Em meados dos anos 1950, contando já com uma década de funcionamento, o Instituto de Arte Americano y Investigaciones Estéticas (IAA) da Universidade de Buenos Aires inicia a publicação da coleção Arquitectos Americanos Contemporáneos, em meio a uma atividade editorial intensa, cuja importância ainda está por ser avaliada.
Desde sua criação, o IAA era dirigido por Mario Buschiazzo, que a essa altura já havia publicado títulos como La arquitectura colonial en Hispanoamérica (1940), Estudios de arquitectura colonial en Hispanoamérica (1944) e La bibliografía de arte colonial argentino (1947), este último já pelo IAA. Não obstante sua predileção pelo estudo da arquitetura colonial, Buschiazzo publica o terceiro livro da coleção Arquitetos Americanos Contemporâneos, um volume sobre o escritório norte-americano S.O.M. (Skidmore, Owings and Merril). Retomava, assim, seu interesse pela arquitetura dos Estados Unidos, desde De la cabaña al rascacielos (1945).
Antes do lançamento do quinto número da série, sobre o “jovem arquiteto americano” Paul Rudolph, já haviam aparecido, além do livro sobre S.O.M., as monografias sobre Amancio Williams (por R. González Capdevila, em 1955), sobre Eduardo Catalano (Jorge Gazaneo e Mabel Scarone, em 1956) e Lúcio Costa (também por Gazaneo e Scarone, 1959).
Em outro lugar (1), argumentei que uma tensão subjacente entre tendências distintas pode ser observada na coleção Arquitetos Americanos Contemporâneos, na medida em que, durante os anos 1950, alguns arquitetos argentinos tentavam trilhar caminho semelhante ao de Costa, naquilo que, simplificadamente, poderia ser definido pela procura de um balanço entre tradições culturais e modernidade(s), em oposição a uma “crise de linguagem” representada pela arquitetura norte-americana (2). Quando o livro sobre Paul Rudolph foi publicado, a primeira obra nessa direção já havia sido construída na Argentina: a igreja de Fátima (1956-1958), próxima a Buenos Aires, de Claudio Caveri e Eduardo Ellis.
Tal caminho também foi seguido, em parte, por arquitetos como Wladimiro Acosta e Eduardo Sacriste. Em 1964, se não podemos falar de um movimento, algo como interesses similares apareciam nos projetos de determinados arquitetos. Alguns deles reuniram-se naquele ano na exposição Casas Blancas no Museu de Arte Moderna do Teatro San Martín – prédio concebido por Mario Roberto Alvarez (3) entre 1954 e 1960 e que apontava para outra direção, mais próxima da arquitetura dos Estados Unidos.
Nesse sentido, a publicação sobre Paul Rudolph reveste-se de especial interesse: seu autor, Miguel Asencio, foi um dos protagonistas do casanblanquismo.
Um “longo” prólogo tenta definir, nas primeiras páginas do livro, a crise de linguagem representada pela multiplicação das possibilidades técnicas e o empobrecimento da expressão de valores humanos e simbólicos. Convoca-se o Lewis Mumford de Símbolo e função em arquitetura (4); flagra-se o contraste do perfeccionismo tecnicista da arquitetura norte-americana transladada à Buenos Aires (a geodésica das Indústrias Kaiser e o pavilhão da Energia Atômica na Exposição do Sesquicentenário) diante do caos urbano da capital portenha; lamenta-se a perda de unidade da arquitetura dos tempos de Bernini e Borromini.
“La arquitectura de los EEUU ha llevado en nuestros días a un máximo la incitación recibida del campo tecnológico. Esta incitación ha pasado a tener un valor determinante sobre la coordinación de los distintos factores que actúan en el proceso creador arquitectónico. Frecuentemente ha ejercido una acción dispersiva, convirtiendo a veces, cada obra de un arquitecto en un experimento técnico cerrado en sí mismo, supeditando a este aspecto otros valores del ámbito arquitectónico y atentando contra la unidad del conjunto que forman sus obras. Ellas aparecen como intentos aislados, desconocidos formalmente unas de otras” (p. 16-7).
