Em 2021, Ricardo Rocha publicou Livros, leituras e bibliotecas: história da arquitetura e da construção luso-brasileira, um livro sobre outros livros que foram analisados em detalhe, particularmente, as anotações e marcas deixadas por seus antigos proprietários e leitores, em um registro que atende aos princípios de uma história da leitura. Assim, lendo nas margens aquelas palavras manuscritas como signos que acrescentam camadas de sentido ao original, estabeleceu um diálogo intertextual a partir do qual as obras examinadas saíram de sua condição primordial e única, para serem ampliadas em leituras múltiplas e entrelaçadas com outros textos. Os materiais de trabalho, os livros anotados” deram origem a um outro livro, que lhes deve e ao mesmo tempo os enriquece.
Nesta nova publicação, Rocha volta a ler nas margens, mas agora nas bordas da história. Numa busca fora das vias centrais, transita pelas orillas onde resgata histórias particulares que escapam ao cânone, ao mesmo tempo que interpelam suas estruturas. Deste modo, constrói fragmentos de uma outra história da modernidade brasileira, desde o início do século 20 até os grandes temas que irão encerrando seu ciclo de apogeu nos anos 1970, antes da irrupção do pós-modernismo. Com esta leitura da história, estabelece aqui uma proposta de ordem inversa à anterior.
Organizado em duas partes e cinco capítulos, o texto apresenta uma estrutura que se define por afinidades temáticas, sem recorrer a uma ordem cronológica rigorosa. Isto permite que os temas tratados se reúnam de diferentes maneiras, na primeira parte estabelecendo um formato coral, em que os atores se enlaçam entre si a partir de um conceito que perpassa todo o livro, mas que aqui se faz mais contundente: a de comunidade de sentido (noção que retoma de seu livro anterior, no qual elaborou seu desenvolvimento). Aí entram os debates sobre o ensino da arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes; as buscas de alguns jovens no estrangeiro e a sua relação com a vanguarda internacional, bem como o lugar das mulheres nas publicações ou no ensino de arquitetura em épocas precoces, tópicos analisados através de casos emblemáticos.
A segunda parte se ocupa de duas trajetórias particulares, que se referem a deslocamentos geográficos e culturais: do Sul para o Norte e do Norte para o Sul, traçando também uma linha que atravessa não só os dois hemisférios como também os extremos temporais do ciclo da modernidade no século passado, desde a recuperação das arquiteturas regionais e sua tradição colonial como alternativa ao academicismo das primeiras décadas, até as megaestruturas, os sistemas modulares, entre outras questões que ocuparam os arquitetos nas décadas de 1960–1970, mobilizados por sua vez por temas sociais e políticos. Nesses casos, o conceito de “comunidade de sentido” opera em um sentido diferente daquele utilizado na primeira parte: o estranhamento produzido ao acoplar-se a culturas estrangeiras por decisão própria, necessariamente conduziu os referidos arquitetos a produzirem um esforço de interpretação, adaptação e recriação de seus saberes para integrá-los de forma criativa e produtiva em realidades contrastantes e divergentes de suas experiências anteriores, ou seja, tiveram que ser incorporados a comunidades de sentido pré-existentes.
Em seu percurso, o texto de Ricardo Rocha põe em jogo pares de conceitos como regional/ universal; Norte/Sul; Leste/Oeste; Sul/Sul; metrópole/província; arquitetura/clima; tradição/vanguarda; entre outras, revelando tensões e relações culturais e geográficas que são tratadas a partir de situações periféricas — ou pelo menos não centrais — e elaboradas a partir de enfoques originais.
De certo modo, este novo aporte estabelece uma linha de continuidade com livros, leituras e bibliotecas, sem prolongá-la ou inscrever-se no mesmo registro. Ambos os livros se complementam e, entre um e outro, contribuem para a compreensão de boa parte da cultura arquitetônica no Brasil. Não mais a partir de uma perspectiva canônica como desde os contrafortes que permitem um olhar fora dos lugares-comuns, introduz questões que, não por não terem sido tratadas anteriormente, carecem de pertinência. Pelo contrário, essas explorações que escavam as dobras das margens permitem-nos ampliar e aprofundar o território da história e fazer-nos ver quão densa e inesgotável se revela a sua composição geológica.
nota
NE — Este texto foi publicado originalmente como prefácio no livro Arquitetura brasileira do século 20: ensaios para uma história outra”, de Ricardo de Souza Rocha (São Paulo, Annablume, 2023, p. 11–13).