Personagem de grande destaque no panorama cultural do século XIX, Camillo Boito (1834-1914) nasceu em Roma no seio de uma família que gozou de grande prestígio intelectual e artístico. Foi o filho primogênito do pintor Silvestro Boito (1802-1856) e, teve como irmão o poeta, libretista e músico Arrigo Boito (1842-1918).
Desenvolveu seu trabalho em várias áreas do conhecimento se destacando como arquiteto, restaurador, historiador, professor e teórico. Suas contribuições na área da Arquitetura e da restauração classificaram sua obra como detentora de uma posição moderada entre Ruskin e Viollet-le-Duc.
Ingressou na Academia de Belas Artes de Veneza no ano de 1849, onde começou sua formação como arquiteto. Inicialmente adotou o estilo neoclássico como tendência arquitetônica, característica corrente na Academia, mas logo se empenhou no estudo da arquitetura italiana da Idade Média após conhecer o mestre Pietro Selvático (1803-1880), cujos argumentos apontavam o Gótico como a expressão artística do povo italiano.
Boito estava inserido em um contexto sócio-cultural que buscava a unificação das províncias italianas e que reconhecia simbolicamente a arquitetura medieval como identidade do caráter nacional. Durante esse mesmo período, Ruskin freqüentava a cidade de Veneza e mantinha um relacionamento profissional com Selvático, assim como, a Academia Veneziana considerava Viollet-le-Duc um personagem de grande importância no estudo e difusão dos conhecimentos sobre a arquitetura medieval. Foi apenas uma questão de tempo para que as influências desses três homens interferissem nas construções teóricas de Boito.
Após sua formatura colaborou como professor na Academia de Veneza, mas logo em seguida, no ano de 1856, iniciou uma série de viagens pela Itália onde continuou seu estudo sobre a arte medieval. É importante destacar que durante o período de sua formação, foi criada na região de Veneza uma legislação específica para a proteção dos monumentos italianos.
Dois anos depois, em 1858, Boito foi designado para a restauração da Basílica dos Santos Maria e Donato, na cidade de Murano, fundamentando sua proposta de intervenção na análise completa dos aspectos de composição formal, técnica e construtiva da edificação, buscando compreender a arquitetura do passado. Defendeu a preservação da pátina, e a demolição dos elementos acrescentados ao longo do tempo que se diferenciavam do estilo original da construção, propondo que os novos elementos fossem edificados a espelho da arquitetura pré-existente.
Apesar de se basear em documentações, desenhos e fotografias, seus métodos de intervenção sofreram forte influência da “restauração estilística” de Viollet-le-Duc (1), mas, paralelamente, preservava aspetos da degradação natural das edificações (pátina) como prova das marcas deixadas pelo tempo, invocando assim um certo romantismo ruskiniano.
No ano de 1860, Boito assumiu como professor de arquitetura na Academia de Belas Artes em Brera, estabelecendo-se em Milão, onde permaneceu até 1909. Seu trabalho em Brera o destacou como professor, historiador e teórico, contribuindo para a transformação arquitetônica e cultural de seu país.
No ano seguinte executou outro trabalho de intervenção onde adotou os mesmos princípios leducianos. Na Porta Ticinese, em Milão, buscou alcançar a unidade formal do monumento a partir da formulação de um “modelo” característico baseado em seu estilo original.
Podemos dizer que comparado ao conservadorismo Ruskiniano, em não ofender a originalidade da obra, Boito foi além se permitindo “manipular” a matéria a partir de seu aguçado senso crítico e extremo conhecimento sobre as escolas e os estilos dos objetos restaurados.
Segundo Kühl, Boito “concebe a restauração como algo distinto e, às vezes, oposto à conservação, mas necessário. Constrói sua teoria justamente para estabelecer princípios de restauração mais ponderados (entre Ruskin e Viollet-le-Duc)” (p.23).
Boito produziu sua obra em um período dominado pelo ecletismo, o que ele mesmo classificou como uma época sem estilo próprio, o que possibilitou o estudo, a análise, o entendimento e a apreciação dos estilos do passado. De acordo com Boito, “os últimos cinqüenta ou sessenta anos gabam-se por estimar e por conhecer com imparcialidade tudo o que antes aconteceu em arte e em beleza. [...] a pirâmide egípcia, o templo grego, o anfiteatro romano, as catacumbas cristãs, o batistério bizantino, a basílica lombarda, a catedral ogival, os palácios do século XVI, as cártulas do século XVII, as fantasias do século XVIII [...] não tem mistério. [...] (desta forma) nós, do bem-aventurado século XIX, temos um braço tão grande que tudo acolhe para si. [...] (e) isso não poderia ser imaginado em nenhuma outra época” (p. 32 e 34).
