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reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
Esta resenha busca apresentar e situar o livro Arquitetura e escrita: relatos do ofício a partir do diálogo entre este conjunto de entrevistas e questões de fundo teórico-metodológico inerentes às práticas narrativas da história.

english
This review aims to present and contextualize the book Arquitetura e escrita: relatos do ofício through the dialogue between this set of interviews and the theoretical-methodological background inherent in the narrative practices of history.

español
Esta revisión tiene como objetivo presentar y contextualizar el libro a través del diálogo entre este conjunto de entrevistas y las cuestiones de fondo teórico-metodológico inherentes a las prácticas narrativas de la historia.historiográfica.

how to quote

NOVO, Leonardo Faggion. Entre prosopografia e mosaico. Um exercício crítico de interpretação e narração do campo. Resenhas Online, São Paulo, ano 23, n. 268.02, Vitruvius, abr. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/23.268/8982>.


Um compilado com 24 entrevistas tão diferentes quanto a lista de entrevistados. Como agrupar e dar sentido a um grupo tão heterogêneo quanto fundamental para a compreensão dos estudos sobre arquitetura realizados entre as últimas décadas do século 20 e as primeiras do século 21 no Brasil e no exterior? Esse foi o desafio do grupo capitaneado por José Lira e composto por mais seis pesquisadores ao publicarem Arquitetura e escrita: relatos do ofício pela editora Romano Guerra (2023). Só a atitude de elencar e publicar essas entrevistas já seria um enorme ganho historiográfico de situar autores, perspectivas, objetos e métodos. Mas o livro vai além e enfatiza as relações, bem como estabelece os nexos e fluxos que conformaram esse campo de estudos e reflexões. As entrevistas estão agrupadas em cinco eixos — prismas do estético, patrimônio como princípio, tecidos da história, cultura e materialidade, entre projetos e propósitos — que pretendem flexionar as práticas de investigação e narração da história da arquitetura.

As entrevistas podem ser lidas como cartografias intelectuais que borram os limites entre escolhas pessoais, subjetivas, e condições institucionais e políticas para apontar possibilidades de leitura de um campo ampliado. Além dos autores selecionados para a entrevista, que já conformam um universo plural, a cada resposta somos surpreendidos com novos nomes, relações e referências que expandem esse universo. Como uma urdidura, somos levados a percorrer filiações, débitos intelectuais, aberturas de possibilidades e caminhos que indicam como nenhum percurso é solitário, nenhum intelectual está a frente de seu tempo, mas compõe uma mesma trama, ainda que tecida por diferentes fios e movimentos. A história, mais do que a matéria prima para essa operação — ou seja, matéria inerte, manipulada, transformada — é o próprio movimento, capaz de, a uma só vez, aproximar e distanciar práticas, perspectivas e respostas para questões comuns. Os itinerários de vida e de pesquisa são narrados como aventuras ramificadas e múltiplas, cujos relatos não eliminam a contingência nem criam a ilusão de continuidade, mas assumem as fraturas inerentes a qualquer relato de si.

Esse aspecto dos relatos reunidos no livro nos remete a um debate próprio das biografias e autobiografias. Como já afirmou Adrián Gorelik (1), um dos entrevistados, o trabalho biográfico não se aproxima da operação de montar de um quebra-cabeça — no qual todas as peças se encaixam criando a ilusão de unidade e destino —, mas, antes, da composição de um mosaico quebrado, com peças dessemelhantes que nunca calçam sem fissuras. A imagem do mosaico nos ajuda a interpretar um dos objetivos perseguidos pela publicação. Evidentemente, as entrevistas reunidas no livro estão longe da pretensão de serem lidas como uma — ou várias — biografia(s). Apesar disso, ao recuperarem aspectos de sua própria história pessoal e profissional, os entrevistados parecem compartilhar de algumas dimensões do exercício de narrar a própria vida, ou mesmo narrar a trajetória desse campo de estudos.

