Quem vai interrogar a lua?
Quem vai mandar o sol responder
– por que vocês fazem dias e noites?
Quem vai nominar o genial autor da terra?
Assim é este poema:
ninguém é o autor.
E ele tem apenas uma ideia:
brilhar para o amanhã que desponta.
Vladimir Maiakovski
Uma casa no bairro da Aclimação, no fundo um grande quintal com um pequeno riacho, quem sabe o último fio d’água quase limpo de São Paulo. A casa/comunidade de Flávio Império, uma ilha de bom senso e liberdade naquele tempo dito duro. Lina, sentada à vontade na escada, também o visitava. 1974 ou 1975. Me impressionou sua tranqüilidade e doçura.
Depois desse encontro fugaz, a oficina de tipografia do Sesc Pompeia propiciou um novo encontro com Lina que resultou em uma década de colaboração. Ela que havia criado muitas publicações importantes e trabalhado com as precariedades gráficas da Bahia, também era apaixonada pela tipografia. Num primeiro momento, foi o que nos aproximou. Na oficina além de dar aulas, eu criava e imprimia o material de divulgação das atividades desse centro recém inaugurado, que a cidade tanto ansiava. Uma época muito feliz.
O equipamento tipográfico havia sido doado ao Sesc Pompeia pela escola profissionalizante do Senai, já desinteressada por aquele trambolho: uma impressora Minerva 1/4 de folha, uma guilhotina Guarani, bolandeiras, componedores, espaçadores, ramas, tira provas, muitas gavetas com tipos metálicos e também uma boa quantidade de tipos de madeira.
Com um nome gigantesco, a pequena Exposição de Artes dos Funcionários do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social foi minha primeira colaboração com Lina. Esta exposição havia sido imposta pela direção do Sesc num momento de intensa correria para a preparação de outra, a exposição Mil Brinquedos para a Criança Brasileira. Lina a projetou para os corredores das Oficinas devido ao caráter amador dos trabalhos. Estruturas simples de sarrafos de madeira executados pelos carpinteiros do conjunto desportivo ainda em obras. Soluções rápidas também para as peças gráficas. Para o cartaz tipográfico utilizei duas xilogravuras que já havia cavado e usado em outros impressos e tipos metálicos. Impressão em três cores distribuídas nos rolos em uma única passada. Um visual limpo e direto também para o maravilhoso texto de apresentação de Lina no painel de entrada da exposição. Com o título O direito ao feio, o texto aparentemente simples, eleva a exposição para uma nova dimensão.
Nesta exposição e acredito em toda sua obra, Lina sempre construiu estruturas independentes da arquitetura: as exposições não se misturam com a arquitetura. E também, nas montagens ela tinha preferência pelo trabalho simples e direto de carpinteiros ao invés do trabalho maquiado de marceneiros (Nordeste, no Unhão, A Mão do Povo Brasileiro, no Masp, as exposições do Sesc Pompeia etc.).
Logo em seguida, a exposição Mil Brinquedos para a Criança Brasileira. Lina havia criado um cartaz poético para ser impresso em offset (Um Super-Homem-Menino contemporâneo pede a um cavalinho de carrossel antigo que o apanhe) e queria também uma versão tipográfica. Fiz algumas provas: título em letras de madeira e a imagem do “Mané gostoso” em clichê fotográfico de zinco, impressão a três cores puras separadas. Lina questionou a leitura mas a aprovação foi tranquila. Ela se relacionava delegando, confiando.
Era muito fácil trabalhar com Lina. Sua liberdade de criação se estendia também aos colaboradores. Nessa época poucos conheciam seu trabalho pois ela era avessa a auto-promoção. Sua imagem foi distorcida, por vários anos, por constantes ataques de um colunista do Jornal da Tarde. Ele inventava que ela era mal humorada e outras besteiras. Esta falsa impressão sobre sua personalidade se dissolveu quando seu trabalho ficou conhecido através da exposição, do livro e do filme Lina Bo Bardi, em 1993. Ficou claro, então, o seu imenso leque de maravilhosas realizações nas várias áreas artísticas; e o mais óbvio: é impossível alguém mal humorado fazer desenhos tão bons!
Ou miar para as pessoas queridas!!! Miauuu!
