"Parecer simples e sorridente é a arte suprema do mundo" escreveu o poeta russo Sergej Esenin num livro póstumo de 1926, O homem negro.
Essas palavras me vieram à mente ao visitar, no dia 19 de maio, Terra, que valeu ao Brasil um merecidissimo Leão de Ouro de melhor participação nacional da Bienal de Arquitetura de Veneza; e poderiam de alguma forma ser uma das chaves de leitura desta exposição.
Terra, curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, apresenta seu conteúdo contundente com absoluta simplicidade, ausência de efeitos especiais e de seduções visuais (a não ser as cores e o design impecável).
A começar pela contra-narrativa da primeira parte sobre a fundação de Brasília curada pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto: cinco pequenas imagens e um recorte do jornal O Cruzeiro, que nos deixam sem palavras (“é bem verdade! ponto final”) e logo a seguir o mapa dos quilombos da região e o mapa etnohistórico do alemão Curt Unckel — Nimuendajù pelos Guaranis — de 1942 (“que nunca tínhamos ouvido falar, por quê?”) a desmontar a versão da nova capital construída no meio do nada, enquanto na realidade o de Brasília é um “território indígena ancestral e quilombola”.
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Galeria 1, press release
Imagem divulgação
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“De-colonizando o canone”
Foto Francesco Del Brenna
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Raoni Metuktire no escritório do governador José Aparecido da Silva, por ocasião de sua em visita a Brasilia, 1985
Foto Giovanna Rosso Del Brenna
Do outro lado da galeria, um público atento segue em silêncio as cenas inéditas da “retomada da capital modernista pelos movimentos negros e indígenas”, no vídeo de Juliana Vicente, feito expressamente para a ocasião.
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Galeria 2, com “panos da costa” pendurados no teto
Foto Francesco Del Brenna
A segunda parte, alegrada por tecidos Alaka e Oja pendurados no teto, investiga os “lugares de origem”, reconhecidos como património cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan:
- O Cais do Valongo e a Casa da Tia Ciata na “Pequena Africa” do Rio de Janeiro;
- A Tava, como os Guarani chamam as ruinas de São Miguel das Missões;
- O Terreiro da Casa Branca, primeiro monumento negro tombado no Brasil;
- A Cachoeira do Iauareté, lugar sagrado dos povos Tukano, Aruak e Maku;
- O sistema agroflorestal do Rio Negro.
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Planta do Terreiro da Casa Branca, primeiro monumento negro tombado no Brasil em 1985
Imagem divulgação [Arquivo Central do Iphan RJ]
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Multidão no Terreiro da Casa Branca, 1985
Foto divulgação [Arquivo A Tarde]
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O sistema agroflorestal do Rio Negro: “A floresta Amazonica è um grande jardim cultivado por tecnologias ancestrais, formas de landscape design que apontam para um outro futuro, rumo à reparação da terra, como solo e como planeta”
Foto Fellipe Abreu
Trazidos de volta à vida — como “arqueologias do futuro” — por meio de projetos, ideias, realizações das últimas décadas e performances de artistas contemporâneos.
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A Cachoeira do Iauareté
Foto Vincent Carelli
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Ayrson Heraclito, O sacudimento da Casa da Torre e o da Maison des Exclaves em Gorée, Senegal, vídeo
Foto Giovanna Rosso Del Brenna
Mergulhei nela.
Surgiam na memoria lembranças de trabalhos de colegas e amigos queridos — da proposta de incluir o Cais do Valongo na lista do património da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura — Unesco, pelo grupo multidisciplinar do Iphan do qual fazia parte José Pessoa, às Tintas da Terra e às arqueologias amazónicas de Renata de Almeida Martins. E lembranças de antigas pesquisas nossas também: o original da planta da aldeia de São Miguel, que abre o painel “Tava. A casa de pedra”, havia sido destaque na exposição da Santa Sede que organizamos em Genova em 1992 (trazido em mãos por Georgina Staneck da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). E como esquecer aquela “versão brasileira” da Architecture de terre do Centre Pompidou que apresentamos no Solar da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC RJ em 1982 e no Museu de Arte Moderna — MAM em seguida?
