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reviews online ISSN 2175-6694

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português
A resenha de Daniel Deminice destaca três temas: o olhar sobre Lima Barreto como literato negro, o fato dele ter “esticado” o mapa do Rio de Janeiro em direção aos subúrbios e, por fim, um antigo debate sobre “bovarismos” ou ideias fora de lugar.

english
The Daniel Deminice’s review highlights three themes: the view of Lima Barreto as a black literary man, the fact that he "stretched" the map of Rio de Janeiro towards the suburbs and, finally, an old debate about "bovarisms" or out-of-place ideas.

español
La reseña de Daniel Deminice destaca tres temas: la visión de Lima Barreto como un literato negro, el hecho de que "estiró" el mapa de Río de Janeiro hacia los suburbios y, por último, un viejo debate sobre los "bovarismos" o ideas fuera de lugar.

how to quote

DEMINICE, Daniel. A literatura em trânsito de Lima. Resenhas Online, São Paulo, ano 22, n. 263.01, Vitruvius, nov. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/22.263/8957>.


Lima Barreto (Rio de Janeiro, 13 de maio de 1881 – Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1922)
Imagem divulgação [Arquivo Nacional – Fundo Correio da Manhã – BR RJANRIO PH]

Lançado em 2017, mesmo ano em que o escritor foi homenageado na 15ª Festa Internacional de Paraty – Flip, Lima Barreto: triste visionário é uma longa biografia elaborada pela antropóloga, historiadora e editora Lilia Moritz Schwarcz, apoiada em A vida de Lima Barreto de Francisco de Assis Barbosa (J. Olympio, 1959), além de uma farta pesquisa documental e historiográfica, em que Lima Barreto é uma espécie de novelo dos inúmeros fios pertencentes à história do Brasil que transpassaram a sua vida.

Com triste visionário, a professora da USP, Princeton, Oxford, Lieden, Brown e Colúmbia retorna ao gênero biográfico, iniciado em O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e seus trópicos difíceis (Companhia das Letras, 2008), para abordar a vida de Lima Barreto também sob o prisma da questão racial na cidade do Rio de Janeiro durante à Primeira República. Nessa construção, além da experiência acumulada no tema das teorias raciais do final século 19, ela atualiza algumas de suas reflexões feitas nos livros Retrato em branco e negro (Companhia das Letras, 1987) e Espetáculo das raças (Companhia das Letras, 1993). A partir desta trajetória historiográfica, ela defende o argumento de que o escritor se revela como um autor de literatura negra ao expressar as contradições sociais de seu tempo da perspectiva dos afrodescendentes.

Embora não faça um exame sobre as formas literárias de matriz africana. Lilia M. Schwarcz lança mão do seu olhar adquirido em suas pesquisas para ler Lima Barreto como um autor afrodescendente por “origem, opção e forma literária”, tendo combatido todas as formas de racismo no Brasil e nos Estados Unidos. Para isso, também se apoia na máxima de Lucien Febvre: “A história é filha do seu tempo”, justificando as próprias indagações ao seu protagonista, que construiu, segundo a sua biografia, uma “literatura de matriz afrodescendente”, pois o escritor compartilhava temas ou experiências subjetivas comuns tanto no campo da criação literária daquele período quanto entre o universo complexo dos negros no pós-abolição. Essa abordagem opta por não dar centralidade à condição mestiça do autor, ao invés disso, joga a luz na questão racial, espécie de “fio existencial” da condição dos negros, não apenas no Brasil, mas também em países que tiveram a escravização de africanos nas suas histórias coloniais.

Sua “negritude”, movimento dos anos 1930, ou o seu “negrismo”, corrente política e filosófica contemporânea ao autor, se revelaria na representação de uma África afetiva e pessoal, imaginada e recriada no desenho terno dos personagens e locais que refletiam essa matriz cultural, como “continente imaginado e recriado no país”. Esse “modo de estar” no mundo seria a fonte de suas ironias sobre o darwinismo social ou outras teorias raciais científicas daquele período, bem como o mote dos inúmeros personagens do cotidiano, majoritariamente, negros, ainda que o autor procurou dar conta de toda complexidade subjetiva dos egressos da escravidão. Além disso, era também o lugar da construção dos seus testemunhos sobre a cidade do Rio de Janeiro, sobre personagens políticos da Primeira República, bem como sobre alguns episódios marcantes do seu tempo: a Revolta da Armada (1893-1894), a Revolta da vacina (1904), a Reforma de Pereira Passos (1902-1906), as greves operárias (1917) e as celebrações do Centenário da Independência (1922).

