Efemérides são boas ocasiões para se olhar algo novamente e refletir. É nesse sentido que vem o livro Patrimônio em transformação – atualidades e permanências na preservação de bens culturais em Brasília. Lançado pelo Iphan em 2017, o exemplar aparece em momento de tripla comemoração: sessenta anos do projeto vencedor de Lúcio Costa para a nova capital; trinta anos da inscrição do Plano Piloto de Brasília na lista de patrimônio cultural da humanidade da Unesco; oitenta anos da criação do órgão destinado à proteção patrimonial. Como o nome prenuncia, trata-se de uma obra sobre patrimônio, dedicada a olhar Brasília e a trazer para reflexão discussões sobre a cidade que vem se modificando e consolidando. A publicação mostra-se como boa forma de celebrar, uma vez que se insere de forma atual e propositiva no debate. E, o olhar que se lança sobre a cidade-patrimônio, nesta ótima coletânea de artigos, traz contribuições significativas para pensá-la.
A tônica da obra é dissociar-se da ideia de que o respeito ao patrimônio implica fixidez. Compreende-se a mudança como algo imanente à condição de cidade dinâmica, e a necessidade de revisitar Brasília é lida como um exercício fundamental para sua própria proteção. O assunto da preservação patrimonial de – e em – Brasília não é novo, mas muito do que se aborda, e como, coloca-se como leitura enriquecedora para quem lida com o tema ou se interessa por ele. Encaram-se transformações por que passam a cidade dinâmica, e não mais projeto, trazendo reflexões e deixando claro quais são as questões que estão na ordem do dia para o órgão do patrimônio e que, não por coincidência, guardam relação com as datas que festejam.
O volume é formado por uma coletânea de nove artigos, separados em três grandes partes. A apresentação é feita pelos organizadores da obra, dois servidores experientes do Iphan, a arquiteta Sandra Bernardes Ribeiro e o historiador Thiago Pereira Perpétuo, que o fazem de maneira muito precisa, com clareza de objetivos e ótimas sínteses do conteúdo que se segue. É interessante destacar, aqui, a tradição de exercitar autocrítica que vem se configurando no Iphan. As dissertações de ambos os organizadores (respectivamente, Brasília: memória, cidadania e gestão do patrimônio cultural, de 2003, e Uma cidade construída em seu processo de patrimonialização: modos de narrar, ler e preservar Brasília, de 2015) são indicativas disso. Ademais, a miríade de autores, de diferentes backgrounds, mas, em regra, de forte envolvimento acadêmico e considerável experiência profissional, sinaliza forte ligação – ou a necessidade dela – entre a academia e a prática.
O livro interessa a público específico, qual seja, aqueles que de alguma forma estejam envolvidos com as questões de preservação ou, ao menos, familiarizados com o tema, quer sejam profissionais afetos às instâncias institucionais multidisciplinares envolvidas (Iphan, GDF, UnB, entre outros), quer sejam estudantes em contato com a temática do patrimônio. A linguagem utilizada não é hermética, mas, por vários momentos, pressupõe alguma familiaridade com o objeto e o assunto. Não é, contudo, impossível aventar que o leitor desavisado, mas curioso pelas dinâmicas patrimoniais em Brasília, veja-se atraído pelo exemplar. E, com efeito, a disponibilidade em acessá-lo deve ser valorizada. É facilmente encontrado em versão pdf, gratuita, para baixar no sítio eletrônico do Iphan ([1]).
Como já dito, a obra é dividida em três partes: I – Revisitando o passado, reinterpretando o presente; II – Possibilidades de (re)apropriação dos espaços da cidade; III – Olhares sobre a gestão do patrimônio cultural do DF. E, em termos de estruturação, das partes e da organização dos capítulos, é interessante reparar como a narrativa do livro se constrói e como o espaço – físico, inclusive – que o exemplar dedica a cada umas das partes é coerente com a proposta geral. Dessa maneira, revisar o passado para reapropriar-se do presente e ponderar o futuro estão, respectivamente, consubstanciados em 2, 3 e 4 capítulos, complementares entre si e operando como uma crescente e prospectiva análise da cidade. Os artigos organizam-se de forma muito coerente com o tema do livro, encadeiam-se de maneira sinfônica e logram incitar a reflexão. Entrando, propriamente, no conteúdo, perpassaremos aqui por todos os trabalhos, mas nos deteremos com um pouco mais de profundidade em uns do que em outros, ainda que corramos o risco de cometer injustiças com alguns dos excelentes artigos que compõem a obra.
