Para quem conseguiu nunca cantarolar Tom Jobim ao sobrevoar o Rio de Janeiro vai ser mais difícil se render aos encantos desta casa que o arquiteto Oscar Niemeyer projetou e construiu para morar, um marco da arquitetura moderna. Mas vale a pena tentar. Vale a pena tentar descobrir a força da natureza e da paisagem do Rio de Janeiro, bem como seu papel, fundamental, no processo de transformação da cidade e de construção de uma cultura carioca, muito brasileira. O deleite do olhar estrangeiro, a euforia por se considerar finalmente merecedor do paraíso recuperado nos trópicos – exuberante de perfumes, cores e tentações – perpassa relatos, povoa o inconsciente, manifesta-se como herança em cada gesto criativo em direção à cidade. E a Casa das Canoas é uma de suas melhores traduções.
“Minha preocupação foi projetar minha residência com inteira liberdade, adaptando-a aos desníveis do terreno, sem o modificar, fazendo-a em curvas, de forma a permitir que a vegetação nela penetrasse, sem a separação ostensiva da linha reta. E criei para as salas de estar uma zona em sombra, para que a parte envidraçada evitasse cortinas e a casa ficasse transparente como preferia”, resume o arquiteto. Projetada no início da década de 50, e concluída em 1953, esta casa reúne assim os elementos que estavam no cerne dos debates sobre a arquitetura moderna na época. Debates que lembram a importância que o Brasil já teve no cenário da renovação da arquitetura mundial.
A Casa das Canoas é um marco em um dos trechos do longo caminho profissional trilhado por Oscar Niemeyer – aquele que se inicia no conjunto de Pampulha em Belo Horizonte (1940/42), passa pelo Parque do Ibirapuera em São Paulo (1951/54), culminando em Brasília (1957/61) –, trecho este definido pelo arquiteto como uma caminhada em busca da curva livre e criadora, de afirmação da plasticidade potencializada pelo concreto armado e de pesquisas estruturais, Menção obrigatória,anuncia o desfecho da nova capital, com a preponderância do lirismo e da liberdade plástica; simbolicamente, Niemeyer mudou-se desta casa para Brasília em 1959, para viver e trabalhar no canteiro de obras.
A laje branca do pavimento principal retoma as coberturas dos edifícios da Pampulha e a marquise do Ibirapuera, em formas livres e sinuosas flutuando sobre esbeltos pilotis, entrelaçando-se em projeção com o contorno livre do espelho d’água e da piscina. Suas curvas são organicamente submissas ao terreno, acomodando-se entre a vegetação e as pedras, contornando obstáculos naturais, a ponto de confundir o observador sobre o que está dentro e o que está fora, sobre rupturas e continuidade. Se para Niemeyer “arquitetura é invenção”, nem por isso descuidou da organização dos espaços de convivência cotidiano da família, acomodados no pavimento inferior. São três quartos, banheiros e saleta organizados de maneira a funcionar bem e propiciar o convívio.
A Casa das Canoas não poderia deixar de provocar a crítica internacional no momento da sua conclusão. O suíço Max-Bill afirmou que “a forma livre não se justifica. Só em situações excepcionais da arquitetura. A casa de Niemeyer é um mero capricho puramente decorativo e não é obra válida ou digna de qualquer interesse”. Para o arquiteto alemão Walter Gropius tratava-se de “uma casa muito bonita mas que não era multiplicável”. E para o critico italiano Ernest Rogers, a retomada das formas da natureza “orgíaca” local era uma “confusão romântica”, admitindo porém a liberdade do criador.
Niemeyer contra argumentou que o concreto armado reclamava coisa diferente do predomínio dos ângulos retos, da rigidez estrutural, da ditadura da função sobre a forma, entre outros princípios do racionalismo que para ele constituíam empecilho à liberdade plástica. E Lucio Costa respondeu pela imprensa diretamente ao crítico suíço: “trata no caso de barroquismo de legítima e pura filiação nativa que bem mostra não descendermos de relojoeiros, mas de fabricantes de igrejas barrocas”. E continuou, apelando a argumentos, tão atuais, a favor da identidade local contra a uniformidade globalizada: “no mundo mecanizado de hoje é desejável que tais diferenças venham à tona a fim de neutralizar um pouco a generalizada uniformização”. Não tivesse a arquitetura moderna carioca dos anos 40 e todo o movimento que dela derivou, um dos grandes momentos da cultura brasileira, sido forjada pelo gênio destes dois arquitetos que souberam ler Le Corbusier “com devoção”, ler a cultura e a paisagem brasileiras com paixão, para criar com liberdade.
Protegida por tombamentos estadual e municipal, a Casa das Canoas é hoje um espaço cultural mantido pela Fundação Oscar Niemeyer, braços abertos para quem quiser conferir sua sinuosa beleza polêmica. A Fundação procura manter-se como guardiã de acervos de arquitetura moderna em geral, do arquiteto em especial, desenvolvendo trabalhos de inventário, documentação e exposição destes acervos. Foi Le Corbusier quem disse: “Oscar, você é generoso”. Para além do trabalho de uma vida quase centenária, dispor da sua memória e tentar dela fazer elemento de construção de um futuro mais justo e mais belo é gesto de extrema generosidade. Carecendo de apoio e reconhecimento.
notas
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Com o título "Naturalmente moderna", o presente artigo foi publicado originalmente na revista Casa Vogue, edição 184 / 2000, p. 150-156 (nº especial "Visões do Rio de Janeiro"). Agradecemos às editoras Ana Montenegro e Clarissa Schneider, e ao fotógrafo Tuca Reinés por autorizarem a reprodução de texto e fotos em Arquitextos.
sobre o autor
Cecília Rodrigues dos Santos é arquiteta, doutoranda, professora da Faculdade de Arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultora para a área de patrimônio cultural, crítica de arquitetura e co-autora de "Le Corbusier e o Brasil"