O longo livro se divide em dezessete capítulos possuindo mais de seiscentas páginas. Os dois primeiros capítulos apresentam os dramas de seus pais, Amália Augusta e João Henriques. O terceiro, o quarto e o quinto vão da infância e adolescência promissora de Lima Barreto até as dores existências de sua entrada na vida adulta. O sexto capítulo aponta para tomada de consciência de sua condição social marcada pelos estigmas raciais. Do sétimo ao décimo sexto capítulos são apresentados os conflitos de Lima Barreto, propriamente como escritor, funcionário público, mulato, suburbano, anarquista, boêmio e alcoólatra. Nesse grande bloco da biografia se intercalam passagens sobre seus projetos literários, com destaque aos romances Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Clara dos Anjos (1922), não sem deixar de passar por Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Cemitério dos Vivos, além de suas crônicas, contos e diários. Suas posições políticas, como o ceticismo e a ironia sobre a política institucional republicana e sua aproximação ao anarquismo. Sua péssima relação com a bebida e as internações por alcoolismo. Sua biblioteca, a Limana. E suas polêmicas artísticas e literárias, principalmente contra os literatos da ABL e o Movimento Modernista. No último capítulo do livro, intitulado o Triste fim de Lima Barreto, a autora encaminha uma conclusão em que justifica sua representação melancólica de Lima Barreto como fruto de sua existência marcada pelos estigmas raciais, que teriam existido de maneira contraditória durante a Primeira República.

O tema da emancipação educacional pelo mérito como uma nova possibilidade de distinção social num mundo cada vez mais urbano é outro argumento fundamental na biografia, e estará presente desde a trajetória dos pais de Lima Barreto. Amália Augusta, nascida em 1862, neta da escrava doméstica dos Pereira de Carvalho, teria sido fruto do abuso de sua mãe, escrava alforriada, pelo patriarca da família. O cirurgião-mor do exército e diretor da Faculdade de Medicina resolve proteger sua filha “bastarda” e bancar seus estudos até ela tornar-se diretora de uma escola no Bairro das Laranjeiras. Por meio desse regime de dependência, Amália Augusta teria conseguido se emancipar como professora, numa abordagem que revela o entendimento da autora sobre os sistemas de mérito e favor como elementos contraditórios. Esforço pessoal e protecionismo, sem os quais “seria difícil escapar da fronteira da cor e da origem social” (p. 41), teriam dado condição de Amália Augusta diluir o peso de sua ancestralidade e galgar outra condição social. João Henriques teria tido uma trajetória semelhante. Filho da escrava Carlota Maria dos Anjos, uma das inúmeras referências da personagem Clara dos Anjos, também tem a violência contra as mulheres negras no seu nascimento. Algo que será, posteriormente, nuançado nos romances de Lima Barreto. O pai do escritor recebe, por sua vez, a ajuda de seu padrinho, o visconde de Ouro Preto, por meio da qual, não sem esforço pessoal, consegue se formar no Liceu de Artes e Ofícios e alcançar o cargo de tipógrafo da Imprensa Nacional após passar pelas oficinas de criação do jornal do visconde.

Segundo a autora, o casal Barreto se constitui por via de dois sistemas: “a ascensão burguesa com o protecionismo própria de sociedades estamentais” (p. 49), sendo o motivo da vulnerabilidade de ambos aos estigmas racistas criados pela ciência para justificar a manutenção de hierarquias sociais no novo mundo do trabalho livre. Nenhum dos dois, entretanto, consegue passar ilesos aos estigmas raciais. Amália Augusta contrai tuberculose e morre pela “doença dos pretos”. E João Henriques desenvolve a loucura tornando-se alvo das associações entre alcoolismo, alienação e degeneração racial. Lima Barreto, fruto dessa união, terá que lidar com questões semelhantes, o que se torna o mote tanto de sua melancolia quanto dos seus projetos literários. O autor nasce em 1881, ainda num momento de prosperidade de sua família. O seu local de nascimento, o Bairro das Laranjeiras, é a deixa para a autora descrever esse espaço da cidade por meio de uma antropologia histórica do bairro, a qual irá recorrer mais vezes ao analisar outros lugares e personagens que atravessaram a vida de Lima Barreto. O Bairro Laranjeiras é retratado como um velho arrabalde da região central que durante a Primeira Republica recebe um colorido de população. Os diferentes mundos sociais que conviviam nesse mesmo espaço, entretanto, não dão conta de alterar as hierarquias de uma sociedade aristocrática (p. 24).