Comecemos pelo princípio, como faz o livro. Intitulado “Construída na linha do horizonte: Brasília, o plano piloto e a manipulação do chão” (p. 14-50), o primeiro artigo, da professora Maria Manuel Oliveira, traz contribuição valiosa sobre o mito de implantação da cidade. O trabalho, de viés bastante técnico, demanda leitura paciente e atenta, mas o resultado é extraordinário. Do exercício técnico primoroso de levantamento de dados e modelagem topográfica resulta uma síntese que conclui que, embora não tenha sido explicitado no Relatório do Plano Piloto, o partido adotado foi profundamente afetado por dados de topografia já disponíveis à época. A professora demonstra que Lucio Costa viu-se investido de intencionalidade projetual, decorrente de vasto conhecimento disponível acerca do sítio no qual se assentou Brasília. Não estamos diante de um terreno plano, mas sim, "no coração de uma cratera" (p. 19). Fica demonstrado que a materialização do sonho profético de Dom Bosco, do desejo arquissecular do patriarca, foi, na realidade, resultado deliberado de muito suor e trabalho, calcado em base científica.
A releitura sobre a origem material da cidade abre o caminho para que, a seguir, enfrente-se a gênese do objeto patrimonializado. E, é isso que Thiago Perpétuo entrega de forma muito competente no segundo capítulo: “Revisitando o processo de tombamento de Brasília: uma contribuição historiografia para novas interpretações do objeto protegido” (p. 52-75). Aqui, lança-se novo olhar sobre “as dimensões da maior poligonal urbana tombada do mundo” (p. 72), ressaltando-se a fragilidade em conceitos tido como “irrevogáveis ou indiscutíveis” (p. 73). Permitindo libertar-se do discurso da estanqueidade do passado, o autor desconstrói a intocabilidade do bem tombado, uma vez que compreende seus pressupostos como uma construção social (e, por essa razão, passíveis de reavaliação). Os habilidosos trabalhos de ambos recriam possibilidades de interpretação e nos comprovam a tônica da Parte I: é possível reinterpretar Brasília desde a sua origem, tanto física quanto simbólica.
O teor da Parte II, que trata da reapropriação do presente, pode ser sintetizado na palavra "democratização". No artigo “Via W-3, Brasília: nossa futura Broadway?” (p. 78-89), o professor Frederico de Holanda nos leva a repensar a avenida, com vistas a ativar sua vocação comercial e multifacetada. Em uma perspectiva de direito à cidade, seu esforço é para desconstruir a Brasília socialmente excludente. Na mesma toada, vem o capítulo 4, de Andrey Rosenthal Schlee, professor titular da UnB e hoje à frente do Depam/Iphan. “O Mall dos brasileiros” (p. 90 a 99) nos faz repensar a Esplanada dos Ministérios como “Lugar do que é público e do que é de todos” (p. 94). Dessa forma, faz defesa da portaria n°184/2016, que regulamenta a utilização do canteiro central, como “Uma legislação não elitista” (p. 94), que reforçaria o caráter múltiplo e democrático da esplanada. Fechando esse bloco de olhares sobre o presente vem o capítulo 5, “Mobilidade, acessibilidade e velocidade no Eixo Rodoviário” (p. 100 a 110). Paulo César Marques da Silva, doutor em estudos de transporte, argumenta que "A alta velocidade [do Eixão] vem sendo preservada em tal patamar, ao longo de décadas, como se fosse, ela própria, um patrimônio protegido” (p. 100). Discute, portanto, que promover a redução da velocidade da via também faz parte de encarar a cidade como sendo acessível para todos.
