“Pirandellismo, aquela espécie de furor delirante e lúcido”
Alberto Moravia, O homem como fim
Há clássicos da literatura universal que refletem sobre todos os dramas humanos, como a vingança (Hamlet), o ciúme (Dom Casmurro), o desejo incontrolável de ascensão social (O vermelho e o negro) etc. Na academia – como já fiz –, pode-se usar a Antígone para discutir, no direito, a relação entre direito natural e direito positivo; na ciência ambiental, Um inimigo do povo, de Ibsen, para analisar o papel social do ambientalista; um pequeno texto de Borges em Ficções (“Do rigor na ciência”) para refletir sobre as escalas geográficas que, quando equivocadas, fazem com que a carta seja abandonada “às inclemências do sol e dos invernos” etc.
Sobre as fake news ou os factóides políticos – que começam a inundar as redes sociais em ano de eleição – também há uma obra literária fundamental, que parece não ser muito lida hoje, o que é uma pena. Trata-se da peça do escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936) chamada Assim é (se lhe parece) (1) que discute verdade e aparência, mas, sobretudo, a interpretação subjetiva de fatos e a tirania da curiosidade pública sobre a intimidade alheia.
O autor classifica a peça de como “parábola”. Encenada algumas vezes no Brasil (inclusive na fase áurea do TBC, em 1953, com Paulo Autran e Cleyde Yáconis), a peça estreou em Milão no ano de 1917, portanto no final da Grande Guerra na qual lutaram os dois filhos de Pirandello. Mostrando o sucesso do texto, a primeira montagem brasileira é de 1924, com o título (ótimo) de “Pois é isso...”, montagem feita pela Companhia de Jaime Costa, a que o autor assistiu, no Rio, em 1927. O autor gostou da montagem, mas desgostou dos direitos autorais que recebeu por ela, o que logo tratou de verificar. A tradução foi de Paulo Gonçalves. Baseia-se num pequeno conto do próprio Pirandello, escrito pouco antes da peça (“A senhora Frola e o senhor Ponza, seu genro”), e a história, em resumo, representa o embate entre sogra e genro entre si e com a comunidade provinciana para onde se mudam a respeito da reclusa filha e esposa, que podem ser a mesma pessoa – ou não (2).
No conto, a esposa nem aparece, mas na peça surge apenas no final do terceiro e último ato – sempre em luto fechado e com um véu cobrindo-lhe o rosto (que não se vê) – numa cena tremenda porque ela dirá, numa única linha, um sentido possível daquilo tudo pouco antes do pano cair. Representará na peça a própria verdade e, portanto, nunca mostrará a face e daí a necessidade do “véu espesso e impenetrável sobre o rosto”, como indica a rubrica de Pirandello.
A história é a seguinte: para certa cidade do interior muda-se o novo secretário municipal, que vai instalar-se com a esposa num edifício situado nos limites da cidade enquanto sua sogra é acomodada num apartamento central. São eles o senhor Ponzo e a senhora Frola, gente distinta, simpática e educada. Para o desenrolar verossímil da história, tanto no conto quanto na peça é dito que eles vieram de vilarejo que passou por um terremoto, ficou em ruínas e todos os registros de nascimento e óbito se perderam. Não há documentos, portanto, de seu passado. Não se sabe quem são aquelas pessoas e elas não têm parentes.
A população começa a achar estranha a longa distância entre a casa da mãe e da filha e o fato de o senhor Ponzo, muito atencioso, visitar todo dia sua sogra. Esta também visita a filha todo dia mas não sobe a longa escada do prédio, vendo-a apenas de longe. Isto decorre da arquitetura do apartamento onde o senhor Ponzo foi morar, num “bairro econômico”. No conto é dito que ele “alojou-se num edifício novo, na saída da cidade, chamado de ‘O Favo’. Lá mesmo. No último andar, um pequeno apartamento (“un quartierino”). Três janelas que dão para o campo, altas, tristes (pois aquela fachada, voltada para o poente, sobre hortas pálidas, apesar de nova, não se sabe por quê, tornou-se muito triste) e três janelas internas, do lado de cá, sobre o pátio, onde o corredor da área de serviço faz um L e se divide em divisórias gradeadas. Dos corredores pendem, lá em cima, vários cestos atados a um cordão, prontos para serem baixados a qualquer necessidade”.
Diz o conto que a senhora Frola, de duas a três vezes por dia entra no pátio, toca a campainha e logo a filha aparece lá em cima. A “mãe” pede que baixe a cestinha onde coloca um papel com as notícias do dia. Na peça, o apartamento ganha a seguinte descrição, mais sucinta: “Ele chega, aluga um apartamento no último andar daquela casona tétrica, lá, na periferia da cidade (“all’uscita del paese”), com vista para roça [...] Você viu o prédio? Tem um pátio interno – tão escuro – parece um poço, com uma grade de ferro de ponta a ponta da mureta do corredor do último andar, de onde os moradores baixam cestinhas vazias que sobem cheias de pães”. No cesto de vime onde se colocam pães, frutas e verduras, a Senhora Frola coloca mensagens à filha.
A mesma personagem, a jovem Dina, é que conta: “Essa pobre coitada entra no pátio, puxa a corda da cestinha de pão, fazendo a campainha tocar; a filha aparece lá em cima, e ela fala de lá de baixo, do fundo daquele poço, esticando o pescoço assim. Entende o tipo de coisa? Como se não bastasse, ela nem mesmo vê a filha, ofuscada pela luz que vem do alto”. Ou seja, a senhora não consegue nem falar e nem ver a filha em razão do sol. Porém todos os cidadãos veem que elas só se falam do pátio (“dal cortile”).