Asencio antecipa, em parte, a sagaz observação de Alfonso Corona Martinez em relação ao fato de que muitos arquitetos do Movimento Moderno, eventualmente, criavam todo um repertório de “elementos de arquitetura” – expressão convencionalmente associada à tradição acadêmica, mas que, como também assinalava Corona Martinez (5), remonta ao século 18 (e, na opinião do autor, a tradição euclidiana em sua versão iluminista) – para usá-lo em uma única obra.
As tensões se multiplicam. Seriação X individualismo; repetição X expressão; vocabulário X poética; repertório X criação. Em um extremo, as grandes firmas e sua “implacável subdivisão do processo criador” – como exemplificado pela arquitetura de SOM – no outro, experiências como The Architects’ Collaborative (TAC), do mestre de Rudolph, Walter Gropius.
A tensão internacionalismo (universalidade da técnica, domínio sobre a natureza, civilização global) versus regionalismo (valores tradicionais, construção social do sentido, culturas locais) aparece explicitamente a seguir, colocando de um lado Frank Lloyd Wright (e também Gropius) e, de outro, Mies van der Rohe. Como “fontes de ensino”, entretanto, a obra de Wright seria demasiado ampla e pessoal, inacessível aos (im)prováveis discípulos (6). Quanto a Mies, voltamos à seriação-repetição: alunos de Mies projetam como Mies. Resta Gropius, mais um método do que uma linguagem que se impõe. Em relação aos seus contemporâneos, ao contrário de Eero Saarinen, suas obras não buscariam uma síntese; quanto a Philip Johnson, este, ao libertar-se da influência de Mies, pareceria inseguro. Tanto Saarinen, que mereceria estudo de Rafael Iglesia, quanto Johnson apareceriam, posteriormente, na mesma coleção.
Internacionalismo versus regionalismo ecoa Zivilization und Kultur e as especulações contemporâneas de Paul Ricoeur na origem das formulações de Kenneth Frampton. Se para Buschiazzo, ao analisar a produção de SOM,
“um conjunto de obras, por importantes e numerosas que sejam, não bastam para justificar uma autêntica arquitetura, se elas não transmitem o espírito de sua época, se não são a expressão dos fatores que constituem uma nacionalidade. Não podemos dizer que a arquitetura atual dos Estados Unidos haja logrado essa aspiração, mas indubitavelmente conseguiu traduzir o triunfo da técnica e da potência econômica” (7).
Só uma miopia congênita não enxergaria aí a riqueza complexa e contraditória de toda uma paisagem cultural americana. Entre o milagre brasileiro e a impositiva presença norte-americana, a crítica argentina vacila diante de ilusões de progresso e a aceitação das contradições – e, naquele momento, Rudolph, e até certo ponto Saarinen e mesmo Johnson, como reflexos em espelhos, talvez fossem, de fato, os arquitetos norte-americanos que melhor as representavam.
Não se tratava apenas de uma crise de linguagem, mas da crise de uma disciplina como crise de um continente que, de resto, nunca foi um (uno). A industrialização da construção como utopia européia para a solução dos problemas do habitat, com a crise do velho mundo pós-segunda guerra, transformava-se em metáfora distópica do capital, simbolizada pela proliferação das torres de vidro das grandes corporações norte-americanas. Inversamente, Rudolph, Saarinen e até Johnson, em seu affair cubano (8), representariam as aporias de uma disciplina humanista no “centro” do capitalismo.
“Hoy, la búsqueda de originalidad contrasta con las afinidades pasatistas, en Italia el Neoliberty, en los EEUU un neoclasicismo moderno; formalismos, tecnicismos; la actitude ecléctica vuelve a imponerse como denominador”.
Como sugerido antes, as tensões são multipolares. Passadismo e tecnicismo; originalidade e formalismo; universal e particular. A citação acima, a atitude eclética como denominador, enquanto uma constatação do panorama arquitetônico da época, quiçá inclua um juízo de valor. Não obstante, Rudolph era, de certa forma, um eclético (9) – assim como o era Lucio Costa.
O texto, como a obra de Rudolph, é multifacetado. Embora se trate de edifício posterior do arquiteto, vem à mente a Cannon Chapel, de 1979-81, na Emory University (10): o acerto da composição só se revela completamente quando olhamos o edifício por todos os ângulos, inclusive de cima, onde a cobertura ganha sentido em meio aos pares mais velhos do campus.