Ressignificados passado e presente, olha-se para o futuro, a fim de compreender como gerir o patrimônio cultural. A temática da "interação" subjaz como elemento comum aos quatro artigos que compõem a Parte III. Assim, destacamos a necessidade, reiteradamente apontada, de que haja o aprofundamento da relação entre a preservação patrimonial (cuja competência é atribuída conjuntamente à União e ao GDF) e o planejamento urbano (que cabe apenas ao GDF). Nesse sentido, o trabalho do GT-Brasília, da década de 1980, retorna com vigor e mostra-se atual para o enfrentamento de questões de preservação do CUB.
Com vistas a lidar com a gestão patrimonial, o artigo “Conjunto Urbanístico de Brasília: da preservação e outros demônios” (p. 114-135), de Carlos Madson Reis, à ocasião superintendente do Iphan-DF, aponta para a necessidade de se superar o ideário mítico de "seus idealizadores e pioneiros" (p.124). Aqui, aparece de forma patente que a preservação patrimonial depende, sobretudo, de que se empreenda política de gestão e preservação consistente, articulada nos âmbitos federal e distrital. O viés pragmático aparece, também, nos textos de André Luiz de Souza Castro: “Notas sobre as inovações da Portaria n°166/2016-Iphan para preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília” (p.136 a 154) e de Maurício Guimarães Goulart: “O Horizonte de Brasília: a definição da zona de entorno e a gestão compartilhada do Conjunto Urbanístico de Brasília” (p. 156 a 183). O primeiro analisa a portaria n°166/2016, à época, recém-editada pelo Iphan. O instrumento veio não somente a espacializar dispositivos de preservação, mas também a reconhecer que a cidade-patrimônio não é homogênea em importância para salvaguarda. A decorrência disso é clara: a preservação do CUB deve implicar critérios mais ou menos rígidos, conforme o caso. Goulart faz leitura similar da portaria n° 166/2016 e acrescenta análise pertinente acerca da área de entorno (tanto aquela que é interna ao perímetro protegido, tal como tratado por Perpétuo, quanto aquela lindeira ao CUB, objeto da portaria n° 68/2012, também do Iphan.
Encerrando o livro, temos o capítulo dos professores Ana Elisabete Medeiros e Oscar Luís Ferreira, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UnB: “A preservação do conjunto arquitetônico do antigo HJKO em debate” (p. 184 a 202). Tendo o estudo de caso da preservação de um bem isolado à frente e o papel da FAU na formação de diversos profissionais atuantes na preservação patrimonial como panorama mais profundo, o artigo nos chama a atenção ao diálogo que se estabelece entre o Iphan e a UnB. Em um movimento dialético, que se retroalimenta, examina-se o papel que ambas as instituições desempenham nessa dinâmica. Instigante é observar que esse mesmo artigo comece indicando a confusão – ou a falta de informação – do público em geral no que tange ao debate patrimonial. Os professores notam que, para muitos, a Brasília tombada é aquela que "materializa-se nos edifícios icônicos do Eixo Monumental" (p. 185).
E, é justamente daí que poderia ter saído outra reflexão necessária ao debate patrimonial: ele permanece quase restrito ao ambiente institucional, tanto governamental quanto acadêmico. À exceção do lugar-comum de que qualquer mudança fere o tombamento, há pouca ressonância junto à população geral, o que é sintomático não só da ausência de educação patrimonial, mas também do alijamento do grande público das questões afetas à preservação. Mas essa não é propriamente uma crítica ao livro (que traz ricas reflexões e uma boa dose de autoanálise por parte do Iphan), e sim ao debate que ele corporifica. Agora, em 2019, quando estamos próximos do aniversário de 60 anos da cidade-patrimônio, o esforço do Iphan deve ganhar novo fôlego. É de se esperar que mais temáticas ganhem protagonismo e que Brasília seja novamente – e continuamente – revisitada.
sobre a autora
Erika Quintans é arquiteta e urbanista, graduada pela Universidade de Brasília e mestranda pela mesma instituição. Atua como analista de planejamento e gestão urbana e regional do GDF desde 2005.