Para Lilia Schwarcz, a literatura de Lima Barreto estica o mapa das narrativas sobre o Rio de Janeiro da Primeira República. Isso a faz elaborar desde perfis de ruas do centro, como a do Ouvidor, ou a Avenida Central, em que escritor desfilava como flâneur boêmio rivalizando com João do Rio, principalmente em suas críticas sobre a “modernização” da cidade. Até uma imagem da Ilha do Governador, onde João Henriques vai trabalhar depois de se demitir da Imprensa Nacional após a deposição do gabinete do visconde de Ouro Preto no golpe que instaura a república. A ilha parece ser a referência da paisagem do sítio de Policarpo Quaresma, além de abrigar as Colônias de Alienados utilizadas para recolher os mendigos e ociosos da cidade por meio de uma politica de tratamento da loucura baseada no sequestro e isolamento. O darwinismo social e a ideologia do progresso se acoplam, segundo a autora, numa noção da loucura como a perda da racionalidade para o trabalho constituindo um imaginário que recai de maneira mais pesada sobre os negros. Estes eram a maioria dos recolhidos nas colônias, fazendo do convívio de Lima Barreto com os internos da Ilha do Governador um grande aprendizado sobre cultura africana, suas diferentes etnias, além dos dramas da escravidão representados em sua literatura.

 Os subúrbios do Rio de Janeiro formados a partir das estações da Estrada de Ferro Central do Brasil também são objetos da biografia. São Cristóvão, Tijuca, Vila Isabel e Piedade, parcelados na década de 1870. Méier, Madureira, Engenho Novo e Inhaúma, loteados na década de 1890. São os bairros para onde a população pobre e imigrante vai depois de ser expulsa do centro, primeiro pelo fim da escravidão e, em seguida, pelas reformas de Pereira Passos. Para aí, também vai uma casta de funcionários públicos que diariamente compartilhavam o trajeto rumo ao centro da cidade com os diferentes matizes de trabalhadores. Nos vagões de 1ª ou 2ª classe, vai também Lima Barreto durante muitos anos de sua vida observando e construindo personagens, fazendo literatura em trânsito, depois de já como arrimo de família abandonar sua formação na Politécnica e ir morar na rua Boa Vista do subúrbio de Todos os Santos. Os subúrbios cariocas terão enorme carga simbólica na história do escritor que insistiu por meio de sua literatura em incluí-los na geografia imaginária da cidade. As múltiplas identidades dos bairros suburbanos, sempre vistos pelas elites como periferias homogêneas, irão aparecer em caleidoscópio na literatura de Lima Barreto.

Um dos problemas do livro, entretanto, é o de a autora ser muitas vezes digressiva. Embora suas pesquisas anteriores sobre a questão racial sejam cruciais para o seu enfoque na obra, a utilização de temas explorados em seu livro Brasil: uma biografia (Cia. das Letras, 2015) acaba confundindo em alguns momentos o seu projeto biográfico, se propriamente sobre Lima Barreto ou se sobre a história do Brasil no período. Assim, apesar de anunciar sua abordagem sobre o autor como um escritor de literatura negra, inclui longas passagens sobre temas, personagem e instituições da história do Brasil já consagradas pela historiografia. Alguns exemplos são os retratos históricos de Manuel Feliciano Pereira de Carvalho e da Faculdade de Medicina, do visconde de Ouro Preto, ou da Escola Politécnica e do Rio de Janeiro da belle époque. Mesmo passando por inúmeros historiadores do pós-abolição, ou pela historiografia da escravidão, a difícil tarefa de traçar trajetórias particulares dos integrantes dessa população acaba sendo feita poucas vezes em comparação aos retratos de figuras canônicas da Primeira República. Apenas são apresentadas as histórias de Amália Augusta, João Henriques e Manuel Cabinda como os personagens negros que, segundo a autora, foram fundamentais na vida e literatura do autor. Mas que já possuíam retratos de Francisco de Assis Barbosa ou do próprio Lima Barreto.