“Lo que la arquitectura ofrece en su análisis final, no ha cambiado a través de los siglos. Sólo los médios cambiam, no los fines” (p. 29).
Afinal, se as formas variaram, o espírito ainda é o mesmo e permanecem, fundamentais, as mesmas leis.
“La arquitectura moderna es todavia un torpe, desvaído, a menudo desarticuado y precoz objeto adolescente, que ni siquiera llegó a florescer con plenitud”.
Se, avançando em oposição à distinção com sotaque germânico e historicamente determinada entre Kultur e Zivilization, admitimos a(s) cultura(s) como construção social do(s) sentido(s) e a civilização como a transformação da natureza pela humanidade (11), o equilíbrio entre a capacidade humana atual em utilizar-se da natureza e o sentido social e ecológico dessa utilização, está longe de ser alcançado – como no flagrante entre a perfeição técnica dos pavilhões norte-americanos transplantados para a capital argentina e a realidade urbana da cidade (12).
notas
1
Cf. ROCHA, Ricardo. Lúcio Costa e a Argentina: da boa tradição ao “ser americano”. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 096.02, Vitruvius, dez. 2009 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.096/3012>.
2
E não parece casual o fato de que, até a morte de Buschiazzo em 1970, a quantidade de volumes na coleção dedicados a arquitetos latino-americanos seja igual à dedicada a arquitetos norte-americanos. Nesse sentido, uma comparação com as discussões no panorama norte-americano pode ser esclarecedora em relação às trocas “centro-periferia”: mesmo quando as posições se alternam, uma espécie de miopia hierárquica procura, a todo custo, se manter. Diga-se de passagem, Buschiazzo parecia entender as atividades do IAA como uma espécie de duplo daquelas desenvolvidas pelo MoMA de Nova Iorque, na divulgação da arquitetura moderna. Liane Lefraive, por exemplo, situa o Regionalismo Crítico como retroagindo aos anos 1940, ou mesmo antes, nos escritos de Lewis Mumford. Para a autora, no pós-guerra, nomes da “velha guarda” e alguns indecisos chegaram a flertar com uma postura crítica em relação ao International Style. Alguns dos exemplos citados são Siegfried Giedion na apresentação do livro de Henrique Mindlin “Arquitetura Moderna no Brasil” e, ninguém menos que, Philip Johnson. Até mesmo o Office of Foreign Buildings Operations se envolveria na contenda. Ver Critical regionalism: a facet of modern architecture since 1945.
3
Ao lado de Williams, Catalano e Sepra, Alvarez seria um dos arquitetos argentinos publicados nos primeiros dez anos da coleção.
4
Dois anos mais tarde, Rafael Iglesia escreveria "Símbolo y Alegoría" sobre a Exposição do Sesquicentenário da Revolução de Maio (Revista de Arquitectura, n. 379-380, jan. 1962) onde pode-se ler: “El tema de lo monumental ha sido revitalizado en los últimos años, críticos de arquitectura y urbanismo, sociólogos y antropólogos han sondeado hasta dónde los valores colectivos son necesarios en las culturas equilibradas”.
5
Anotações sobre a teoria da arquitetura nos séculos 18 e 19: o problema dos elementos de arquitetura. Porto Alegre: mimeo, 1986.
6
A não ser aqueles da estatura de um Vilanova Artigas.
7
BUSCHIAZZO, Mario. S.O.M. Buenos Aires: IAA, 1958, p. 10-11.
8
Cf. nota 2.
9
Não deixa de ser curioso que um dos textos que aparecem na bibliografia arrolada no livro, Baroque formality in a Florida tourist attraction (Interiors, jan. 1954), pareça sugerir uma aproximação entre a arquitetura de Rudolph e o barroco.
10
Poderia ter usado um exemplo do livro, o Jewett Arts Center (Wellesley College, 1958) com a desvantagem de que não visitei a obra.
11
SCHÄFER, Wolf. Global Civilization and Local Cultures: A Crude Look at the Whole. In: International Sociology, Vol. 16(3), Sep. 2001, p. 301-319. Disponível em <http://www.stonybrook.edu/globalhistory/PDF/CIV.pdf>.
12
Explica-se, assim, o último vértice do triângulo presente no título: a América Latina.
sobre o autor
Ricardo Rocha é professor na Universidade Federal do Espírito Santo.