A ideia – com verossimilhança, mas não necessariamente verdadeira – é a de que a senhora Ponza está presa lá em cima e a suposta mãe está proibida de aproximar-se dela, como se um fantasma fosse. No entanto, a senhora Frola nega tal coisa, depois de confirmar que não sobe até o apartamento. “A minha filha aparece no balcão do corredor que dá para o pátio e nos vemos... nos falamos...” Há uma escada de noventa ou cem degraus a subir porque, obviamente, não havia elevador, o que também determina a existência do “paniere” (do latim panarium), ou seja, das cestas presas com cordas para serem puxadas. O “panaro” é um antigo costume do centro histórico napolitano (”Perdere Filippo e o’ panaro“, diz o ditado) e Pirandello também era do sul da Itália, nascido próximo a Agrigento, na Sicília.
Mas em face do esforço da escada, perturbada, embaraçada, ela mesmo vai se trair: “O que é uma escadaria de noventa ou mesmo cem degraus, para uma velha mãe, ainda que cansada, quando o prêmio por seu esforço é poder abraçar a própria filha lá em cima?” Este pensamento súbito, certamente, alimenta a desconfiança da população sobre o senhor Ponzo que mantém a esposa lá naquele “casone tetro”.
Inicia-se então o interrogatório popular porque os moradores estavam “sedentos de notícia”. O que acontecia ali? A senhora Frola, uma velhinha, de modo muito cortês e simpático, explica ao povo que o genro – um “jovem excepcional” – tem amor obsessivo, possessivo, por sua filha, afastando-a de todos, inclusive dos parentes. Já o senhor Ponzo revela, após saber da confissão da sogra, que a senhora Frola é completamente louca e que a filha dela, que fora sua primeira esposa, havia morrido muitos anos atrás, só que ela não admite isso e vive na ilusão de que a atual esposa dele é sua filha. Ambos falam que vivem muito bem à sua maneira e nada reclamam um do outro.
A cidade, então, começa a discutir de modo acalorado sobre quem é louco e quem é são, já que ambos – sogra e genro – são pessoas sensatas e racionais. Invadindo a privacidade do casal – contra o que se rebela o senhor Ponzo, que de imediato pede demissão do cargo diante da “inquisição feroz” de que é vítima –, a comunidade vai se inquietando ao extremo e resolve então chamar a própria filha e esposa, pivô de toda a trama, para que se manifeste. Esta, enigmática como um oráculo, aparece e vai dizer que é tanto filha da senhora Frola quanto segunda esposa do senhor Ponzo, ou seja, confirma a história de ambos que são, em princípio, contraditórias. Diz ainda que para si mesma é nenhuma e depois arremata, sem nunca mostrar seu rosto: “eu sou aquela que se crê que eu seja”. A chave da peça é essa frase: “Io sono colei che mi si crede”. E sai rápido de cena, abraçada à suposta mãe e ao suposto marido, acabando a peça.
É um final magnífico porque fecha e não fecha a história, deixando-a em aberto (como, aliás, ocorre em Dom Casmurro), trazendo novos elementos de interpretação: a esposa pode também estar mentindo, a causa da sua desventura já que todos se vestem de negro etc. Mas o que importa aos outros? É magnífico também porque permite a conclusão de que a verdade – que não se deixa ver jamais – é aquilo que as pessoas querem que ela seja. Ela não é fruto de uma razão universal e suprema, mas das circunstâncias pessoais de quem afirma. Pois é isso... “Eu sou eu e minha circunstância”, já dizia Ortega y Gasset.
Trata-se de texto muito atual que deveria ser leitura obrigatória em nossas faculdades para discutir a violação do direito à privacidade (a senhora Ponzo foi arrancada de casa à força para dar explicações, sem estar obrigada a isso, assim como a senhora Frola e o senhor Ponzo), a força das convenções sociais, o valor da prova testemunhal, e, na comunicação social, a ideologia da mídia e a checagem dos fatos. Neste sentido, cabe perguntar: ouvir o outro lado, como diz toda a imprensa para afirmar sua suposta imparcialidade, assegura mesmo o conhecimento da verdade? Quem ouve a versão da senhora Frola e do senhor Ponzo chega, por acaso, à verdade da história? Qual seria a verdade da história, que fica encoberta tal como, fisicamente, a senhora Ponzo? Onde, afinal, está o fantasma e onde a realidade? “Così è (se vi pare)”. O texto, intrigante porque aberto e enigmático, deveria ser lido e relido. Parece, entretanto, que a grande literatura passa muito longe de nossas universidades, com raras ou raríssimas exceções.
notas
1
PIRANDELLO, Luigi. Assim é (se lhe parece). Tradução de Sérgio N. Melo. Prefácio de Alcir Pécora. São Paulo, Tordesilhas, 2011. Edição em italiano: PIRANDELLO, Luigi. Liolà – Cosí è (se vi pare). 2ª edição. Roma, Mondadori, 1953.
2
PIRANDELLO, Luigi. A senhora Frola e o senhor Ponza, seu genro. In: PIRANDELLO, Luigi. 40 novelas. Seleção, tradução e prefácio de Maurício Santana Dias. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 139-149.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de direito urbanístico e de direito da arquitetura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual de São Paulo – FCT Unesp.