Nesse sentido, o exercício, em certa medida, pode ser aproximado da noção de prosopografia, defendida por Ana Fernandes (2) para dar conta da dimensão coletiva e difusa da autoria de planos e projetos urbanos e para o campo do urbanismo. Fernandes, citada também em mais de uma entrevista, se apoia na prosopografia para elaborar uma crítica ao monoautorismo mobilizado para narrar a história do urbanismo a partir de um caráter individual e, sobretudo, excepcional, secundarizando a cadeia de cooperação inerente à construção de qualquer campo de estudos. A proposta de converter o autorismo a uma abordagem que privilegie a prosopografia assinala as potencialidades de não só recuperar aspectos e momentos importantes de um conjunto de determinadas trajetórias, mas situá-las em meio a uma coletividade, seus marcadores sociais, posicionamentos e enfrentamentos políticos. Em suma, a dar sentido a ações e movimentos que podem até partir do âmbito individual — como as condições, percursos e escolhas de formação acadêmica — mas, certamente, que não podem ser interpretados sem essa articulação com dinâmicas mais amplas, compartilhadas — como a experiência de estar na universidade nas décadas do regime ditatorial em países como o Brasil e a Argentina.

Ainda que não mobilizem essa noção, os organizadores afirmam, na introdução do livro, a tentativa de elaborar um relato coletivo de personagens que, apesar de bastante diferenciados, se articulam no tempo, no espaço e no calor da produção especializada das últimas décadas. Um conjunto variado de lugares de enunciação, heranças, apostas e inserções que demarcam a impossibilidade de continuar a narrar as relações entre Brasil, América Latina, Estados Unidos e Europa a partir de termos como importação ou cópia. Para além das entrevistas com importantes autores estrangeiros atuantes em instituições dos Estados Unidos — como Anthony Vidler, Gwendolyn Wright, Kennedy Frampton e Jean-Louis Cohen —, os relatos de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros demarcam como o campo no Brasil foi forjado a partir de uma intensa internacionalização. A cada resposta, é reforçada a perspectiva de que esses intelectuais não apenas observaram as importantes transformações e polêmicas desse campo de estudos — como os embates entre tradições modernas e tendências pós-modernas, novas possibilidades de leitura abertas por traduções e republicações de obras consideradas clássicas, ou mesmo diferentes sistemas de ensino da disciplina nos níveis de graduação e pós-graduação —, mas tomaram parte ativa na construção desse saber sobre a arquitetura e modificaram as possibilidades do fazer historiográfico em seus países, seja na Argentina — como demonstram Jorge Francisco Liernur, Ramón Gutiérrez e Gorelik —, seja o Brasil — como atestam as diferentes vozes que conformaram a estrutura institucional de pesquisa que hoje conhecemos —, ou, ainda, em trajetórias que escapam à rigidez de fronteiras nacionais — como é o caso de Fernando Luiz Lara. Os entrevistados, reiteradamente, demonstram a consciência historiográfica possibilitada pelo exercício constante de seu ofício: revisão de narrativas, confronto intelectual e autocrítica embasados por avaliações políticas estreitamente elaboradas em diálogo com seus tempos.

A opção pelo gênero dialogado da entrevista, por sua vez, se torna perfeitamente justificada por deixar ver o aspecto aberto, conjuntural, desviante e insidioso da própria memória no constante jogo de rebatimentos entre o eu e o outro. Dessa forma, somos apresentados a um complexo panorama de orientações sem, com isso, ter a pretensão de construir ou reforçar um panteão de nomes ou mesmo abarcar alguma totalidade ou síntese universal. Entre o premeditado e o casual, os organizadores defendem o potencial da obra de fomentar novos caminhos de escrita da arquitetura forjados na operação dialética de interpretar e entender diferentes vozes, visões e pontos de vista modulados por questões comuns. É o que Margareth Pereira, uma das entrevistadas, entende como a transubjetividade, ou seja, o esforço de tentar falar mais ou menos a mesma língua, para além das flexões e variações. Um esforço constante e fundamental de atravessamento de corpos e escritas, de objetivação de subjetividades e seus modos de construção para alcançar alguma comunicabilidade com o outro, perseguida ferozmente pelos organizadores da obra com sua publicação.

Se esse caráter se torna objetivo do livro, ele é reforçado pelo sensível ensaio fotográfico de Rubens Mano, artista multimeios conhecido por reforçar o diálogo e as correspondências entre o urbano, a cidade, o espaço e as imagens. Por meio das fotografias, somos apresentados a uma reflexão sobre o caráter fugidio do tempo, seus fluxos, sua suspensão e seus efeitos sobre a materialidade de arquiteturas capturadas por ângulos não óbvios e contrastes desconcertantes. O artista captura detalhes de construções, por vezes não identificados, como quem captura o exercício de interpretar o passado e seus vestígios.