Mas aqui, na Terra, os lugares são revisitados e contados de forma diferente: quem nos fala nos vídeos espalhados pela galeria, equipados com fones de ouvido para ficar cara a cara com cada um deles, não são os especialistas (arqueólogos, antropólogos, arquitetos, historiadores) que os estudam e estudaram, mas as pessoas que os vivem e os viveram: como os Guarani do documentário utilizado no processo de reconhecimento da Tava como “lugar de referencia” para o povo deles; como a jovem zeladora do Memorial dos Pretos Novos (os escravos recém-chegados ao Rio de Janeiro pelo Cais do Valongo), que nos conta como todas as manhãs, ao chegar, ela primeiro cumprimente a “Josefina Bakhita”. É o nome dado ao único esqueleto inteiro encontrado no local, uma menina de vinte anos.
O resultado são extraordinários curtos-circuitos culturais (como estava na moda dizer há alguns anos) sobre os quais deveríamos refletir longamente:
De um lado, as iniciativas inovadoras do Iphan, como o Livro dos lugares, como fruto de uma tenaz atuação de longa data por parte das associações indígenas. E por outro lado, as mesmas populações indígenas que se reapropriam de monumentos que o Iphan preservou — como no caso e São Miguel — por motivos opostos aos apontados nos primeiros estudos de Lúcio Costa.
Estamos em presença de alguns fragmentos de pensamentos esporádicos, sabiamente recolhidos em função e em homenagem ao tema desta Bienal?
Ou melhor dos sinais de umas correntes subterrâneas que finalmente estão se conectando e vindo à tona com grande força, atingindo a superfície de nosso mundo supostamente "civilizado", exigindo restituição e reparação e sugerindo outras formas possíveis de vivenciar o planeta a partir do desmonte de visões consolidadas?
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Visita de pesquisadores indigenas ao Museu Etnologico de Berlim, no âmbito do projeto de repatriação digital dos artefatos coletados por exploradores europeus do século 19
Foto Mark Nesbitt, 2019
Em um artigo da revista Drops publicado aqui no portal Vitruvius em maio passado, Nuno Grande utiliza esta mesma palavra em sentido negativo, lamentando a “desconstrução simbólica” do modernismo:
“Enquanto em Veneza se desmonta essa simbologia do moderno brasileiro, em Portugal se celebre a obra heroica de Paulo Mendes da Rocha […]. Contradições ideológicas dos tempos em que vivemos” (1).
Pensar o Brasil como “terra, solo, território", não apenas como arquitetura mas como formas de vida para além da arquitetura, não me parece uma contradição. Trata-se, antes, de um alargamento, de um enriquecimento da visão e do conhecimento que, como em outros campos da história — e em perfeita sintonia com a abordagem de Lesley Lokko, curadora desta Bienal — se abrem a novos protagonistas e a novas perspectivas.
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Amostra de “Terra preta de índio”, produzida artificialmente na Europa. Evidencia de “contemporaneidade ecológica” das tecnologias indígenas ou de “biopirataria”?
Foto Francesco Del Brenna
Trilhas a seguir para conhecer mais e refletir sobre território e arquitetura — a dos mestres e a que foi chamada arquitetura sem arquitetos — temos inúmeras. E eu, pelo que vale a opinião de uma historiadora europeia abrasileirada, fico feliz que a da Terra brasileira esteja sendo enveredada, com paixão e inteligência.
Fiquei tão emocionada nesta minha visita que eu não percebi que o chão que eu pisava era tão agradável porque tinha sido coberto pelos curadores com terra estabilizada. Vou ter que voltar.
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nota
1
GRANDE, Nuno. Contradições ideológicas na Bienal de Veneza. Exposição brasileira “Terra” ganha o Leão de Ouro na mostra de arquitetura. Drops, São Paulo, ano 23, n. 188.04, Vitruvius, maio 2023 <https://bit.ly/3L0U9YO>.
autora
Giovanna Rosso del Brenna, italiana, é historiadora da arte. É docente da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, desde 2001, e da Università degli Studi di Genova, desde 2000. Foi professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 1978 e 1990.