Na viajem de pesquisa pela região da Mantiqueira, no Sul de Minas, para a exposição Caipiras, Capiaus: Pau-a-Pique, começou a grande amizade e parceria produtiva com Marcelo Ferraz. Por 15 dias, viajamos de carro pelas estradinhas de terra naquele pedaço caipira parado no tempo. Buscávamos tudo que pudesse interessar para a exposição, desde uma vassoura de gravetos à uma cama, um alambique, uma gaiola de passarinhos, impressos, tudo enfim. Trouxemos, inclusive, duas gavetas com tipos raros de música para serem usados na oficina de tipografia do Sesc.
Para o cartaz desta exposição, Lina entregou uma aquarela de um chapéu e me encarregou de sua finalização. O título inclinado possibilitou o destaque dos logotipos do Sesc e da Brastemp (famosa fabricante de aparelhos eletrodomésticos e patrocinadora de todo evento). Com suas flores semelhantes e no mesmo tamanho, os logotipos revelaram um jogo interessante: o esquimó doava uma “flor” para o Sesc soltar pela chaminé.
O logotipo do Sesc Pompeia me chamou a atenção à primeira vista. A composição livre e completamente fora dos padrões de “design”, acentuou e popularizou a importante poética de transformação de uma fábrica de tambores e geladeiras em uma fábrica de sonhos. Como disse Maiakovski: “Não existem regras poéticas. Poeta é justamente quem cria suas próprias regras poéticas”, e Lina criava com essa liberdade. Infelizmente, alguns anos depois, o “design” venceu, o logotipo foi substituído por outro esvaziado, padronizado para todas unidades do Sesc. Uma pena!
Na exposição seguinte, Entreato para crianças, ainda no Sesc, o olhar afetuoso de Lina é dirigido novamente para o mundo infantil. Bichos e mais bichos. Na entrada seu texto anunciava:
“Esta exposição é apenas um barulhinho de uma engrenagem que inicia um movimento, um pequeno convite à ciência e à fantasia. É um convite também à terrível lógica das crianças, que tanto se aproxima do rigor científico.
Mas tudo isto é uma outra história. Importante: os brutos não falam, isto é, é difícil entendê-los. Mas além dos bichos amigos (o pet dos ingleses) há bichos vagabundos visíveis ou quase invisíveis, os bichos caseiros, aranhas, baratas, besourinhos, ratinhos, todos eles estrelando a casa na espera da bomba do pesticida.
Está claro (ou não está claro) que existem (ou podem existir) zonas “cinzentas”, isto é, intermediárias entre o branco e o preto, zonas que permitem a convivência, o respeito e a atenção, que não permitem que as formigas sejam pisadas, as baratas achatadas a esmo, bichinhos gentis mortos de uma mãozada, assim como flores amassadas na planta, galhinhos desfolhados por um interlocutor ou conservador distraído”
Além de bichos esculpidos de todas as formas e materiais possíveis, um carrossel e uma baleia que se podia atravessar, estavam expostas ilustrações científicas e viveiros transparentes com colônias vivas de baratas e formigas. Uma fartura que as crianças saboreavam felizes.
Para o cartaz Lina pintou uma barata e uma formiga e incluiu também sua foto de criança mais antiga. Em baixo das imagens a advertência “Não pise as formigas, não mate as baratas.*”. A explicação vinha em corpo pequeno, no rodapé do cartaz, somente para quem estivesse realmente interessado: “*Isto é, invés de matá-las, use o ‘tratamento preventivo’: tudo limpinho em casa, sequinho, refrigeradinho, sem cisquinhos e migalhas. O bichinho volta ao Mato de onde veio”.
A direção de marketing da Brastemp, patrocinadora novamente, quando viu o lay out do cartaz agradeceu simpaticamente e pediu para eliminar seu logotipo, “O patrocínio continua mas, Brastemp e barata no mesmo impresso não vai funcionar…”
Paralelamente ao Sesc, por essa época, encerramos as apresentações da peça Mahagonny Songspiel de Brecht e Weill do grupo Teatro do Ornitorrinco, do qual eu participava desde 1977 como cenógrafo e designer gráfico. Cacá Rosset, amigo e diretor do grupo decidiu então que era uma boa hora, pelo jeito, sempre será, para montar Ubu de Alfred Jarry. Convidei Lina para a cenografia. A “pataquímica” entre os dois foi imediata. Lina amava o teatro e tinha muita experiência. Na Bahia, havia cenografado a Ópera dos três tostões (1960) e Calígula (1961), ambas com direção de Martim Gonçalves, importante criador do teatro brasileiro. Em São Paulo, apresentada por Glauber Rocha ao diretor do Teatro Oficina José Celso Martinez Corrêa, cenografou Na selva das cidades (1969) e Gracias Señor (1971).