Em seu período de maturidade conceitual, Boito defendeu sua tese de forma avessa aos princípios anteriormente enunciados por Ruskin e Viollet-le-Duc, pois acreditava que os monumentos não poderiam ser relegados à ruína ou à morte (2), muito menos se deveria chegar a uma unidade formal baseada em analogias estilísticas (3), o que o fez anteriormente, por exemplo, na Porta Ticinese.
No final do século XIX, reformulou as práticas de restauração criando uma vertente classificada como “restauro filológico” (4). Podemos dizer que Boito contribuiu de forma direta para a formulação dos princípios modernos de restauração, na medida em que defendia o respeito à matéria original da pré-existência, a reversibilidade e distinção das intervenções, o interesse por aspectos conservativos e de mínima intervenção, a manutenção dos acréscimos de épocas passadas entendendo-as como parte da história da edificação, assim como, buscou harmonizar as arquiteturas do passado e do presente a partir da distinção de sua materialidade.
Boito defendeu suas teorias de restauração em arquiteturas patrimoniais utilizando a pintura e a escultura como exemplificações concretas das particularidades de cada área, de forma que assumissem a mesma importância em todos os âmbitos, sugerindo aos restauradores que compreendessem com maestria os estilos da arte a fim de intervir nas obras do passado que estivessem mutiladas, alteradas ou arruinadas.
Com a mesma ênfase, defendeu que esse conhecimento deveria ser utilizado, quando muito, para “corrigir” as velhas e más restaurações que tivessem arruinado ou comprometido o valor artístico do conjunto como um todo. Acreditava que o domínio desse conhecimento estabeleceria os critérios e os limites de intervenção em uma obra histórica.
Alertou para os perigos decorrentes dos completamentos e reconstruções, onde as ações do interventor se inspiram na fantasia, no devaneio e na vaga idéia do que poderia ter sido a obra em sua originalidade. Mesmo possuindo o conhecimento pleno dos estilos da arte e da arquitetura, o restaurador deveria buscar no conjunto edificado (o testemunho de sua própria história) e nos documentos originais da obra (desenhos, fotografias, plantas etc), as fontes primárias para sua proposta de intervenção, e, na falta desses, utilizar o bom senso infringindo o mínimo de ações possíveis, como observamos na seguinte passagem:
“Invoquei o Hércules em Repouso, imponente, verdadeiro símbolo da força. Ninguém parecia mais apto do que Michelangelo a acrescentar-lhe as pernas que ainda não haviam sido encontradas. [...] (Após algum tempo) o artista põe-se a trabalhar [...] examina, re-examina, gira em volta, regira, depois, pega o martelo e quebra [...] e (em seguida) dizem que gritava: nem um dedo eu saberia fazer para essa estátua” (p. 39).
Camillo Boito concluiu sua tese explicitando o conservadorismo que permeou seu trabalho de restauração em arquitetura, defendendo que as intervenções deveriam conservar nos monumentos o seu velho aspecto artístico e pitoresco entendendo isso como respeito à materialidade do objeto. Da mesma forma, chamou a atenção para o fato de que a conservação e a restauração não poderiam ser entendidas como a mesma coisa.
Sugeriu que a conservação periódica seria um instrumento eficaz de preservação, acreditando que as restaurações só deveriam ser realizadas quando necessárias a fim de não abdicar da memória e dos valores implícitos de determinadas obras. Boito complementou suas idéias defendendo que os completamentos e adições, quando necessários, deveriam demonstrar ser obras contemporâneas diferenciando-se da matéria original sem colidir com o aspecto artístico do monumento.
Podemos dizer que Boito procurou a verdade dos fatos baseado na convicção de que cada edificação constitui um objeto único e distinto, ou seja, cada caso é um caso, composto por particularidades diferentes, e, portanto, deve ser tratado de maneira específica.
notas
1
Viollet-le-Duc adotava o método de analogia em seus projetos de intervenção e restauração, ou seja, os completamentos das peças faltantes eram feitos a partir de cópias fiéis de motivos do próprio edifício ou de construções similares da mesma região.
2
Se comparadas às teorias de Ruskin.
3
Se comparadas às teorias de Viollet-le-Duc.
4
O restauro filológico dava ênfase ao valor documental da obra, destacando o valor primordial das edificações enquanto testemunho e documento histórico.
[este texto foi originalmente apresentado junto a monografia de conclusão do curso de pós-graduação – Especialização em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil – da Faculdade de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), no primeiro semestre de 2007, com o título: “Conservação, restauração e intervenção em arquiteturas patrimoniais”. Texto descrito entre as páginas 24-28]
sobre o autor
Rogério Pinto Dias de Oliveira possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (2001) e especialização em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Atualmente é aluno do Mestrado em História, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, trabalha com projetos de arquitetura, e coordena a série de publicações intitulada “Manuais do Patrimônio Histórico Edificado da UFRGS”, da Secretaria do Patrimônio Histórico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul