Informatização, informatização
A máquina evolui, o homem fica paradão
Informatização, informatização
A gente se deforma e se conforma com razão
Herrar é umano eu sei
A gente é imperfeito de dar dó
Computador é mutcho mais perfeito
Inclusive sabe errar muito melhor
[trecho da letra da música “Conformática”, de Ayrton Mugnaini Jr., Língua de Trapo]
Os temas da Qualidade do ambiente construído e da gestão do processo de projeto estão na pauta das discussões contemporâneas sobre as cidades, as edificações, mas principalmente sobre a natureza da arquitetura e as características atuais e futuras do trabalho dos arquitetos.
Os enfoques predominantes sobre o assunto, no entanto, tendem ao pragmatismo e à racionalização, minimizando (quando não excluindo) os aspectos artísticos, sociais e políticos envolvidos. Mas há dissonâncias, e dentre elas a dissertação de mestrado de Simone Wolff (1), defendida na Unicamp em 1998 e publicada pela Editora da Unicamp e Eduel em 2005, intitulada Informatização do trabalho e reificação – uma análise à luz dos programas de qualidade total.
A epígrafe do texto de Wolff, com um trecho de uma entrevista de Eric Hobsbawm (1998), já sinaliza o alcance das reflexões da autora e nos permite estabelecer vínculos entre seu enfoque e o imaginário contemporâneo acerca do trabalho dos arquitetos:
“O modelo de análise e previsão em moda é fornecer todos os dados correntes disponíveis para algum supercomputador, imaginário ou real, e deixar que ele apresente as respostas. A experiência humana direta não se presta a isso. E esse cálculo histórico, ou até mesmo anti-histórico, não tem consciência de ser cego, e é inferior à visão assistemática dos que podem usar os olhos.”
Não haveria, no âmbito da arquitetura, fetiche semelhante? Algo como um sistema alimentado com o máximo de informações da história da arquitetura, do urbanismo, da tecnologia, da sociologia, dos aspectos patrimoniais e ambientais, capaz de tomar milhares de decisões em sequência, rigorosamente pautadas por parâmetros de qualidade, estética, economia e sustentabilidade, capaz, em suma, de projetar mais rapidamente que qualquer equipe de arquitetos e engenheiros, e oferecer como resposta dezenas de soluções alternativas igualmente eficientes, apresentadas em desenhos completíssimos e maquetes encantadoras, esculpidas em plotters tridimensionais?
Construindo uma aproximação histórica ao processo de trabalho no mundo moderno, Wolff reconhece os aspectos criativos e subjetivos inerentes ao trabalho humano e, conseqüentemente, os processos de alienação (reificação) e fetichização intensificados pelo Taylorismo, pelo Fordismo e, mais recentemente, pelos PQTs (Programas de Qualidade Total), idealizados e desenvolvidos nas indústrias japonesas nos anos 50.
Suas reflexões conduzem ao reconhecimento da constituição do novo “homem-máquina”, modelo contemporâneo da expropriação do trabalho, baseada na informática e que tem uma expressão dramática nos atendentes de telemarketing (2) (e porque não nos arquitetos transformados em “CADistas”?).
O amplo alcance do enfoque da autora, entretanto, não compromete sua profundidade e agudeza, ao contrário, os intensifica, de modo que suas interpretações conservam validade e clareza quando transpostos para o campo específico de atuação dos arquitetos.
Pensemos no mercado imobiliário à luz deste comentário da autora sobre as reflexões de Antonio Gramsci (1891-1937): “no capitalismo, a palavra ‘qualidade’ significa apenas a vontade de empregar muito trabalho em pouca matéria, aperfeiçoando o produto ao extremo, isto é, a vontade de especializar-se para um mercado de luxo’...Portanto, enquanto vigorar a lógica da mais-valia e a constante e extrema racionalização produtiva... nota-se a inviabilidade de realização da primazia da qualidade sobre a quantidade” (p. 192-193).
Este é o teor das considerações de Simone Wolff organizadas em quatro capítulos, após uma breve introdução que contextualiza o foco da autora nos processos de informatização da produção ocorridos a partir da década de 80. Os dois primeiros capítulos apresentam conceitos básicos e compõe antecedentes históricos à Informatização da Produção, tratada no capítulo 3, e à relação entre Qualidade Total e Informática, tratada no capítulo 4. As Considerações Finais que encerram o volume retomam os principais conceitos tratados no texto e compõem uma síntese das interpretações da autora, evidenciando as contradições e antagonismos da informatização, e demonstrando suas características de renovação da exploração da força de trabalho com novas formas de alienação que, como bem observa Roberto Heloani na apresentação do livro, vêm camufladas sob um discurso sedutor de humanização, flexibilização e modernização.
Ciente de que, para o capital, “quem revela o que realmente ocorre com o uso da maquinaria é um adversário do progresso social” (Marx in Wolff, p. 241), a autora caracteriza historicamente o discurso “triunfalista” da informatização – que a toma como um deus ex-machina, inevitável e necessariamente positivo – e o expõe como aquele discurso que habitualmente desqualifica as críticas e oposições como se formuladas por “analfabetos digitais”, anacrônicos, românticos e passadistas.
Neste contexto, qual será o papel da Tecnologia, considerando-a como lógos, reflexivo e crítico, sobre a técnica e a produção da arquitetura e do urbanismo? Alimentar a reificação, e dissimular a alienação? Ou reconhecer e recuperar o caráter criativo do trabalho humano? Como preservar o reconhecimento do desejo e da contribuição individual na produção coletiva dos ambientes construídos? Que futuro se delineia para o trabalho dos arquitetos frente à crescente e “inquestionável” informatização, e ao avanço dos programas de qualidade e gestão do projeto? Quais seriam nossas alternativas?
Ao construir um campo de interpretações sobre as relações entre trabalho e informatização no mundo contemporâneo, Simone Wolff nos ampara na construção de um entendimento mais amplo das questões e problemas que se configuram nas áreas de atuação de arquitetos e urbanistas, aos quais não poderemos nos furtar.
notas
NE
A publicação em Vitruvius, autorizada pelo autor, aconteceu em fevereiro de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
1
A autora possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL (1995), mestrado em Sociologia (1998) e doutorado em Ciências Sociais (2004), ambos pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professora da Universidade Estadual de Londrina, Paraná.
2
A tese de doutorado da autora: O espectro da reificação em uma empresa de telecomunicações: o processo de trabalho sob os novos parâmetros gerenciais e tecnológicos, foi defendida no IFCH Unicamp, em 2004.
sobre o autor
Artur Rozestraten, arquiteto e urbanista (FAU USP, 1995), Mestre e Doutor junto ao Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAU USP, 2003 e 2007). Professor junto ao Departamento de Tecnologia da FAU USP, São Paulo, desde 2008.