Na vida profissional do pesquisador e professor universitário, estamos sempre procurando novas referências e para tanto investimos considerável tempo em leitura e sistematização de informações, muitas vezes guardadas no nosso banco de dados e sem um real aproveitamento deste trabalho de síntese e – muitas vezes – de tradução pelos pares acadêmicos; sejam outros pesquisadores e professores, sejam pelos alunos de Arquitetura e Urbanismo.
Uma dessas sínteses que merece ser compartilhada pelo fato de inovar na forma de tratar problemáticas urbanas como pelo fato de ser pouco acessível ao grande público – não disponível no Brasil e, portanto, não traduzida – é a publicação de Meta Berghauser Pont e Per Haupt, denominada Spacematrix: space, density and urban form.
A metodologia proposta na publicação Spacematrix procura descrever o ambiente urbano a partir de análise multivariável, construída por um conjunto de variáveis diretas (obtidas pela análise da forma) e indiretas (obtidas pelas relações entre os indicadores ou entre escalas) que permitem uma compreensão mais aprofundada da forma urbana que vai além daquelas comumente utilizadas no desenho e planejamento urbano brasileiro: índice de aproveitamento e taxa de ocupação. A combinação variada destes indicadores permitiria, assim, um estudo mais aprofundado da distribuição das intensidades e dos volumes construídos e de seu impacto em termos de desempenho quanto a sua capacidade em termos de vagas de estacionamento, quanto à incidência da luz do dia, sua conectividade, entre outros.
Para os autores, o estudo da densidade é também um meio de colocar em comunicação parâmetros e elementos importantes a diferentes disciplinas que compõem em conjunto a “Gênie Urbana”: arquitetura, planejamento urbano, engenharia de trafego, ciências do meio ambiente, ciências sociais, geografia, economia, outros. Os autores discutem ainda os problemas a serem enfrentados pelo planejamento urbano atual, assumindo concepções acerca do futuro das cidades que compartilhamos nos nossos estudos: a impossibilidade de se continuar a mesma forma de ocupação dos espaços, caracterizada pela franca redução da densidade média das cidades, sob o risco de inviabilizarmos a implantação econômica de equipamentos e transportes de massa, mas também a inviabilização da própria espécie humana.
Os autores assim procedem a uma apresentação do método de análise, que culminou no desenvolvimento do software Spacemate, estabelecendo uma nomenclatura comum entre o software e o leitor, sendo assim definidos:
- Lot: lote/parcela ou plot,
- Island: Ilha ou quadras ou urban blocks,
- Fabric: conjunto de ilhas/quadras, determinada pela homogeneidade morfológica,
- District: zona, neighbourhood ou espaço de estudo delimitado por eixos. Esta definição inclui fabrics mais também áreas de praças e parques,
- Network legth (l): vias que dão acesso às ilhas no interior dos distritos,
- Gross Floor-Area (F): soma de todas as superfícies,
- Building area or footprint (B): projeção da área construída ou área medida no nível terreno, desconsiderando-se subsolo e áreas em projeção.
- Area (A): pode ser referente District, Fabric, Island ou Lot
A partir destas nomenclaturas, os autores definem uma série de indicadores diretos e indicadores derivados. Os indicadores diretos tratam de análises que o software pode aferir diretamente a partir da análise da morfologia da área de estudo. São eles:
- Coverage (GSI) – também chamada de cobertura: relação entre construído/não construído, calculada para várias escalas (X pode ser District, Fabric, Island ou Lot). É equivalente ao nossa velha conhecida Taxa de Ocupação. GSIx=Bx /A x (m²/m²)
- Floor-Space-Index (FSI) – intensidade construtiva (building Intensity): refere-se à intensidade construída, independente da composição. Calculada para várias escalas (X pode ser District, Fabric, Island ou Lot). A relação deste indicador com o GSI é apresentado na figura 1. FSIx = Fx/Ax(m²/m²)
Pode-se também entender FSI como a relação entre a área construída e a área analisada.
Equivale ao Índice de Aproveitamento.
Se a área analisada for a área do lote, será considerado FSI lote: FSIlote= Flote/Alote.
Se for considerada a área bruta, o FSI será bruto (com vias, parques, praças etc. incluídos).
Se for medido sobre a área líquida (somente a soma das áreas dos quarteirões), o FSI será líquido. Existe também outra forma de análise da intensidade construída, conhecida por Floor-Area Ratio (FAR), que corresponde à relação entre a projeção da área construída e a área do lote.
- Network Density (N) – densidade de rede viária. Refere-se à concentração de rede viária em uma determinada área. A Densidade de redes (N) é um indicador que traduz o “grão urbano”, ou seja, a relação entre as dimensões das quadras e do sistema viário. Nfabric = lint +(lext/2)/ Afabric
Diferentes N determinam diferentes morfologias urbanas. Uma alta densidade de redes (N alto) indica uma malha pequena. Uma baixa densidade de redes (N baixo) indica uma malha larga, conforme o comparativo demonstrado na figura 1. Assim o cálculo do N pode ser usado para determinar os limites entre Fabrics diferentes.
A luz das análises relativas à vitalidade urbana (JACOBS, 1961), existe um entendimento que um número maior de quadras e de vias - ou seja, um N alto - facilitaria variações de percurso distribuindo de forma mais uniforme a presença de pessoas nas ruas, evitando ruas desertas. Assim, podemos também afirmar que a densidade de redes traduz as facilidades/dificuldades de acesso às construções.
