Elvan Silva, arquiteto, professor e autor de diversas obras que analisam diferentes escalas e dimensões do fazer arquitetônico, define como objetivo principal do seu livro Uma introdução ao projeto arquitetônico, publicado pela primeira vez em 1984: “fornecer ao estudante de arquitetura um roteiro e um apoio para obtenção do embasamento teórico necessário ao posterior desenvolvimento das habilidades críticas e instrumentais necessárias ao desempenho da atividade do arquiteto” (p. 13).
O primeiro capítulo se estrutura com o objetivo de definir o projeto arquitetônico e seu papel a partir dos esquemas antropológicos e socioeconômicos. Essa é uma missão difícil, embora essencial para o objetivo geral da obra. A identificação dessa relação entre o desenho e as necessidades e relações pessoais e interpessoais permeia todo o livro. Os apontamentos, indissociáveis de reflexões críticas a diferentes maneiras de se pensar a arquitetura, acabam definindo um processo plural e humano, mas nem por isso menos racional, de se fazer e analisar arquitetura. A obra é dividida em duas grandes partes, cada qual com suas subdivisões: Definição de projeto arquitetônico e Morfologia do projeto arquitetônico. O texto é organizado de forma clara e direta, com textos concisos que buscam respostas bem definidas a questões complexas.
Estratificando historicamente e tecnologicamente a evolução dos processos construtivos num primeiro momento, o autor define quatro tipos de aspectos da produção da arquitetura: a) sociedade mais primitiva: a construção do abrigo é uma atribuição do próprio interessado; b) sociedade intermediária: há já o reconhecimento da necessidade da especialização e consequentemente da divisão social do trabalho; c) sociedade organizada: momento em que a produção do edifício exclui a participação direta do usuário, e requer participação de intermediários; d. sociedade complexa: edifícios de grande porte, a partir do envolvimento e sobreposição de usuários institucionais.
No primeiro tipo, defende Silva, o conceito de projeto é inaplicável. Projeto não é, portanto, uma etapa inevitável no processo de produção. Há, dessa forma, mais do que apenas apontar os caminhos metodológicos da arquitetura, questionar o próprio papel do projeto. Não para eliminá-lo, e sim, pelo contrário, identificar o lugar intelectual e social da nossa prática.
Projeto se assemelha, para Silva, à uma proposta de solução para problema específico do entorno humano. Projeto é instrumento de controle do arquiteto sobre o processo e o resultado. Mas, se por um lado o projeto é evitável – não apenas na “sociedade mais primitiva”, mas também na gigante parcela da cidade contemporânea que é informal – no que se baseiam as aspirações do arquiteto?
O arquiteto e a intenção na arquitetura
O autor reflete que para o arquiteto há dois programas distintos em cada projeto, muitas vezes opostos e contraditórios. O primeiro e evidente é o problema ao qual foi chamado a resolver. O segundo parte das suas próprias aspirações e natureza do seu desempenho como projetista. Há, já na introdução do livro, uma clara crítica de Silva à falta de investimento e tempo dedicado à discussão teórica do projeto, associando a prática à preferência pela realização pessoal, embora reconheça que a discussão pura pode cair eventualmente em armadilhas retóricas e ideológicas. Tomando consciência da predileção morfológica no estudo arquitetônico na sua contemporaneidade, Silva já havia alertado para as contribuições e limitações de metodologias propostas ao longo do século 20.
Com uma lógica que valoriza a construção a partir da análise constante de condicionantes, os “esquemas” citados no objetivo inicial e geradores da arquitetura em muito se assemelham à lógica proposta por Christopher Alexander (1) duas décadas antes. Na busca de uma racionalidade processual para além das questões formais, é inevitável a comparação dessa lógica à proposta modernista dominante em período anterior. O primeiro diagnóstico possível é o evidente: o processo projetual defendido por Christopher Alexander difere da lógica modernista corbusiana em vários aspectos.
Alexander propõe uma abordagem participativa, na qual a participação das comunidades e dos usuários finais é considerada essencial. Há, aqui, já indícios claros dos esquemas antropológicos e socioeconômicos de Silva. Alexander enfatiza a importância de compreender as necessidades, desejos e experiências das pessoas envolvidas no projeto arquitetônico. Sua visão é fundamentada na ideia de que um projeto bem-sucedido deve ser resultado de um diálogo constante entre os profissionais de arquitetura e os usuários.
Por outro lado, a lógica modernista corbusiana é caracterizada por uma abordagem mais racionalista e, porque não, autoritária. Le Corbusier (2) defendia a ideia de que o arquiteto é o único responsável por determinar as soluções adequadas para o projeto, com base em princípios universais e objetivos. Sua abordagem valorizava a funcionalidade, a estética pura e a busca por uma nova linguagem arquitetônica.
Assim, enquanto Alexander busca um processo de projeto inclusivo e participativo, a lógica corbusiana é mais autocrática e centrada no papel do arquiteto como autor da obra. Alexander propõe um método iterativo, no qual o projeto evolui por meio de feedback constante dos usuários, enquanto Le Corbusier defendia uma abordagem mais linear e rígida, na qual o projeto é concebido de forma mais estática e hierárquica. Silva reconhece, inclusive, a forma composta com que nós, arquitetos, acabamos projetando, de forma paradoxal, levando as duas propostas em consideração.
