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português
Resenha de Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas, de Guilherme Wisnik. A obra traça um panorama da experiência contemporânea a partir da junção de três instâncias: arquitetura, arte e tecnologia.

english
Review of Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas, by Guilherme Wisnik. The work outlines a panorama of contemporary experience from the junction of three elements: architecture, art and technology.

español
Reseña del libro Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas, de Guilherme Wisnik. La obra traza un panorama de la experiencia contemporánea a partir de la unión de tres instancias: arquitectura, arte y tecnología.

how to quote

FACURY, João Pedro Pujoni. Desbravando o nevoeiro. Resenhas Online, São Paulo, ano 23, n. 271.05, Vitruvius, jul. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/23.271/8988>.


A elaboração de um panorama explicativo do que é a experiência contemporânea, por meio da construção de uma teia de relações entre as esferas da arte, da tecnologia e da arquitetura é, sem dúvida, uma tarefa complexa. Wisnik se propõe esse desafio por meio de um extenso mapeamento dos principais acontecimentos históricos desde as décadas de 1920-1930 até os dias atuais.

O autor elabora uma série de relações entre os grandes marcos históricos do cenário mundial, como as Guerras Mundiais, a Guerra Fria, a Queda do Muro de Berlim e os atentados de 11 de setembro, com as manifestações artísticas, arquitetônicas e tecnológicas que afloraram nesses períodos. Para suas análises, Wisnik recorre, também, a diversos filósofos e intelectuais, que ajudam a embasar seu pensamento, até culminar em uma espécie de diagnóstico sobre a experiência contemporânea atual.

A metáfora do nevoeiro é utilizada como principal elemento simbólico e imagético de seu argumento. Guilherme Wisnik defende que estamos inseridos em uma era nebulosa, onde, paradoxalmente, o excesso de informação e a hipervisibilidade da cultura contemporânea auxiliam na construção de uma era de embotamento, uma atmosfera pesada que em nada se identifica com o ideário da luz iluminista preconizado durante a era moderna. Pelo contrário, estaríamos imersos em uma névoa densa, uma atmosfera inebriante, marcada por violência e uma constante sensação de perigo, que inevitavelmente reflete na maneira que construímos, habitamos, socializamos e produzimos arte e tecnologia.

O primeiro capítulo é dedicado à análise do que seriam as principais características da arquitetura contemporânea. Para o autor, a principal delas é o efeito de nublamento observado em grande parte dos principais edifícios contemporâneos. A partir do deslocamento da ênfase da estrutura para a pele dos edifícios, a arquitetura estaria focada na construção de edifícios que se comportam como caixas de luz, com efeitos ambíguos mediados pelo invólucro da fachada. Por exemplo, os invólucros constituídos de peles de plástico com certa opacidade, resinas, vidros translúcidos dotados de películas com efeitos jateado, serigrafado ou leitoso, são os responsáveis pela intermediação do objeto construído com o contexto externo.

Em contraponto à produção moderna, onde a ênfase se encontrava na construção de uma linguagem estrutural clara, os edifícios contemporâneos já não possuem um compromisso com a transparência. Na contemporaneidade, há um deslocamento em direção à valorização da opacidade, como uma possibilidade de resgate do reencantamento da experiência sensitiva, que encontra na relação visual ambígua do nublamento da pele dos edifícios valores como sensualidade, mistério e curiosidade.

No segundo capítulo, Wisnik elabora uma associação simbólica do nublamento com os conceitos de "nuvem financeira" e de "nuvens de informação" da internet (os repositórios virtuais de dados das empresas de tecnologia como o Google e a Apple). Desse modo, o autor inicia o argumento de que as perdas de nitidez e de transparência, abordadas no primeiro capítulo no âmbito da arquitetura, manifestam-se também na sociedade como um todo, no modo de viver e de se relacionar das pessoas.

O limite entre o real e o virtual se mostra cada vez mais rarefeito, em um processo de “ciborguização” do ser humano. Nos encontramos em um contexto complexo de extrema instabilidade, onde as ameaças e os inimigos não são mais tão claros e identificáveis como no passado. Atualmente, estamos fragilizados, susceptíveis às crises financeiras, às catástrofes climáticas, aos inesperados atentados terroristas, às pandemias e aos nossos próprios sintomas, com os quais tentamos lidar tomando antidepressivos e ansiolíticos, substâncias cada vez mais precocemente e largamente consumidas pela população. A solidez e concretude do mundo analógico do século 20 cedeu espaço para a virtualidade de uma contemporaneidade globalizada, hiperconectada por meio de nuvens digitais.

Enquanto no segundo capítulo é demonstrado como o nublamento identificado na arquitetura contemporânea se manifesta também na sociedade de forma geral, no terceiro capítulo o autor explora uma faceta oposta da era contemporânea: a nitidez provocada pelo excesso de informação que é constantemente produzida e trocada pelas pessoas. Nos encontramos em uma era da hipervisibilidade, onde compartilhamos excessivamente fotos, vídeos e mensagens, porém de forma cada vez mais efêmera e imediatista. Uma produção de informação que é quase imediatamente descartada, com efeitos superficiais e provisórios.