A construção do livro é feita por meio de vasta bibliografia sobre inúmeros temas: escravidão, teorias raciais, reformas urbanas, saúde pública, loucura, imprensa, anarquismo etc. O silêncio mais evidente, porém, talvez seja o outro lado do debate sobre as ideias fora do lugar identificado pela autora nos bovarismos de Lima Barreto e, principalmente, no seu entendimento sobre a ideologia do favor como o oposto ao mérito na acepção liberal. Dessa forma, não é vista a referência de Maria Sylvia de Carvalho Franco (Homens Livres na ordem escravocrata, 1969) e suas diferentes reflexões sobre as relações de dominação pessoal na sociedade brasileira. Nessa crítica, bastante cara as “sociologias do desenvolvimento”, não existiria no capitalismo tal qual existiu no Brasil uma incompatibilidade entre as relações de dependência mediadas pelo favor e o ideário liberal-burguês baseado no mérito. Para esta autora, ao contrário de incompatíveis, estes valores se justapunham, pois implicavam, a um só tempo, no reconhecimento do outro como pessoa e na sua coisificação. Uma crítica que contraria o argumento de Lilia Schwarcz sobre a coexistência de práticas arcaicas e modernas, contemporâneas e contraditórias na sociedade brasileira.

Esse antigo debate implica em diferentes entendimentos sobre a trajetória de sujeitos livres subalternos durante a modernização brasileira. Para Lilia Schwarcz, os seus personagens: Amália Augusta, João Henriques e Lima Barreto, estão sempre entre dois sistemas, ora do mérito, típico de sociedades liberais, ora do favor, característico de sociedades patrimoniais. A perda das relações de compadrio, por exemplo, entre João Henriques e o visconde de Ouro Preto torna-se a fonte de desestabilização tanto do pai de Lima Barreto quanto de sua formação incompleta na Politécnica, o que impede ambos de distinguirem-se pelo mérito e esforço pessoal. Para Maria Sylvia de Carvalho Franco, mérito e favor, compõe o mesmo sistema de laços frouxos de um capitalismo servil, não sendo práticas duais e dicotômicas, ou um fator de atraso civilizacional. A representação igualitária do mérito seria necessária à manutenção de hierarquias sociais, pois ela funciona de maneira articulada aos postulados sobre as desigualdades individuais de ordem psicológica, intelectual, biológica e moral, como por exemplo, o darwinismo social e a teoria dos estigmas raciais.

A absorção dessa crítica talvez atenuasse algumas representações sobre os fracassos e a melancolia de Lima Barreto. O abandono da Politécnica, sua insatisfação como suburbano, a mediocridade como funcionário público, as internações no Hospício Nacional e sua péssima relação com as mulheres e a bebida, mesmo que entendidos como episódios de personagens e projetos literários, são passagens abordadas como confissões sobre vida do escritor e retratadas no livro em cores tristes. Lima Barreto, apesar ter sido, segundo a autora, um dos poucos a ter se mantido cético aos conceitos que implicavam na justificação científica do racismo, acaba sendo desenhado como uma vítima das promessas de igualdade da Primeira República que ele mesmo havia denunciado como falsas. Tanto o autor, quanto os seus pais, Amália Augusta e João Henriques, acessam a via da emancipação educacional, mas sucumbem às teorias raciais daquele tempo. A construção desses retratos ambivalentes talvez transpareça, por outro lado, o próprio entendimento da autora sobre o processo de modernização brasileiro: “com avanços e recuos, ganhos e muitos sinais de decadência” (p. 187). Todavia, como fruto do olhar adquirido por Lilia Schwarcz ao longo de sua trajetória acadêmica desde suas pesquisas de tese até os seus livros biográficos ou de divulgação histórica, Lima Barreto: triste visionário é uma obra riquíssima pela abrangência bibliográfica, pelas inúmeras questões historiográficas abordadas e como cronologia e interpretação dos contextos de produção literária de Lima Barreto.

sobre o autor

Daniel Deminice é historiador (FFLCH USP, 2008), mestre (IAU-USP, 2015) e doutor (IFCH Unicamp, 2023). De 2012 a 2015 integrou o Grupo de Pesquisa em História da Cidade, Arquitetura e Paisagem (Urbis) e agora integra o CIEC – Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade.

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resenha do livro

Lima Barreto, triste visionário

Lima Barreto, triste visionário

Lilia Moritz Schwarcz

2017

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