Grande parte das cidades de países emergentes sofrem com a falta de infraestrutura necessária para atender seu contingente populacional em constante expansão. O resultado é a marginalização da parcela excedente que se vê obrigada a ocupar áreas rejeitadas, terra de ninguém como pântanos, regiões inundáveis ou ainda imóveis abandonados. Essas favelas e cortiços tão presentes nas metrópoles foram pautas de discussão para o arquiteto austríaco Richard Joseph Neutra em seu livro publicado em 1948: Arquitetura social em países de clima quente (1).
Nascido em 08 de abril de 1892, em Viena, Áustria, Neutra formou-se arquiteto pela Universidade Técnica de Viena e, ainda como estudante, foi discípulo de Otto Wagner e Adolf Loos. Anos mais tarde, em 1923, a convite do arquiteto conterrâneo Rudolph Schindler, fixa residência nos Estados Unidos, onde trabalha por um curto período no escritório de Frank Lloyd Wright. Desde o início de sua carreira, Neutra demonstra grande interesse no desenvolvimento de novas técnicas, materiais e métodos de construção, principalmente aqueles aplicáveis às realidades sócio-econômicas e climáticas dos países, no caso, da América Latina, interesse despertado por ter trabalhado em Porto Rico, a convite do governo (2).
Neutra empenhou-se no estudo pela busca de uma arquitetura funcional que atendesse às necessidades da população, sem o tradicional excesso de formalismos da época, esforço que resultou em importantes projetos sociais – escolas, hospitais e habitações – realizados na ilha de Porto Rico e nos trabalhos teóricos sobre os problemas de planejamento de cidades como, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro (3). Outros fatos marcantes de sua presença na América Latina são suas participações em eventos no Brasil: a exposição realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (4) – que contava com Pietro Maria Bardi como diretor – e a sua participação, ao lado de intelectuais como Alberto Sartoris, Giulio Carlo Argan, Stamo Papadaki, Bruno Zevi, Jean Prouvé, Gillo Dorfles, Tomás Maldonado, Flavio Mota e Mário Pedrosa, no Congresso Internacional Extraordinário de Crítico de Arte (AICA), realizado em Brasília e Rio de Janeiro, em 1959 (5).
Preocupações e projetos que culminaram no livro Arquitetura social em países de clima quente. Publicado em 1948, no Brasil, em versão bilíngüe (português e inglês), pela editora Gerth Todtmann, o livro tem sua introdução escrita pelo arquiteto Gregori Warchavchik (6), que não economiza no tom elogioso: “Não seria muito fácil separar a biografia de Richard Neutra da história da arquitetura moderna; e, estudada de mais perto, como contribuição a esse grande movimento inovador de uma técnica a serviço do homem contemporâneo, ela adquire uma fisionomia toda própria, viva e palpitante” (7).
Conhecido por se dedicar a projetos de alta significação social (como escolas, habitações, planejamento das cidades e serviços de saúde), Neutra aborda a questão das habitações precárias – o “Slum”, que definia como “aglomerado de pequenas construções, desconjuntadas, remendadas, como que se assemelhando a uma colcha de retalhos, construções ilegais erguidas sem licença alguma” (8). Tais habitações, segundo o autor, surgem como uma situação temporária, improvisadas com pedaços de madeira, lonas e restos de outras construções e/ou demolições, pela parcela carente da população, que está em busca de melhores condições de vida. No entanto, a falta de oportunidades e a rejeição da sociedade transformam esse quadro em fato permanente, deixando as construções com um aspecto estagnado, quase que petrificado. E essas casas deixaram de ser um amontoado de entulho para serem substituídas por construções, ainda que improvisadas, de alvenaria.
Neutra acreditava não ser suficiente solucionar apenas a questão de falta de moradia: “parece uma utopia desencorajadora o tentar prover cada família [...] de uma habitação confortável que, além de simples abrigo, inclua os benefícios de saneamento, água, esgotos e também de espaço” (9). Defendia a necessidade de um programa de acompanhamento dessas famílias desde o momento da desapropriação até a entrega da nova residência. Ação importante porque, em sua opinião, a mudança brusca causaria transtornos psicológicos na população, que passaria de aclamadora do programa para crítica severa das autoridades responsáveis.