No capítulo quatro, Wisnik inicia uma análise de cunho histórico, por meio da abordagem do contexto de Berlim após a dissolução da União Soviética, pós 1989. O processo de reconstrução da Potsdamer Platz, ponto central da capital alemã, é identificado como um marco importante. A praça significou um símbolo de epicentro urbano de uma nova forma de cidade que se expandia para além de um contexto regional ou nacional. A partir da queda do muro de Berlim e com o capitalismo global como o grande vencedor da Guerra Fria, a Postsdamer Platz traduzia uma urbanidade que deveria simbolizar, nas palavras do autor, um “centro internacional de comunicação, mídia e serviços".

A arquitetura ostensiva dos novos arranha-céus da praça, desenhados pelos principais star-architects da época, foi uma maneira de veicular globalmente o discurso de um vencedor — o capitalismo — sobre um inimigo abatido — o comunismo —, em um processo de apagamento de todas as camadas de história que ali se desenrolaram nas décadas passadas. No discurso triunfante do capitalismo, não haveria espaço para nenhuma memória das vivências comunistas do passado. Era necessário criar uma “unidade imaculada” que contribuísse para a construção de uma imagem da sociedade de consumo que a partir dali deveria ser reproduzida e veiculada para todo o mundo. Para Wisnik, a partir de 1989, portanto, é inaugurada uma época de achatamentos e falsas simplificações, onde uma elite capitalista triunfante veicula globalmente um discurso reducionista, de uma única verdade vencedora: a do consumo de massa e do capitalismo financeiro.

No quinto capítulo, a análise cronológica continua seu desenvolvimento e chega aos atentados de 11 de setembro de 2001. Segundo o autor, os grandes momentos históricos da Era Contemporânea são essencialmente rituais marcados por forte violência e destruição. Como exemplos desses “rituais iniciáticos”, são citados eventos importantes como a demolição do conjunto habitacional de Pruitt-Igoe, nos Estados Unidos, em 1972, a demolição do Muro de Berlim, em 1988, e a destruição das Torres Gêmeas, em Nova York.

Em uma sequência ainda cronológica, o sexto capítulo é dedicado ao mundo contemporâneo pós anos 2000, marcado pelo protagonismo dos shoppings centers e lojas de departamento da indústria do consumo. Wisnik demonstra como caminhamos para a construção de imensos equipamentos urbanos capazes de simular ambientações em um mundo inteiramente artificial, representado pelo universo dos centros comerciais. Nesses locais, somos induzidos a perder completamente a noção do tempo. A arquitetura desses espaços nos afasta do contato com o ambiente externo, em uma organização propositadamente labiríntica, projetada para nos perdermos em seus corredores, enquanto somos intensamente bombardeados pelas ofuscantes e vistosas vitrines das lojas.

O mundo pós-moderno seria marcado, então, por edificações focadas em experiências imersivas, onde a construção de atmosferas e a ativação dos sentidos são importantes prerrogativas. O objetivo dessa arquitetura seria o de construir imersões alienantes, que contribuem para a redução da reflexão crítica do sujeito frente ao contexto de dominação capitalista.

O capítulo sete dedica-se a uma espécie de resumo das análises elaboradas desde o capítulo quatro. A violência é colocada como elemento comum dos principais fatos históricos destacados até então. Ela seria um dos principais ingredientes da metáfora do nevoeiro defendido pelo autor. A reforma de Paris, encabeçada por Haussman e realizada a partir de 1853, é referenciada como o marco zero dessa modernidade violenta. Wisnik argumenta que a violência passa a ser naturalizada e assimilada pela sociedade a partir desse momento. A arquitetura moderna de Le Corbusier, com sua tábula rasa que nega e destrói todo o contexto e suas pré-existências, seria uma continuidade desse processo. As duas Grandes Guerras mundiais, a guerra do Vietnã, e os já citados eventos da queda do Muro de Berlim e dos atentados de 11 de setembro seriam outros exemplos da violência impregnada na modernidade. Atualmente, um dos grandes exemplos contemporâneos de perpetuação dessa violência é a hiperurbanização chinesa. A construção de megacidades no país, muitas vezes fantasmas, destaca-se pelo uso de trabalho análogo à escravidão em um regime ditatorial pautado por intensa repressão governamental.

Wisnik conclui o capítulo com a afirmação de que a violência naturalizada, intrincada em todos os principais eventos do século 20 e 21, seria a grande fonte de ofuscamento do nevoeiro em que estamos imersos. A violência hipernormalizada da sociedade contemporânea contribui para o grau de nublamento em que estamos submetidos. Porém, ao mesmo tempo, o autor levanta o seguinte questionamento: seria essa situação o prenúncio de algo novo? O que se desvelaria a partir da dissipação desse denso nevoeiro, repleto de tanta tragédia?