Ambas as abordagens possuem suas contribuições para a arquitetura, e é importante reconhecer que cada uma reflete uma perspectiva histórica e cultural específica. A abordagem de Alexander enfatiza a importância da contextualização e da inclusão das vozes dos usuários no processo de projeto, uma das tantas bandeiras pós-modernas, enquanto a lógica corbusiana ressalta a busca por uma linguagem arquitetônica universal e a aplicação de princípios racionalistas, numa das ideias centrais debaixo do grande guarda-chuvas que é o modernismo.
O processo de Alexander se utiliza da forma de esquemas, ao “desmontar” o problema em todas as suas condicionantes e associar diagramas e respostas simples a cada um deles, que depois vão se somando até chegar à forma final. Nessa relação problema-resposta, que Silva chama de requisito-aspecto formal, há cinco tipos de configuração de projeto: a) dois ou mais requisitos podem ser satisfeitos por um único aspecto formal; b) mesmo requisito satisfeito por mais de uma alternativa; c) determinado requisito é insatisfazível; d) a solução de um determinado requisito pode implicar impossibilidade de satisfação de outro; e) dois aspectos formais não são compatíveis.
Essa estrutura de pensamento joga luz numa dificuldade inerente à crítica arquitetônica, principalmente no contexto brasileiro de formação ainda fortemente guiada por currículos e discursos que descendem do modernismo. Reconhece-se ao longo do discurso de Silva que a estética é uma condicionante de projeto. Embora não apareça de forma explícita nem no discurso corbusiano, nem na estrutura de Alexander, é inevitável concluirmos que mesmo a forma resultante de ritmos, simetrias e proporções, é imposta pela intenção do arquiteto.
A partir dessa constatação, ganha ainda mais complexidade a crítica de Silva à dicotomia teoria-prática no processo projetual. A condição individual de satisfação do arquiteto na prática da sua profissão esconde, portanto, uma questão condicionante essencial. A condição de artisticidade é, para o autor, a possibilidade de escolhas entre possibilidades, mais do que um eventual capricho seu. Há racionalidade, desse modo, no estabelecimento de questões plásticas, pois o próprio cartesianismo e minimalismo defendido por uma das principais correntes do século 20 é, assim, uma escolha plástica. Essa crítica é construída na forma de constatação ao evidenciar os pontos do inevitável papel de uma série de intenções no projeto.
A partir desse entendimento, Silva estrutura dois níveis complementares de avaliação qualitativa do projeto: a) planos de significação da forma, a partir de adequação instrumental, racionalidade construtiva e resultado plástico, e; b) valores semânticos, a partir da análise da originalidade, simplicidade e modicidade da obra.
O projeto é o resultado final antes da forma construída. É, para Silva, o último passo da nossa práxis, que se dá a partir do crescendo de condicionantes e decisões: Do programa para os estudos iniciais, destes para o anteprojeto, e do anteprojeto até o projeto. Por mais irresistível que nos pareça simplificar o exercício do projeto em uma esteira linear de etapas bem delimitadas, tanto Alexander quanto Silva e outros pensadores contemporâneos nos alertam que essa linha é uma espiral. Passamos diversas vezes pelas análises, pelas condicionantes, com cada vez mais conhecimento delas e cada vez mais capacitados a resolvê-las.
Ao reconhecer a necessidade da iteração de Alexander, Silva aponta que o valor arquitetônico está na obra, e não no projeto. A análise da solução se dá apenas no pós-ocupação, e não no desenho. Para tanto, Silva define seis categorias de análise do projeto: necessidade, resolubilidade, otimização, viabilidade, grau de definição e comunicação. Essa constante iteração é um aspecto que define a prática do projeto como projetação, como reflexão-na-ação. A partir dessa construção lógica, Silva define o partido como o nome que se dá à consequência formal de uma série de determinantes – inclusive a intenção plástica do artista.
Considerações finais
Em conclusão, a obra Uma introdução ao projeto arquitetônico de Elvan Silva oferece uma abordagem abrangente e reflexiva sobre o processo projetual na arquitetura. Ao comparar as perspectivas de Christopher Alexander e da lógica modernista corbusiana, o autor nos leva a refletir sobre a importância da participação dos usuários, da contextualização e da estética na arquitetura.
Através da análise das contribuições e limitações de diferentes abordagens, Silva nos convida a repensar a dicotomia entre teoria e prática, reconhecendo a complexidade e a importância das intenções do arquiteto na concepção do projeto. Sua proposta de avaliação qualitativa do projeto e a ênfase na iteração e na reflexão-na-ação demonstram a busca por um processo projetual mais abrangente e significativo.
Dessa forma, Uma introdução ao projeto arquitetônico se destaca como uma obra relevante para estudantes e profissionais da arquitetura, oferecendo um embasamento teórico necessário para o desenvolvimento de habilidades críticas e instrumentais, ao mesmo tempo em que promove uma reflexão sobre o papel do arquiteto na sociedade contemporânea.
notas
1
ALEXANDER, Christopher. A Pattern Language: Towns, Buildings, Construction. Oxford University Press, 1977.
2
LE CORBUSIER. Towards a New Architecture. Dover Publications, 1927.
sobre o autor
Fernando dos Santos Calvetti é arquiteto e urbanista (FA UFRGS), mestre (Propur UFRGS) e doutor (FAU USP). Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Santa Catarina.