Edifício Faial, Porto Alegre, 1962. Arquiteto Emil Bered
Foto César Vieira

“Familia, melhor em álbum. Ou em livro" escreveu Comas no prefácio do livro FAM, publicado pelo autor deste prólogo. Sendo o livro sobre Emil aparentado ao de Fayet, Araújo & Moojen, tanto quanto as afinidades pessoais e arquitetônicas, nada mais familiar que iniciar assim. Com a mesma expressão que antecede outra, não menos cabível: “não se trata aqui de reivindicar a familiaridade, mas de tirar partido da mesma com inteligência” (1). A palavra partido, no caso atual, como em um projeto de arquitetura, tem sentido de tomada de decisão ou alinhamento à uma certa maneira de pensar. A linha tênue que perpassa este pensamento, e alinhava estes personagens e respectivas publicações, circunscreve indagação frequente, dentre as diversas regiões do Brasil: há familiaridade suficiente, entre o pensamento e produção da arquitetura moderna brasileira no Sul para constituir escola? O partie adotado na tese que precede as publicações defende este pensamento, e o teor do livro Emil Bered, arquiteto parece corroborar com a compadrice arquitetônica.

A região meridional brasileira, em que pese diferenças mesológicas, históricas, culturais e idiossincráticas em relação as demais regiões de uma nação continental, não almejou a formação de escola que distinguisse substancialmente a identidade arquitetônica nativa em relação ao emblematismo do centro do país. No entanto, refratário a exuberância formal e representatividade da arquitetura moderna no Rio de Janeiro, dos anos 1930-1950, então capital federal, e a grandiloquência da arquitetura moderna em São Paulo, dos anos 1960, então capital econômica, ainda que subsidiário destas escolas, o sul brasileiro se absteve de auto afirmação estilística contendo-se em uma produção de viés austero e recessivo. A proximidade geográfica e cultural com a região do Prata, importante consanguinidade gaúcha, contribuiu – além de subsídios para certo vanguardismo urbanístico moderno e tradição no ensino e prática do planejamento urbano em Porto Alegre – com a mesma cautela formal praticada nas arquiteturas platinas. Agravada ainda pela menor presença de encargos públicos significativos em relação à capital carioca e menor presença de encargos privados importantes em relação à capital paulista, em um ambiente conservador, a sobriedade formal da pioneira arquitetura moderna local se revestiu de menor compromisso com representatividade, portanto com lugar e data e maior abstenção formal, portanto tendência a certa universalidade e perenidade. Arquiteturas, portanto, de emblematismos, escalas e orçamentos mais modestos, projetadas por arquitetos não menos talentosos, que resistiram bem, física e formalmente, ao passar do tempo.

Esta geração nativa, pioneira da vanguarda moderna no sul brasileiro, de produção regular, com certo delay em relação aos epicentros de irradiação, corresponde a segunda geração de arquitetos no Estado e as primeiras turmas de arquitetos formados na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – FA UFRGS, no final da década de 1940 e meados dos anos 1950. Emil Bered, destas primeiras levas de formados, em relação à diversos atributos elencados aqui, além de outros que a publicação dá conta de documentar, é um ilustre representante desta arquitetura que não esconde parentesco com cariocas e paulistas. Mas com morfologia mais doméstica por um lado e maior abstração por outro, além de rigoroso controle construtivo, que se afasta da obra arquitetônica extraordinária de valor artístico autoral, ou da obra arquitetônica extraordinária de valor econômico excepcional, se aproxima significativamente da arquitetura de ofício, feita com consistência, esmero e dedicação, cuja lição está ao alcance de todos. Igualmente em relação a cidade, como em parte produziram os irmãos Roberto em bairros da zona sul do Rio de Janeiro, Franz Heep no bairro Higienópolis, em São Paulo, vem do Uruguai fartos e ótimos exemplos, ainda relativamente no anonimato, desta arquitetura moderna apropriada e domesticada pelo tecido urbano da escala dos bairros residenciais de Montevidéu como em algumas obras de Carlos Surraco, Justino Serralta & Carlos Clémont, Beltrán Arbeleche & Miguel Angel Canale, Luis Mazzini & Haroldo Albanell McColl, De los Campos, Puente & Tournier, do mais conhecido Raul Sichero, dos nossos conhecidos, em Porto Alegre, Roman Fresnedo Siri e Isidoro Singer e do conhecido do Emil, Ildenfonso Arosteguy. Esta arquitetura, mais universal e menos autoral, mais vicinal e menos excepcional, da qual a obra de Emil é aparentada e exemplar, respeita as obras monumentais e excepcionais do movimento moderno, sem desmerecer nem desconhecer seu papel inovador e referencial. No entanto, acompanhada de arquitetos, muitas vezes anônimos, produz tecido urbano, cuja qualidade costumeiramente chamada de média, mas que não tem nada de medíocre, impacta decisivamente na qualidade de vida das cidades contemporâneas. A arquitetura moderna brasileira no Sul está repleta destas arquiteturas e arquitetos ainda parcialmente desconhecidos no resto do Brasil, que fizeram toda a diferença para o moderno nestas plagas. Emil, neste contexto, é um gigante.