Além destes indicadores diretos de densidade, os autores propõem indicadores derivados destes primeiros, calculados pela razão entre indicadores ou pela razão entre as escalas de estudo. São eles:
- Building Heigth (L) – altura construída: o número de andares ou camadas (layers) pode ser identificado na relação entre FSI e GSI de uma determinada área/conjunto.
- Lx= FSIx/ GSIx(H = Área Construída / TO)
- Spaciousness (OSR) – “espaçoso”: corresponde à relação entre o espaço não construído (medido no nível do solo) e a intensidade construída.
- OSR = GSIx/ FSIx(OSR = (1 - TO) / IA)
- Tare (T) – tara: corresponde à diferença da área de estudo entre dois níveis de escala (por exemplo, entre fabric e island, por exemplo), descrita também como a diferença entre líquido/bruto.
- Mesh and profile width (w; b) – Malha; Largura: a densidade da rede pode ser usada para calcular indicativos de dimensão da malha, tais como a distância via/via e a largura das vias (ver ilustração figura 2). Assim, os cálculos para obter estas variáveis são:
(a) distância via/via (pelo eixo destas): w = 2/Nf
(b) combinando a Tare entre Fabric e Island, podemos deduzir: b= 2 (1 – V1-Tf) / Nf
A partir desta série de indicadores, os autores demonstram algumas análises realizadas em ambiente Spacemate, onde são comparadas três diferentes tipologias construtivas (point/pavillon, strip/street, block/court) aplicadas em três níveis diferentes de intensidades construídas (FSI baixo, FSI médio, FSI alto), como demonstradas nas figuras 3 e 4, que pontuam estas classificações tipológicas.
Uma das análises realizadas pelos autores, utilizada aqui como forma de ilustração, estuda o Spaciousness, a pressão humana sobre os espaços livres, de três destas combinações.
Percebe-se na figura 5 que apesar da variação tipológica dos elementos analisados, eles possuem a mesma média de OSR. Logo, qualquer uma dessas combinações entre intensidade e tipologia impacta os espaços livres da mesma forma. Este também é o caso da comparação realizada na figura 6, onde apesar de tratar-se de tipologias diferentes, as duas fabrics analisadas, possuem a mesma OSR, diferenciando-se pelo GSI e FSI.
Ora, esta análise realizada pelos autores e explicada de forma pedagógica nas imagens 3-6, desmistifica a ideia de que existem boas ou más tipologias. Na verdade, se analisarmos tipologias como um conjunto articulado de análises – para além das densidades humanas medidas em pessoas/Ha – traduzidas em índices de Aproveitamento, percebemos que podemos ter altas densidades urbanas, desde que mantidas as qualidades urbanas, medida até aqui pela disponibilidade de área livre per capta.
Aliás, cabe lembrar ao leitor que assim como o indicador Tare, a densidade física pode ser medida em densidade bruta (razão simples entre o número de pessoas e a área) ou líquida (quando são excluídas as vias e as áreas livres: vias, praças, parques, espaços destinados a equipamentos). A densidade pode ainda ser dada em termos de número de famílias por área ou em termos de residências/alojamentos por área, sendo estas duas opções mais adequadas para se calcular o número de equipamentos em uma dada região, tais como escolas, centros de saúde, etc.. Porém devemos ainda considerar que as famílias sejam diversas em termos de número de pessoas, dependendo da cultura e período histórico analisado Assim não é possível determinar a Fabrics ideal sem entrar em critérios específicos a cada cultura, renda, período histórico e, claro, a inserção desta no espaço urbano: centralidade ou periferia.
Outros autores (1) já haviam insistido no fato de que não existe uma densidade ideal, destacando, entretanto, as diferentes complicações e impactos nos desempenhos quando as densidades tornam-se muito baixas ou muito altas. Para Lozano, citado pelos autores, a densidade mínima para se fornecer equipamentos comunitários em estreita proximidade com as habitações estariam em 20 habitações por hectare ou 40 habitantes por hectare. Abaixo deste limiar, esatariam os bairros ou cidades periurbanas, caracterizado por um tecido urbano dominado por moradias isoladas/ gêmeas. Para Jacobs (1961), citada pelos autores, a urbanidade necessita de densidades acima de 175 alojamentos/familias por hectare (350 habitantes por hectare ou FSI 2.2). A autora também considera como densidade máxima de 350 alojamentos/familias por hectare (700 habitantes por hectare ou FSI 4.4).
Em altas intensidades a "urbanidade" estará certamente presente, mas questões como estacionamento, congestionamento, falta de espaço aberto e privacidade, serão problemáticas Segundo Jane Jacobs, intensidades construtivas muito elevadas acabam por resultar em uma padronização das construções e, portanto, a uma ausência de diversidade.
Logo, se o trabalho Pont e Haupt deixa claro que não é possível determinar à priori uma densidade optima, ele abre também a discussão de que podemos aferir uma densidade física e objetiva, medida pelo Spacemade, podendo esta, pelo menos, ser balizada em função de desempenho, padrões e características mais coletivas de regulações, de práticas urbanas e profissionais.
notas1
ACIOLY, Claudio C.; DAVIDSON, Forbes. Densidade urbana. Rio de Janeiro, Mauad, 1998.
sobre a autoraFernanda Moscarelli, arquiteta urbanista (Ufpel) e doutora em Planejamento Urbano e Regional (Universidade Paul Valery, França), atua como pós-doutoranda (projeto Best/Capes) no Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGS. É professora da graduação em Arquitetura e Urbanismo no IPA-Metodista e ministra a disciplina de Morfologia e Projeto Urbano no Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Imed.