"Parecer simples e sorridente é a arte suprema do mundo" escreveu o poeta russo Sergej Esenin num livro póstumo de 1926, O homem negro.
Essas palavras me vieram à mente ao visitar, no dia 19 de maio, Terra, que valeu ao Brasil um merecidissimo Leão de Ouro de melhor participação nacional da Bienal de Arquitetura de Veneza; e poderiam de alguma forma ser uma das chaves de leitura desta exposição.
Terra, curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, apresenta seu conteúdo contundente com absoluta simplicidade, ausência de efeitos especiais e de seduções visuais (a não ser as cores e o design impecável).
A começar pela contra-narrativa da primeira parte sobre a fundação de Brasília curada pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto: cinco pequenas imagens e um recorte do jornal O Cruzeiro, que nos deixam sem palavras (“é bem verdade! ponto final”) e logo a seguir o mapa dos quilombos da região e o mapa etnohistórico do alemão Curt Unckel — Nimuendajù pelos Guaranis — de 1942 (“que nunca tínhamos ouvido falar, por quê?”) a desmontar a versão da nova capital construída no meio do nada, enquanto na realidade o de Brasília é um “território indígena ancestral e quilombola”.
Do outro lado da galeria, um público atento segue em silêncio as cenas inéditas da “retomada da capital modernista pelos movimentos negros e indígenas”, no vídeo de Juliana Vicente, feito expressamente para a ocasião.
A segunda parte, alegrada por tecidos Alaka e Oja pendurados no teto, investiga os “lugares de origem”, reconhecidos como património cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan:
- O Cais do Valongo e a Casa da Tia Ciata na “Pequena Africa” do Rio de Janeiro;
- A Tava, como os Guarani chamam as ruinas de São Miguel das Missões;
- O Terreiro da Casa Branca, primeiro monumento negro tombado no Brasil;
- A Cachoeira do Iauareté, lugar sagrado dos povos Tukano, Aruak e Maku;
- O sistema agroflorestal do Rio Negro.
Trazidos de volta à vida — como “arqueologias do futuro” — por meio de projetos, ideias, realizações das últimas décadas e performances de artistas contemporâneos.
Mergulhei nela.
Surgiam na memoria lembranças de trabalhos de colegas e amigos queridos — da proposta de incluir o Cais do Valongo na lista do património da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura — Unesco, pelo grupo multidisciplinar do Iphan do qual fazia parte José Pessoa, às Tintas da Terra e às arqueologias amazónicas de Renata de Almeida Martins. E lembranças de antigas pesquisas nossas também: o original da planta da aldeia de São Miguel, que abre o painel “Tava. A casa de pedra”, havia sido destaque na exposição da Santa Sede que organizamos em Genova em 1992 (trazido em mãos por Georgina Staneck da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). E como esquecer aquela “versão brasileira” da Architecture de terre do Centre Pompidou que apresentamos no Solar da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC RJ em 1982 e no Museu de Arte Moderna — MAM em seguida?
Mas aqui, na Terra, os lugares são revisitados e contados de forma diferente: quem nos fala nos vídeos espalhados pela galeria, equipados com fones de ouvido para ficar cara a cara com cada um deles, não são os especialistas (arqueólogos, antropólogos, arquitetos, historiadores) que os estudam e estudaram, mas as pessoas que os vivem e os viveram: como os Guarani do documentário utilizado no processo de reconhecimento da Tava como “lugar de referencia” para o povo deles; como a jovem zeladora do Memorial dos Pretos Novos (os escravos recém-chegados ao Rio de Janeiro pelo Cais do Valongo), que nos conta como todas as manhãs, ao chegar, ela primeiro cumprimente a “Josefina Bakhita”. É o nome dado ao único esqueleto inteiro encontrado no local, uma menina de vinte anos.
O resultado são extraordinários curtos-circuitos culturais (como estava na moda dizer há alguns anos) sobre os quais deveríamos refletir longamente:
De um lado, as iniciativas inovadoras do Iphan, como o Livro dos lugares, como fruto de uma tenaz atuação de longa data por parte das associações indígenas. E por outro lado, as mesmas populações indígenas que se reapropriam de monumentos que o Iphan preservou — como no caso e São Miguel — por motivos opostos aos apontados nos primeiros estudos de Lúcio Costa.
Estamos em presença de alguns fragmentos de pensamentos esporádicos, sabiamente recolhidos em função e em homenagem ao tema desta Bienal?
Ou melhor dos sinais de umas correntes subterrâneas que finalmente estão se conectando e vindo à tona com grande força, atingindo a superfície de nosso mundo supostamente "civilizado", exigindo restituição e reparação e sugerindo outras formas possíveis de vivenciar o planeta a partir do desmonte de visões consolidadas?
Em um artigo da revista Drops publicado aqui no portal Vitruvius em maio passado, Nuno Grande utiliza esta mesma palavra em sentido negativo, lamentando a “desconstrução simbólica” do modernismo:
“Enquanto em Veneza se desmonta essa simbologia do moderno brasileiro, em Portugal se celebre a obra heroica de Paulo Mendes da Rocha […]. Contradições ideológicas dos tempos em que vivemos” (1).
Pensar o Brasil como “terra, solo, território", não apenas como arquitetura mas como formas de vida para além da arquitetura, não me parece uma contradição. Trata-se, antes, de um alargamento, de um enriquecimento da visão e do conhecimento que, como em outros campos da história — e em perfeita sintonia com a abordagem de Lesley Lokko, curadora desta Bienal — se abrem a novos protagonistas e a novas perspectivas.
Trilhas a seguir para conhecer mais e refletir sobre território e arquitetura — a dos mestres e a que foi chamada arquitetura sem arquitetos — temos inúmeras. E eu, pelo que vale a opinião de uma historiadora europeia abrasileirada, fico feliz que a da Terra brasileira esteja sendo enveredada, com paixão e inteligência.
Fiquei tão emocionada nesta minha visita que eu não percebi que o chão que eu pisava era tão agradável porque tinha sido coberto pelos curadores com terra estabilizada. Vou ter que voltar.
nota
1
GRANDE, Nuno. Contradições ideológicas na Bienal de Veneza. Exposição brasileira “Terra” ganha o Leão de Ouro na mostra de arquitetura. Drops, São Paulo, ano 23, n. 188.04, Vitruvius, maio 2023 <https://bit.ly/3L0U9YO>.
autora
Giovanna Rosso del Brenna, italiana, é historiadora da arte. É docente da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, desde 2001, e da Università degli Studi di Genova, desde 2000. Foi professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 1978 e 1990.