Ou seja, Richard Neutra acreditava que o simples fato de dar casas às pessoas carentes – “Housing” – não era suficiente para resolver o problema. Era preciso rever e modificar os conceitos domésticos dessa parcela da população. Tirá-la do patamar da rejeição social e promover a integração com a cidade, proporcionando habitações dignas e apropriadas às suas necessidades – “Rehousing”. Apesar deste termo ser considerado por Neutra como abrangente e correto, além de urgente, ele não poderia acontecer sozinho. O deslocamento dessas pessoas das favelas para as novas habitações deveria ser guiado por uma campanha educativa muito bem planejada e coordenada por profissionais qualificados.
Em seus trabalhos sociais, principalmente em Porto Rico, Richard Neutra inspecionou inúmeras famílias em processo de transição, realizando inquéritos e chegando até mesmo a viver por algum tempo em um de seus projetos. Sua intenção era entender os conflitos criados entre os grupos de pessoas que já habitavam o local e os recém-chegados, vindos de ambientes insalubres. Para ele, o acompanhamento era parte essencial do programa.
No que se refere às questões construtivas das habitações, Neutra propunha que elas deveriam ser planejadas coletivamente. Ou seja, aquilo que não puder ser resolvido de forma individual será proposto para o conjunto como uma forma de atender o maior número de pessoas possível. Outro aspecto debatido por ele é que, dado o caráter de urgência e a grande quantidade de moradias necessárias, os projetos deveriam ser de estruturas simples e padronizadas, passíveis de serem produzidas em série pela indústria, com agilidade de montagem e baixo custo. Neste tópico, Neutra está em sintonia com seus colegas arquitetos do século 20 que, principalmente no período do segundo pós-guerra, se dedicaram à produção industrial das casas para atingir a grande massa carente. Preocupados em projetar para o “homem-tipo”, eliminavam a especificidade das habitações, resultando em arquiteturas de repetição. Essa questão, absolutamente relevante no contexto atual, já era foco de discussão para o grupo de arquitetos modernos que compunham o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM, desde 1928. No período que antecedeu à Segunda Guerra Mundial, tinham como eixo temático as discussões sobre habitação social e cidade funcional.
Em meados da década de 1950, tem início uma série de questionamentos sobre a viabilidade desta padronização excessiva, que resultaram em moradias inalteráveis, forçando as famílias a adaptarem seus costumes a elas (10). Nos anos seguintes à guerra, principalmente após o CIAM VIII – sediado em Hoddesdon, Inglaterra, em 1951 – foram inseridos questionamentos acerca do desejo de “superação da rigidez do modelo funcionalista e à retomada da problemática da cidade tradicional” (11).
Richard Neutra, em sintonia com tais reflexões, acreditava que as habitações não podiam ser pensadas como permanentes e sim como estruturas passíveis de serem substituídas conforme o desejo e necessidade da geração seguinte, dando lugar a outras, projetadas a partir de soluções técnicas e materiais mais adequados. Ou seja, defendia a construção de casas com estruturas simples e adaptáveis para cada tipo familiar.
A temática social da arquitetura debatida por Neutra em seu livro Arquitetura social em países de clima quente, de 1948, está presente ainda hoje nas grandes cidades, como, por exemplo, São Paulo. O ritmo acelerado de crescimento da metrópole, seguido do baixo poder aquisitivo da população e do desinteresse do governo, colaboraram para o aumento do número de residências informais. Como diz Lizete Rubano, “a omissão do Estado, o desinteresse circunstancial do mercado, as dinâmicas da cidade contemporânea e o empobrecimento da população nesse momento de reestruturação da produção e do papel desempenhado pelas cidades, têm gerado conflitos importantes entre as condições colocadas pelas cidades e as possibilidades de se viver nelas” (12).
E apesar do déficit habitacional ser uma questão debatida desde os tempos do arquiteto Le Corbusier, as políticas públicas existentes são poucas e, freqüentemente, ineficientes, pois pouco se envolvem com a complexidade das metrópoles. Além disso, adotam modelos antigos que se tornaram inadequados para os dias de hoje, preconizando a implantação de projetos de baixa densidade em regiões distantes e pouco urbanizadas. Ou seja, totalmente desajustados às possibilidades de expansão das cidades e às questões de infraestrutura.
