tradicional imbuindo a vida cotidiana é já indicativa de que campo e cidade são representações sociais que infundem o senso comum dos trabalhadores, manifestando-se em suas práticas e crenças. Bem como o senso comum do próprio autor, que, como acima vimos, reconhece-se nessa história. É com este olhar de reconhecimento que o crítico percorre diversos momentos da história social da Inglaterra pelas páginas da literatura inglesa. Cobrindo desde o século XVI, até àqueles anos 70 do século XX em que foi escrito este livro.
Nesse percurso, Williams desmistifica alguns conceitos consagrados numa acepção literária e histórica. Mais ainda, ele revela como certas terminologias são criadoras de distinções sociais, o que ilustra com os exemplos buscados na estrutura econômica da sociedade rural. É o que acontece quando ele analisa alguns escritos que dizem que o proprietário “lavra” e “pastoreia”, enquanto os trabalhadores tão somente “trabalham”. A propósito disso, o crítico assinala um correlato contemporâneo, destacando uma distinção por vezes ainda detectável nas falas da construção civil: a de que o empreiteiro e o arquiteto “constroem”, enquanto os operários “trabalham” em uma obra. Um senso comum que atravessou o tempo.
O problema da diferenciação de classes é novamente acionado quando do destaque para a coexistência de dois tipos de produção de paisagem no século XVIII: o cercamento e suas sebes e estradas retilíneas – terra preparada para o trabalho de arrendatários e trabalhadores; e os parques com suas curvas e seu desenho irregular – terra para o consumo do proprietário, sua vista, sua paisagem. Estas últimas, destaca Williams, consistem no ápice da arte rural burguesa que, descortinando bosques e águas, revela analogias com a pintura e a poesia neobucólica. Era a paisagem que se via do alto de sítios elevados, de terraços e amplas janelas, e que manifestava o controle e o domínio.
Conforme Williams, nessas paisagens, além da separação da posse, dá-se a separação do espírito, e, a seu ver, nestes dois tipos de distinção, a idéia de natureza foi captada e transformada. A separação do espírito é assim definida: “o reconhecimento de forças das quais fazemos parte, mas que podemos sempre esquecer, e com as quais é preciso aprender, em vez de tentar controlá-las” (4). Dois princípios de natureza então se afiguram. Um é o da natureza como princípio de ordem, do qual participa a mente ordenadora. O outro é o da natureza como princípio de criação, do qual a mente criadora faz parte, nos permitindo apreender as verdades de nossa própria natureza, harmonizadas com a natureza exterior. Essa harmonia ativa é a real mudança de mentalidade, a nova consciência que, mesmo restrita a uma minoria, surge justamente na época em que a transformação intencional da natureza iria entrar na fase dos processos industriais. Williams acrescenta que a confiança agrária do século XVIII viera sempre acompanhada de sentimentos de perda, melancolia e arrependimento como contraponto.
Prosseguindo em seu percurso entre a cidade e o campo, Williams aborda ainda importantes transformações na primeira. É a formação de uma mentalidade urbana, de um caráter de “gente da cidade”. É o surgimento do orgulho inspirado pelo poder da revolução industrial; da mobilidade alcançada com a ferrovia e suas contradições – sua analogia com o sangue vital e, ao mesmo tempo, com a morte, na obra de Dickens. As dificuldades impostas pelo fenômeno industrial e suas repercussões sociais são profundamente tratadas também no âmbito urbano da incipiente industrialização. O olhar de Williams contempla as diversas formas como se mostrou, na literatura, o reconhecimento dessa realidade. Percorrendo várias visões da realidade urbana, o crítico chega ao momento em que a imagem da cidade torna-se proeminente na literatura mundial, com Balzac, Baudelaire e, ainda que de forma diferenciada, Dostoievski. Balzac demonstrava a complexidade social da cidade, enquanto Dostoievski enfatizava os elementos de mistério, estranheza e perda de conexão. Quanto a Baudelaire, Williams entende que, na obra do poeta, o isolamento e a perda de conexão tornaram-se as condições de uma nova e viva forma de perceber.
Noutra perspectiva de contemplação da imagística que caracterizava a nova consciência urbana, Williams destaca aquela da descontinuidade e atomização da cidade, na vivência estética que lhes dá Virginia Woolf. Algo que a escritora tratava como um problema de percepção, suscitador de questões de identidade que se resolviam com a chegada ao campo. O crítico ressalta a importância dessa perspectiva, conquanto a experiência fragmentária persista até os dias atuais, como uma “condição perceptiva.” Será no Ulysses de James Joyce que esse modo de percepção e identidade alterados se revelará de forma mais memorável, assevera Williams. Isso porque, mesmo após sucessivas gerações humanas terem aprendido novos modos de ver, sua incorporação ao método literário é devida a Joyce.
