Como bem sei, de ver e de ouvir falar, o senhor é o mais importante arquiteto do Brasil, um dos mais importantes do mundo. Mesmo assim, sempre disse, sabiamente, que não é arquitetura a coisa mais importante que existe, mas a luta para que nosso povo sofrido tenha chance de um dia usufruir desse mundo vasto mundo.
Sua arquitetura, voltada para a construção de uma sociedade justa e socialmente correta, é o resultado de um pensamento que privilegia a beleza, a conquista técnica. E os anos e anos de labuta no Brasil, no exílio e novamente no Brasil, mostram a importância da sua presença diária aí nesse predinho gostoso de Copacabana, cheio de curvas arquitetônicas e com vista para as curvas cariocas – que segundo suas palavras sempre foram fonte de inspiração, a vida toda.
O mesmo se pode dizer de sua onipresença: sem viajar de avião, o senhor está por todo o Brasil: nas inúmeras obras, nas eventuais e longas viagens de carro, e até na moderníssima via tecnológica da videoconferência – como foi o caso do título honoris causa recebido virtualmente pelo senhor da Universidade da Paraíba, uns dois anos atrás.
Os vários honoris, outros tantos au concours e notórios saberes, todos merecidos, creio eu, são uma honra, claro, mas têm trazido alguns males à classe que o senhor sempre defendeu com tanta galhardia.
Vejamos um talvez insignificante exemplo disso: em fins da década de 80, um jovem arquiteto fez um projetinho para auditório de 200 lugares, em Rio Verde, GO; um dia foi bruscamente interrompido em seu trabalho por uma placa fincada no terreno do futuro teatrinho que, em letras garrafais, anunciava seu forte nome como o autor da peça em andamento (a placa ficou lá uns 10 anos, enferrujou, e nem o seu projeto nem o projetinho do jovem arquiteto vingaram).
Outro: em Uberlândia, MG, projeto de sua autoria, feito às pressas (o Cassino também foi feito assim e ficou lindo!), substituiu o de um arquiteto da cidade (resultado de concurso, com verbas garantidas), só porque os políticos locais queriam colocar o Triângulo Mineiro no circuito nacional da arquitetura que leva sua grife (mas só ficou na intenção: no local, hoje, há apenas ruínas de uma obra eleitoreira).
Existem outros exemplos. E seja pelo que for – sua inapetência por deslocamentos e/ou o ágil deslocamento de seus representantes –, o fato é que seu traço tem atropelado as manifestações culturais de caráter local, como se não existisse arquitetura fora do eixo Rio/São Paulo.
Outro dia mesmo me hospedei no Grande Hotel de Ouro Preto, de sua autoria. Com perdão das exclamações, mas que beleza!, que vista!, que inserção fantástica!, e que contraponto riquíssimo com a Casa dos Contos! Lembrei-me na hora de JK, dos seus projetos em Diamantina e da incrível Pampulha: a Igrejinha de São Francisco, a Casa do Baile, o Iate, o Cassino –obras que mudam a forma de ver arquitetura no Brasil e no mundo. E o que dizer do Bemge, do Colégio Estadual, do edifício Tancredo Neves, da Biblioteca e a nossa (sua) maior utopia mineira, o Conjunto JK? Isso me fez também lembrar: nunca uma cidade foi tão importante para as suas obras. Nunca um político teve tanta visão como nosso incrível Juscelino, que pavimentou para o senhor um caminho ímpar, incontestável no que tange à arquitetura como invenção e cultura.
Mas incomoda o fenômeno que de uns tempos para cá vem se repetindo em todo o país: prefeitos, governadores, secretários de cultura e até amigos se utilizam de seu nome para aparecer na mídia nacional e, pior, para avalizar suas (deles) ações e seus (deles) governos – muitas vezes medíocres ou medrosos ou simplesmente indefensáveis.
São teatros e museus para tudo quanto é lado, monumentos – e até coretos. São tantas e tantas coisas que sua ausência – ou a presença de seus representantes – não consegue acompanhar. Mais ainda: é uma prática tão intensa que, me parece, é a responsável pelo sumiço dos concursos, all concursos, ficando nós, reles e mortais arquitetos, sem conseguir nem fazer um auditoriozinho em rioverdinhonenhum.
Aqui em BH, cidade que tanto ajudou o prestígio que o senhor hoje desfruta, desde aquele grande começo profissional, nossa prefeiturinha e nossa secretariazinha de cultura estão mais uma vez convocando sua presença, notoriamente sabendo: a primeira, para fazer um terminal de ônibus urbano na Pampulha (projeto que já foi motivo de concurso, ganho por arquiteto local, desenvolvido e pago); a segunda, para criar um anexo para o Museu da Pampulha (para o qual havíamos sugerido um concurso nacional ou internacional, com edital contendo sugestões do senhor para que o seu projeto se relacionasse bem com este vizinho); e, finalmente, o governinho quer mudar a Praça da Liberdade, e o que acontece? Convoca novamente o senhor para fazer o seu futuro centrinho administrativo.
O senhor está sem serviço? A gente compreende, o Brasil inteiro está meio assim, sem serviço. Mas o senhor não é comunista, daqueles que topam dividir? Então faz isso! Fica quieto aí no Rio com essa vista gostosa das cariocas gostosas e deixa a gente quieto por aqui. O que o senhor fez por aqui está bom, está ótimo. Mas chega.
Curta a vida, vá à praia, fume aquele charuto, ou cigarrilha fideliana com tranqüilidade, curta o Rio que continua lindo e deixe a gente começar finalmente nossa vidinha, mesmo que tão tarde e tantas vezes interrompida (E tem mais. Se o nosso governador quer realmente um projeto, o senhor nem precisa sair da cidade: ele vive por aí).
Grande abraço do colega que sempre o admirou, mas...
notas
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Texto originalmente publicado no Cometa Itabirano, n. 280, setembro de 2003
sobre o autor
Sylvio Emrich de Podestá, engenheiro arquiteto pela escola de arquitetura da UFMG, foi editor das revistas Vão Livre e Pampulha. Atualmente é sócio-presidente da AP Cultural, editora especializada em publicações de arquitetura, design e interiores, e sócio-diretor do escritório Sylvio E. de Podestá Arquitetura Associados Ltda.