E se as preocupações de Neutra são ainda atuais, voltar a seu livro se justifica também por sua agenda política até hoje inconclusa:
“Nós, arquitetos da época contemporânea, criadores do lar simplificado e de fácil funcionamento e autores de planejamentos de habitações em séries e da sistematização urbanística, somos, até certo ponto, os primeiros a realizar as promessas feitas a muito tempo de que, superada a ordem aristocrática, o mundo não continuaria vivendo do passado sem nenhuma esperança de renovação, mas encontraria o seu caminho para uma cultura própria, uma cultura produzida pela ampla colaboração de todos, o que significa democracia” (13).
notas
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em março de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
1
NEUTRA, Richard Joseph. Arquitetura social em países de clima quente / Architecture of Social Concern in Regions of Mild Climate. Introdução de Gregori Warchavchik. São Paulo, Gerth Todtmann, 1948, 221 p. A publicação, em versão bilíngüe, trata também de arquitetura em áreas rurais e cidades pequenas, assuntos que não serão tratados nesta resenha.
2
No período no qual Neutra trabalhou em Porto Rico, o país era “livre e associado” em relação aos Estados Unidos, situação que se mantém até hoje (em 1998, em referendo, os habitantes de Porto Rico decidiram manter o status de Estado Livre Associado, recusando as duas alternativas: se tornar o 51º Estado dos EUA ou nação independente).
3
NEUTRA, Richard Joseph. Observations on Latin America. Progressive Architecture, Nova York, Reinhold, n. 5, maio 1946, p. 67-72.
4
LAMPRECHT, Barbara Mac. Richard Neutra. Complete Works. Nova York, Taschen, 2000.
5
RIBEIRO, Patrícia Pimenta Azevedo. A participação do arquiteto Richard Neutra no Congresso Internacional Extraordinário de Crítico de Arte em 1959. VIII Seminário Docomomo Brasil, Rio de Janeiro, set. 2009 <www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/025.pdf>. Acesso em 09/11/2010.
6
No livro, o nome do arquiteto russo é grafado como Gregory Warchavchik, mas adotamos aqui a grafia conforme se estabilizou na historiografia brasileira.
7
WARCHAVCHIK, Gregori. Introdução. In NEUTRA, Richard Joseph. Arquitetura social em países de clima quente (op. cit.), p. 10.
8
NEUTRA, Richard Joseph. Arquitetura social em países de clima quente (op. cit.), p. 189.
9
NEUTRA, Richard Joseph. Arquitetura social em países de clima quente (op. cit.), p. 190.
10
Para a arquiteta Marta Borgéa, mesmo partindo da produção em série dos elementos é possível fazer uma arquitetura que se atende às diferenças, à individualidade e não à repetição, dependendo apenas da eficiência do projeto. “Na arquitetura moderna, a atenção estava na velocidade de produção em série e no alcance serializado desses componentes de catálogo, que configurava uma arquitetura de repetição. Na arquitetura atual, a atenção está numa lógica associada ao consumo, visando a atender uma diferenciação que, mesmo no âmbito de uma lógica serializada e padronizada, permita o individualizado. Trata-se de uma pré-fabricação que trabalha a quantidade para fabricar singularidades”. BOGÉA, Marta. Cidade errante. Arquitetura em movimento. São Paulo, Senac, 2009, p. 75.
11
SOSA, Marisol Rodríguez; SEGRE, Roberto. Do coração da cidade – a Otterlo (1951-59): Discussões transgressoras de ruptura, a semente das novas direções pós-CIAM. VIII Seminário Docomomo Brasil, Rio de Janeiro, set. 2009. <www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/096.pdf>. Acesso em 18/02/2011.
12
RUBANO, Lizete Maria. Habitação social: temas da produção contemporânea. Arquitextos, São Paulo, n. 08.095, Vitruvius, abr. 2008 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.095/153>.
13
NEUTRA, Richard Joseph. Arquitetura social em países de clima quente (op. cit.), p. 203.
sobre a autora
Fernanda Critelli de Campos é aluna do 8º semestre da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e desenvolve projeto de Iniciação Científica orientada pelo professor Abílio Guerra.