Não menos importante e infelizmente cada vez menos frequente, Emil conjugou sua prolífera produção arquitetônica com prolífera atividade acadêmica, além de atuar em órgãos de classe. Sem desmerecer a importância dos professores dedicados exclusivamente à docência e à pesquisa, nem desmerecer a relevância dos arquitetos dedicados exclusivamente à prática de projetos e aos órgãos de classe, Emil, com maestria exerceu estas atividades em franca sinergia. Foi professor de arquitetura analítica e ateliê de projeto de arquitetura durante toda sua vida, até a aposentadoria na FA UFRGS e Presidente do IAB entre 1957 e 1958. Soube transformar a destreza e precisão de seus projetos com conhecimentos que ajudaram a formar diversos afilhados acadêmicos. Soube conjugar a cultura e clareza de seus ensinamentos com conhecimentos que ajudaram a formar criações arquitetônicas representativas da arquitetura moderna brasileira no Sul. Emil, neste contexto, é uma lição

Os valores meritórios citados acima já seriam suficientes para subsidiar uma publicação densa como a pretendida aqui, além de justificar homenagens de toda ordem. Porém, não sem correspondência com a carreira profissional e docente de Emil e a estrutura tripartite deste livro, Emil com seu temperamento suave e gentileza dominantes conquistou a admiração e afeição de personagens de diversas gerações, tendências e filiações de maneira "ecumênica". Emil, neste contexto, é unanimidade.

O livro não era uma forte possibilidade, mas uma carência importante na historiografia da arquitetura brasileira, que talvez, no centro do país já teria sido atendida há mais tempo. Como narra Ana Rosa, filha arquiteta do Emil, novamente foi Emil que, com suavidade, régua paralela e esquadros, deflagrou o processo que culmina neste precioso documento. Estruturado em capítulos dedicados a sua vida pessoal, sua vida acadêmica e sua vida profissional densa de projetos de arquitetura, a publicação teve o privilégio de receber contribuições em tempo real do veterano Emil, que muito além do trabalho dos organizadores e colaboradores, produziu desenhos, escreveu textos, escolheu fotografias, opinou sobre a diagramação e determinou a cor da capa. Não tão retumbante como Le Corbusier em suas publicações, nem eloquente como Lúcio Costa em sua autobiografia. Mas com a delicadeza e sensibilidade de sempre, manteve a precisão, rigor e essencialidade de sua arquitetura na fisionomia de seu livro.

Sua excessiva modéstia, assim como os da sua geração, de alguma maneira contribuiu para o retraso na indispensável documentação de sua inestimável obra, mas que ainda vem há tempo de prestigiar o admirável arquiteto, memorável professor e adorável ser humano. O que além de representar com brilhantismo uma certa maneira de fazer arquitetura moderna brasileira no Sul, não é pouca coisa.

Como dizia o Comas, eia sus!

notas

NE – O presente texto é o prefácio do livro comentado.

1
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Prefácio. In MARQUES, Sergio Moacir. FAM. Porto Alegre, ADFAUPA, 2016, p. 23-25.

sobre o autor

Sergio M. Marques é arquiteto (FAU Uniritter, 1984), mestre (Propar UFRGS, 1999) e doutor (Propar UFRGS/ETSAB UPC, 2012). Professor da graduação e pós-graduação da FA UFRGS e sócio do Moojen & Marques Arquitetos Associados.