Ao fim e ao cabo, pelo exercício dessa possível prosopografia de um campo de estudos, somos defrontados com um mosaico impregnado de história, no qual as peças apontam, simultaneamente, para todas as direções de um tecido múltiplo, com qualidades tão diversas quanto as possibilidades de aproximá-las. Essa rica rede de correspondências entre as diversas entrevistas pode ser relacionada à própria qualidade da dimensão histórica, impossível de ser limitada por mecanismos concertados e finitos, ou mesmo previsíveis. Longe de considerar um demérito, é justamente esse caráter do livro que indica como a historiografia é, em si, um empreendimento coletivo, situado temporalmente, ainda que dinâmico e necessariamente articulado a relações de força; ou seja, político. Como afirma Sylvia Ficher em uma das entrevistas, uma ação política que se manifesta na escolha de temas, no tipo de fontes e de literatura privilegiadas, no tratamento de conjunto do material selecionado em termos de forma e conteúdo.

Trinta anos antes da publicação do livro, no ano de 1994, o Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, organizou um seminário intitulado “O estudo da história na formação do arquiteto”. Organizado por cinco docentes do departamento — Benedito Lima de Toledo, Júlio Roberto Katinsky, María Cecília França Lourenço, Maria Irene Szmrecsanyi e Regina Meyer — e dois representantes discentes — Mariana Fix (então representante dos alunos de graduação, atualmente professora da FAU USP) e Mauro Claro (então representante dos alunos da pós-graduação, atualmente professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie — FAU Mackenzie), o seminário foi estruturado a partir de três eixos que indicam a permanência de questões recuperadas pelo livro publicado em 2023: arquitetura, sociedade e história; arquitetura e criação: o entendimento contemporâneo da arte; história do conhecimento da arquitetura. Os textos produzidos e proferidos por um numeroso corpo de pesquisadores e docentes foram publicados integralmente em um número especial da Revista Pós. Na apresentação do número, há um rápido, porém significativo, parágrafo escrito por Élide Monzeglio (então presidente da Comissão de Pós-Graduação e Vice-diretora da faculdade) em que ela situa alguns pressupostos e apreensões da história em suas relações com a arquitetura e que, em certo sentido, estão presentes em Arquitetura e escrita:

“O conhecimento da história marca aqueles acontecimentos que produziram ou transformaram o estado interno e externo da sociedade humana, dela representando importantes episódios. A arquitetura reflete essa produção e transformação, marcando episódios de criação espacial, de convivência humana e social, expressões da arte, da ciência, da técnica, que emanam de culturas e biografias de populações e são postas lado a lado para o ato universal do conhecimento do saber projetar, construir, habitar” (3).

Para além das décadas que os separam, a ênfase, em ambos os casos, parece estar colocada em uma concepção de história afastada das definições tradicionais de uma sequência ou série de episódios importantes que transformaram a sociedade humana, mas compreendida como um processo de rupturas e continuidades que se vale do acúmulo do conhecimento humano e coletivo sobre o próprio passado. A própria arquitetura, fato histórico, possui relação inerente a passagem desses episódios e transformações, de maneira a possibilitar as reflexões presentes nas entrevistas sobre produções, transformações e expressões de laços sociais por meio da expressão da arte, da ciência e da técnica. Ainda que advindas de culturas e contextos específicos, convergem para a construção do pensamento crítico e atualizado sobre o passado a partir de questões do presente.

notas

1
GORELIK, Adrián. Apresentação. In LIRA, José. Warchavchik: fraturas da vanguarda. São Paulo, Cosac Naify, 2011, pp. 21-23.

2
FERNANDES, Ana. Autorismo e prosopografia em urbanismo. Reflexões e empirias. In CHIQUITO, Elisângela de Almeida; VELLOSO, Rita; FARIA, Rodrigo (org.). Urbanismo e planejamento no Brasil: formação, práticas e instituições. 1ª edição .Belo Horizonte, Cosmópolis, 2021, v. 1, p. 115-138.

3
Anais do Seminário Nacional: O estudo da história na formação do arquiteto. Revista Pós, São Paulo, FAU USP/Fapesp, nº especial, out. 1994.

sobre o autor

Leonardo Faggion Novo é pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre Cidade (Ciec Unicamp).

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