Concluindo sua leitura das transformações modernas advindas das cidades, Williams declara que elas foram o berço de duas grandes idéias transformadoras: o mito e a revolução, em suas respectivas formas variáveis. O crítico entende que cada um desses conceitos se propõe a converter o outro, de acordo com suas próprias regras. No entanto, ele sugere ser melhor defrontá-los como reações alternativas, já que em milhares de cidades eles vivem um conflito direto, acirrado e necessário.
Já relativamente ao campo, analisando o que se produziu no século XIX, Williams destaca três vertentes principais, assumindo-as como complexas. A primeira representa a persistência e o desenvolvimento do romance “regionalista”. A segunda, uma vertente que representa o progresso de sentimentos a respeito da terra e da vegetação natural que, em outra modalidade, revela uma imagística dos relacionamentos humanos. A terceira é representada por memórias, descrições da vida rural – muitas demonstrando a consciência da perda do passado –; outras, destacando as condições do meio antrópico: a utilização e destruição da terra, as ameaças ao mundo natural.
Williams observa, também, uma dada convergência mental entre e campo e cidade: as ficções de cidades do futuro interagem com as antigas ficções bucólicas. Ele, entretanto, as distingue como segue. Nas bucólicas se deu um afastamento progressivo das realidades da vida campestre. Já na ficção urbana, ocorreu uma aproximação com textos de sociologia e planejamento urbano, com estudos respeitantes à administração de cidades e ao meio ambiente físico da civilização industrial e metropolitana. Em todos esses textos, os problemas urbanos, tais como tráfego e poluição, e os efeitos sociais e psicológicos, são muitas vezes tomados como avassaladores e, vez por outra, insolúveis. Considerações vistas com estranheza por Williams, por coexistirem com um rápido crescimento metropolitano, na maioria das vezes sem planejamento. Enquanto em outros casos, coexistiam com planejamentos específicos, maiores em escala. (Nestas últimas incluídas as cidades lineares de mais de cem quilômetros, e as novas cidades concebidas e construídas com base em mapeamentos e projeções).
Durante toda a sua análise da relação cidade-campo, Williams pauta-se pela subsunção do modo de produção capitalista como processo subjacente à maior parte da história conhecida de campo e cidade. Ele apregoa a necessidade de questionar não apenas o que está acontecendo num dado momento histórico relativamente às idéias de campo e cidade, mas, também, de especular quais outras noções estão associadas a essas. Como exemplo disso, o crítico lembra que usualmente diz-se cidade em referência ao capitalismo, à burocracia ou ao poder centralizado. Por outro lado, salienta, ao campo, em diferentes épocas, associam-se idéias opostas entre si, tais como: a independência e a pobreza; o poder da imaginação ativa e o refúgio da inconsciência. Williams acrescenta que, no tempo da escrita deste livro, à imagem do campo relacionava-se a imagem do passado; e à da cidade a visão do futuro. Uma perspectiva que o crítico considera limitante, por reservar ao presente o papel de uma lacuna. Dito de outro modo: a representação social campo ancora a representação de retrocesso, a representação social cidade ancora a representação de progresso. Diante dessa dicotomia, o presente fica sem representações que possam defini-lo.
O argumento de Williams por um estudo comparado entre cidade e campo é o da necessidade de confrontação dessas instâncias com as realidades históricas. Precisamente isto o conduziu a fazer um levantamento dos processos por ele considerados mais importantes, e de suas principais variações dentro da literatura inglesa. Literatura por ele tida como a mais rica em temas referentes ao campo e à cidade, o que corrobora a justificativa do recorte. O crítico ocupou-se da sociedade inglesa por entender que ela atravessou um processo de mudança intensa, de modo prístino e muito completo, sobretudo pela revolução industrial. Processo que se passa primeiro em uma economia e uma comunidade rural, e depois num contexto urbano. Williams admite ser uma história específica, mas a considera relevante, na medida em que, sob alguns aspectos, foi um modo de desenvolvimento que dominou em muitas partes do mundo.
Só por esta alegação alusiva à transcendência espaço-temporal da obra, o livro já poderia ser considerado um clássico. Mas, tendo em vista a sua enorme riqueza, suscita outras tantas alegações a favor desse seu caráter. Dentre elas, destaco uma que, além espelhar exemplarmente o que sinto em relação a este livro, reforça a pertinência de sua reedição. É a transcrita abaixo, recolhida dentre o arrazoado de Italo Calvino em seu libelo Por que Ler os Clássicos.
“Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los” (5).
notas
1
Algumas das outras obras de Williams publicadas no Brasil: Cultura e Sociedade, 1780-1950 (Nacional,1969); Marxismo e literatura (Zahar, 1979); O povo das montanhas negras (Companhia das Letras, 1991).
2
WILLIAMS, 1989, p. 251.
3
WILLIAMS, 1989, p. 270.
4
WILLIAMS, 1989, p. 77.
5
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 10.
sobre o autor
Eliane Lordello, arquiteta e urbanista, é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (MDU/UFPE)