Por fim, o último capítulo do livro propõe reflexões sobre possibilidades de superação do nevoeiro contemporâneo. Uma resposta possível seria buscar um campo ampliado da experiência, a partir de uma nova compreensão de política embasada, por exemplo, no pensamento de Bruno Latour, filósofo francês. Latour defende uma reaproximação entre natureza e cultura, entre ciência e política. Segundo ele, a cultura ocidental ocasionou de forma equivocada uma separação entre sujeito e objeto, entre coisas e pessoas. Essa cisão forçada precisa ser superada, uma vez que a ação humana alcançou tal poder que consegue agora intervir de modo definitivo nos rumos do planeta e da natureza. Sendo assim, a reaproximação entre essas esferas é necessária, com o objetivo de resgatar a essência do conceito de república: res (coisa) + pública (público).

Como um exemplo de aplicação prática que dialoga com o pensamento de Latour, Wisnik ressalta o trabalho de Olafur Eliasson, um dos principais expoentes da arte contemporânea. O artista é responsável por obras imersivas marcadas pelas experiências sensoriais que superam a dicotomia entre ilusão e realidade. Essas esferas são interdependentes e responsáveis por criarem a experiência estética nas obras do artista. Sendo assim, para Wisnik, Olafur consegue apontar uma saída possível para lidar com o nevoeiro: é necessário encará-lo de dentro dele, não há uma resposta externa. Representação e realidade, atualmente, caminham juntas.

No campo da arquitetura, o pavilhão Blur Building, criado por Diller e Scofidio em 2002, seria um outro exemplo de construção de experiência a partir da ideia de atmosfera que poderia dar pistas de superação do nevoeiro. O prédio, que é constituído principalmente pela névoa que ele mesmo produz, seria uma resposta simbólica: não somos capazes de fugir do nevoeiro, uma vez que nele estamos imersos. É necessário conseguir extrair do próprio nevoeiro as respostas para sua eventual superação.

Como possibilidades de oposição ao regime de hipervisibilidade a que estamos submetidos, o autor defende as poéticas do embaçamento e do retardamento, de obras arquitetônicas como do Sanaa, o pavilhão de Diller e Scofidio e os trabalhos artísticos de Olafur Eliasson. Pois, conforme afirmado por Wisnik, por “estarmos cegos de tanto ver”, é necessário o afastamento em relação às luzes de nosso tempo, que nos embaçam a visão, para, então, conseguir “ver a tragédia latente e abafada de nosso tempo”.

Guilherme Wisnik tenta fazer um corajoso panorama da situação contemporânea. A construção de seu argumento resulta na ideia de que estamos imersos em um nevoeiro pautado pela violência, pelo medo e pelo embotamento. Descrever em apenas um livro o que é a experiência contemporânea, com suas múltiplas facetas e complexidades é, por si só, uma tarefa difícil.

Com relação à arquitetura, o efeito de “nublamento” a partir do uso de invólucros translúcidos e difusos é tido como ponto de partida da argumentação do livro e colabora para a metáfora do nevoeiro. Uma ponderação importante é até que ponto o “nublamento” na arquitetura, apesar de ser uma tendência estética muito relevante, pode ser identificado de fato como a corrente predominante. Elementos que colaboram para essa reflexão é o fato de os últimos três prêmios Pritzker, por exemplo, serem dados a arquitetos que têm atuações que não se aproximam da poética do nublamento. A tectônica e a materialidade presentes na produção de David Chipperfield (Pritzker 2023), as cores e a expressividade da obra de Francis Kéré (Pritzker 2022) e a poética da economia nos prédios de Lacaton & Vassal (Pritzker 2021) apontam para outros direcionamentos arquitetônicos. Naturalmente, a produção arquitetônica em nível global é difusa, múltipla e muito complexa.

Outro ponto de reflexão possível é uma desejável abordagem mais aprofundada de questões locais tipicamente brasileiras ou de países do Sul Global. Fatores como a imensa desigualdade social, o extermínio dos povos originários e o desmatamento que a cada ano bate recordes e nos coloca rumo ao colapso ambiental a nível planetário merecem ser abordados como pontos importantes do panorama contemporâneo regional. Talvez, o nevoeiro brasileiro não seja tão causado pelas nuvens de dados e de capital, mas principalmente pelos inúmeros focos de queimada em biomas importantes como o Cerrado e a Floresta Amazônica. Nesse contexto, cabe ponderar até que ponto os fenômenos descritos no livro, como o da Potsdamer Platz e o hiperespaço dos grandes shoppings centers norte-americanos, ressoam e impactam em países como o Brasil.

Podemos pensar que o nevoeiro metaforizado pelo autor é composto, na realidade, por muitas nuvens distintas, mas correlacionadas, conformadas por problemáticas próprias e extremamente complexas. O livro de Wisnik contribui para iniciarmos um necessário enfrentamento desse nublamento contemporâneo, que precisa ainda ser desbravado por muitos outros trilhamentos.

sobre o autor

João Pedro Pujoni Facury é arquiteto e urbanista (UFMG, 2020) e foi bolsista Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica, da EA UFMG). É integrante do Coletivo Levante, grupo de arquitetos que atua no Aglomerado da Serra, por meio da elaboração e implementação de projetos de arquitetura e urbanismo para a comunidade local.

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