"os projetos do querido Ladóvski, agora abandonados na varanda de seu apartamento, estão sendo destruídos pela chuva e pelo vento, e logo todos nós seremos esquecimento"
Aleksandr Ródtchenko, 1941
Essas palavras foram retiradas do catálogo Vkhutemas – o futuro em construção 1918-2018, da brilhante exposição (em cartaz no Sesc Pompeia até dia 30 de setembro de 2018), que traz à luz projetos da vanguarda artística da URSS pós revolução de 1917.
Naquele momento histórico, onde as esperanças se abriam para a construção do futuro revolucionário, onde tudo teria que ser inventado do zero, a linguagem artística se prestou como ferramenta de transformação da sociedade.
Nesse contexto, surgiram as Vkhutemas – Escolas Superiores de Arte e Técnica, criadas pela nova ordem – cuja pedagogia almejava a formação de profissionais da criação para o mundo novo do homem socialista, adotando uma metodologia ampla e multidisciplinar, voltada para a formação de seus cidadãos, independentemente de sexo e posição social. A participação de mulheres em todas as áreas do conhecimento das escolas, incluindo no estudo e prática da arquitetura (então vetado às estudantes da Bauhaus, por exemplo), revela o caráter igualitário de seus objetivos.
A perda de limites no que diz respeito à questão de gênero e a importância da renovação temática e da construção de uma estética em consonância com ideais revolucionários ficam evidentes em peças de vestuário e padrões dos tecidos iguais para homens e mulheres, também reproduzidos para esta exposição do Sesc. Predominam as formas geométricas e quando a estamparia figurativa é apresentada, não remete à natureza; suas formas, composições e cores ilustram com diferentes níveis de abstração o trabalho, o esporte e o ambiente.
As Vkhutemas foram desmontadas pelo autoritarismo stalinista em 1930, mas suas ideias sobreviveram tornando-se modelo não só para o ensino de outras partes do mundo, como para concepção de alguns museus internacionais, entre os quais o MoMA, de Nova Iorque, que adotou sua visão multidisciplinar.
O pioneirismo desta exposição está justamente na sua coerência em relação aos preceitos das Vkhutemas. Pela primeira vez, o que foi produzido naquelas instituições é mostrado em sua multidisciplinaridade: arquitetura, design de produtos, design de vestuário, design visual. O local escolhido para a exposição – a área das oficinas de criação do Sesc Pompeia – é em si uma homenagem a Lina Bo Bardi, que concebeu o espaço como um anti-museu, um local democrático, de práticas criativas, com ateliês de meias paredes, onde se pode entrar e sair, ver e escutar o que os outros fazem, estimulando a integração.
O perfil dos dois curadores, Celso Lima (1) e Neide Jallageas (2), traz uma qualidade singular à exposição, ao aliar a riqueza de conteúdo histórico ao conhecimento técnico e artístico, potencializando o espírito das Vkhutemas. Muitas exposições sucumbem por terem esses dois aspectos descolados: conteúdos profundos que se perdem por falta de materialização adequada e deleites visuais que não se sustentam por falta de estofo.
A equipe multidisciplinar, que produziu todas as peças (nada foi trazido de fora), foi envolvida pelo espírito inovador e libertário desse movimento de criadores de 100 anos atrás, materializando alguns projetos que nunca haviam saído do papel, e outros que haviam se perdido e foram reconstruídos agora. O fato de uma grande equipe brasileira ter se empenhado em pesquisar minuciosamente para reconstruir desenhos e peças – projetos e modelos, esculturas, utensílios, mobiliário, azulejaria, estamparia de tecidos, vestimentas, cartazes – revivendo os propósitos de difusão e educação das Vkhutemas, trouxe para todo o processo o sentido original das oficinas. Percebe-se que houve uma conexão direta Rússia 1918 - Brasil 2018.
A produção dos objetos da exposição, que constitui um acervo precioso, se apoiou em tecnologias mistas. Técnicas e ferramentas contemporâneas, como softwares para desenho, cortes a laser, etc, foram utilizados para a preparação de estruturas, formas e matrizes, enquanto algumas técnicas artesanais simples foram utilizadas para acabamentos, dando mais caráter aos objetos. Nas estampas em tecido, por exemplo, a preparação das máscaras foi feita através de recorte digital, enquanto que a pintura foi feita manualmente, com rolos de espuma (ao invés de plotagem direta sobre o tecido), conferindo a materialidade do fazer manual. Aqui também fica clara a coerência entre conceito criação, recriação e produção.
Outra curiosidade construtiva está no desenho dos azulejos e do grande painel com a imagem do zepelin, que foram feitos com recorte manual de papel colorido, na contramão do imediatismo digital (que não tem relevo nem profundidade).
Para compreender a dimensão desse trabalho, além de visitar a exposição é importante assistir ao vídeo de 20 minutos, dirigido por Aline Belfort, que mostra um pouco desse rico making of. O vídeo emociona ao mostrar os membros da equipe como arqueólogos, conforme explicita Neide Jallageas.
Parafraseando Chico Buarque (em sua música "Cidade Submersa"), eles trouxeram "do silêncio, do fundo de armários" papéis, fragmentos de objetos e de cartas, tentando decifrar "o eco de antigas palavras", ressuscitando ideias de uma experiência pedagógica e sua vasta produção impositivamente esquecidas durante um século, dentro de gavetas.
Eram ideias que pregavam a quebra de barreiras de gênero, de barreiras sociais, que representavam uma ameaça ao autoritarismo. Conforme Celso declara, é esse caráter que faz a exposição ser tão apropriada ao nosso momento e, de uma certa forma, ser um verdadeiro manifesto.
Essa incrível empreitada precisa ter vida longa, ser mostrada por outros lugares do Brasil e do exterior para corrigir sua falta de visibilidade histórica até mesmo nos meios acadêmicos do ensino de arquitetura, design e artes visuais. Seu making of é um importante documento que merece ser mostrado com mais detalhes, convertido em livro e vídeo de amplo acesso, como exemplo de processo de criação multidisciplinar, democrático e poético.
E que o renascer da memória das Vkhutemas nos inspire para a nossa própria e necessária renovação!
notas
1
Celso Lima é artista têxtil e pesquisador da história do design, com ênfase em estamparia, atuando como professor de design de superfície, tecnologias têxteis e colorimetria.
2
Neide Jallageas é pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais (ECA USP) e em Literatura e Cultura Russa (FFLCH USP) com estágio no Museu de Cinema Russo em Moscou.
sobre as autoras
Christiane Terra de Lisboa é arquiteta graduação pela FAU USP e mestrado pela FEC AU Unicamp.
Ruth Klotzel é mestre em Design e Arquitetura pela FAU USP, onde também se graduou. Foi professora no curso de arquitetura da Faap (1997-2005) e no de Design do Senac (2002-2009). Vice-presidente do Icograda – International Council of Graphic Design Associations (2003-2007), e é membro da presidência da Bienal ibero-americana de Design, com sede em Madri (desde 2007).