Seu trabalho não se limitava à cenografia, mesmo porque, neste caso, além de eliminá-la, excluiu também a rotunda, as bambolinas, pernas etc... deixando o palco totalmente nu. Para a cena inicial de Ubu na miséria, foi suficiente um tapete vagabundo rasgado e a neve entrando em casa, sugerindo o telhado quebrado; no banquete de conspiração, as comidas eram imaginárias. Para a grande festa de coroação do Rei Ubu, um dos atores entrava em cena com uma placa escrita “Este é o Palácio de Varsóvia”. A imaginação do espectador é mais poderosa do que a tralha cenográfica. No fundo da plateia virado para o palco, dando proteção ao evento, um enorme Caboclo Ubiratã, entidade das cidades encantadas dos rios verdes, guia para os perdidos e fechador de corpos.
De uma maneira similar, o Polochon criado por Lina, era também um protetor. Ainda com as cortinas fechadas, o apresentador entrava empurrando-o desde o fundo da plateia até a lateral esquerda do proscênio. Apontando para o insólito animal, aguardava por longos segundos a reação do público atônito. Finalmente todos entendiam a “lógica” e uma grande salva de palmas dava início ao galopante espetáculo. De novo a “terrível lógica das crianças”. Apesar de ser um espetáculo muito documentado, encontramos apenas uma única foto do Polochon em cena. Do urso e do Caboclo Ubiratã, nenhuma!
Lina deu “cara” ao Polochon a partir da reconstituição dos relatos orais de Charles e Henri Morin:
“Podemos ver ainda hoje, no deserto do Turquestão, as ruínas de uma cidade imensa, que foi, desde milhares de anos antes da nossa era, a capital de um grande império, cujos últimos soberanos identificados pela História são M. Dronberg I, M. Dronberg II e M. Dronberg III. A população do império em questão era composta de Homens-Zénormes. No reino de M. Dronberg III nasceu, na margem do rio Oxus, P.H., fruto do comércio de um Homem-Zénorme com uma feiticeira tártara ou mongol que vivia nos juncos e canas das margens do Mar de Aral. ...
... Todos os anos, na primavera, P.H. levava para pastar seu rebanho composto de 3 bilhões 333 milhões 333 mil e 333 polochons nas estepes entre o mar Cáspio, o Mar de Aral e o lago Baikal; …
… Ao seu retorno, com as primeiras neves, seu padrinho conferia cuidadosamente seus polochons, o que o mantinha ocupado durante todo o inverno.
… um ano, ao final da estação, o P.H. se encontrando com a comida curta, “arregaçou” um dos polochons. Ele então quis fazer crer ao seu padrinho que o dito polochon havia sido afastado por uma pantera; infelizmente, a cauda do polochon sobrou entre seus dentes, o que o traiu”.
Os irmãos Morin, colegas de Jarry no Liceu, invejosos de seu sucesso o acusaram de plagiar a história de Ubu. Inspirada no professor de física Félix-Frédéric Hébert (1832-1918), apelidado de P.H. (Père Hébert > Père Ubu), uma série de deboches estudantis foram por Jarry ampliadas e desenvolvidas tanto em literatura como numa dramaturgia poderosa. Considerada precursora do teatro moderno, a peça Ubu é o melhor retrato do pior tirano. O fato é que Lina ao incluir o Polochon dos irmãos Morin na peça de Jarry, deve tê-los pacificado no além.
Vídeo Ubu, Lina Bardi fala de Jarry, direção Pedro Vieira, c.1985
O agradecimento de Lina ao prêmio recebido pela cenografia de Ubu:
“Agradeço o Juri pelo prêmio a mim atribuído. Na realidade, o público pode perguntar: que cenografia é esta onde não tem nada?
A este ponto eu cito Lautreamont: ‘a arte deve ser feita por todos e não por um só’.
O teatro é a vida e na ausência de dados ‘pré-estabelecidos’, uma cenografia ‘aberta’ e despojada pode oferecer ao espectador a possibilidade de ‘inventar’ e ‘participar’ do ‘ato existencial’ que representa um espetáculo de Teatro.
Assim nasceram a ‘neve’, o jantar sem nada, o Palácio que não existe, os pequenos paraventos laterais. Tenho certeza que Jarry teria gostado.
Num certo sentido, a cenografia tradicional é o contrário da arquitetura e a ausência de ‘cenografia’ é, como dizia Walter Gropius, pura arquitetura.
Agradeço o Juri por ter compreendido tudo isso”.
Nessa época, Lina passa a me chamar carinhosamente de Victor das Estepes da Ásia Central, uma ubuesca homenagem que aceitei com orgulho. Passado um tempo, essa mesma região, mais precisamente, o Afeganistão, se transforma para mim em objeto de prolongada pesquisa. Em decorrência da invasão “soviética” em 1979, povos nômades pastoris, ali ainda em atividade, passam a incorporar em seus tapetes os novos elementos contemporâneos: tanques, helicópteros, metralhadoras, granadas e minas antipessoais. No princípio, granadas de mão ocupam timidamente o lugar das romãs, dentro do desenho tradicional. A evolução é rápida e criativa, diferentes composições surgem tendo como tema central a violenta e prolongada realidade bélica promovida por sucessivos invasores. Um retrato escancarado e cínico. O que me fez relacionar Ubu, Polochon e Cia. com esses tapetes não é obviamente a coincidência geográfica mas a crua e efetiva denuncia das tiranias.
Nos intervalos entre um trabalho e outro costumava visitar Lina na Casa de Vidro. Ficávamos conversando defronte a lareira no inverno ou então sentados nas poltronas de bola. Num desses encontros, já no fim da tarde, reparamos na árvore próxima da janela uma mãe coati seguida por seu filhotinho. Se recolhiam em cima da casa. Lina com certeza acompanhava esse ritual há muito tempo e por amor a esses bichinhos deve ter batizado de Coaty o restaurante da Ladeira da Misericórdia. Não lembro ao certo se fizemos a placa do Coaty antes ou depois desse dia, mas hoje relaciono esses fatos emocionado.
Algumas “nuvens” para finalizar este pequeno corrido. Nuvens carregadas: a demissão da equipe inicial do Sesc Pompeia em 1984; a exposição Rádio no Museu da Imagem e do Som, abortada devido a mudança de diretoria, 1988.
Outras nuvens, em que estive próximo: obras que permaneceram inconclusas ou que foram desvirtuadas como a Cave Restaurante, na Nova Prefeitura de São Paulo, 1992, (incompleto e transformado num “centro cultural da ciência”) e o Restaurante Coaty na Ladeira da Misericórdia, 1993 (abandonado e ocupado como residência popular e agora “centro cultural”).
Ainda às voltas com as nuvens, mais um par delas, curiosas por sua semelhança visual, em tempos, razões e abordagens distintas: a primeira, em meu retorno à FAU USP em 1975, após 2 anos vivendo em Roma, amargo com a continuidade da situação brasileira, traduzi esse horror acrescentando uma nuvem em frente do sol de Artigas. Um tempo depois, para me confortar em relação aos fatos da Pompeia, Lina, otimista, fez o sol brilhar por trás da nuvem impressa no cabeçalho de seu bilhete pessoal. Acredito que sua mensagem pode servir de estímulo a todos, enquanto o cruel sistema capitalista persistir, enquanto a verdadeira História da Humanidade não tem início. Viva!
Otello: Iiiiih, che so’ quelle?
Jago: Sono … sono le nuvole …
Otello: E che so’ le nuvole?
Jago: Boh!
Otello: Quanto so’ belle! Quanto so’ belle!
Jago: Oh, straziante, meravigliosa bellezza del Creato!
Che cosa sono le nuvole?
Jago (Totò) e Otello (Ninetto Davoli), marionetes descartados em um lixão descobrem as nuvens que passam velozes no grande céu azul.
Pier Paolo Pasolini, 1968
nota
NE - Publicação original do texto: NOSEK, Victor. Sol caliente y nubes veloces: fragmentos de una colaboración. In SáNCHEZ LLORENS, Mara; FONTáN DEL JUNCO, Manuel; TOLEDO GUTIÉRREZ, Maria (Orgs.). Lina Bo Bardi, Tupí or not Tupí – Brasil 1946-1992. Catálogo de exposição. Madri, Fundación Juan March, 2018, p. 206-215. A exposição acontece na Fundação Juan March, Madri, Espanha, de 5 de outubro a 13 de janeiro de 2019. A republicação do texto é uma cortesia da Fundación Juan March.