"A cidade mostra a conjunção intrínseca entre a forma e o conjunto de sua história. Quando formas que guardam a memória da história da cidade desaparecem, é a cidade que desaparece"
Jean Paul-Doole, Longe do lugar, fora do tempo
Na semana passada, à surdina, como infelizmente acontece quando ocorre a destruição dos exemplares de nosso patrimônio nacional, foram demolidos os galpões situados à rua Borges de Figueiredo.
A empresa , responsável pela lesão irreversível na memória paulistana, visa criar “torres residenciais” no local, desconsiderando o impacto sobre o bairro e suas ruas. Mais grave ainda, desconsidera a possibilidade real de contaminação do solo naquele local.
Breve histórico
Como se sabe, em fins do século XIX a cidade de São Paulo viveu uma mudança nas relações de seu espaço urbano, com a implementação das ferrovias nas grandes áreas livres de urbanização percorrendo as várzeas dos principais rios - Tietê, Pinheiros e Tamanduateí. As iniciativas industriais de maior vulto na cidade, em fins do século XIX e princípio do XX, promoveram a demarcação de territórios precisos, conferindo a determinados bairros paisagens e desenhos característicos da nova atividade.
Nessa primeira etapa as fábricas localizavam-se predominantemente ao longo das vias férreas, regiões então consideradas propícias às atividades fabris devido sua topografia regular, aos baixos preços dos terrenos e às facilidades geradas pelo transporte ferroviário. Diversos bairros industriais como a Mooca, Brás, Belém, Pari e o Ipiranga ainda preservam parte desse parque industrial histórico, um extenso patrimônio urbano depositário de histórias e memórias que nos ajudam a compreender a formação e configuração da cidade contemporânea (1).
Até praticamente a metade do século XIX, as terras hoje ocupadas pelo bairro da Mooca e arredores eram regiões com características rurais, conhecidas como “Prados da Mooca”. A partir da segunda metade do século XIX uma série de fatores conjugados – a implantação das ferrovias impulsionada pelo sucesso da produção cafeeira, a industrialização, a imigração – condicionam a ocupação e o desenvolvimento urbano dessas áreas originando diversos novos bairros fabris.
Neste contexto, observamos durante o período de aproximadamente 1870 até meados da década de 1940, um rápido processo de compartimentação e transformação das áreas suburbanas (formadas por propriedades rurais ou áreas devolutas) em bairros industriais e operários. Esta rápida expansão urbana – impulsionada por fatores que também demarcam a transformação da própria sociedade paulistana – confere aos novos bairros características específicas de desenho urbano, arquitetura e convívio social.
Além das ferrovias, as melhorias urbanas realizadas a partir de 1870 como a instalação do gasômetro, das primeiras linhas de bondes, ou o início das obras de saneamento da várzea e de abastecimento de água e esgotos trouxeram crescimento populacional e desenvolvimento urbano e industrial à região, quer seja pela grande disponibilidade de mão-de-obra, formada principalmente por imigrantes europeus, quer seja pela formação de um significativo mercado consumidor interno.
Aliada a tais fatores, a chegada das ferrovias foi um impulso fundamental na configuração urbana da Mooca e bairros contíguos. Além da ferrovia Santos-Jundiaí, em operação desde 1867. Ao atravessar arredores da cidade até então pouco ocupados, as ferrovias definem novos trajetos que redirecionam os eixos de ocupação, circulação e expansão urbana. Neste contexto, as terras baixas ao longo das várzeas do Tamanduateí apresentaram as condições topográficas ideais para a implantação da estrada de ferro São Paulo Railway, traçado sobre terrenos até então ignorados e insalubres, acompanhados pela ocupação industrial e pelas moradias para operários.
Já no final do século XIX, a presença de grandes edificações industriais despertava a atenção e contrastava com as residências modestas e áreas desocupadas de seus arredores. A instalação da Fábrica de Cerveja Bavária na Mooca é um bom exemplo. Quando a fábrica foi inaugurada, por volta de 1890, os terrenos ocupados pertenciam a uma grande chácara e o arruamento da região começava a ser definido. Alfredo Moreira Pinto, em texto datado de 1901, descreve detalhes da edificação, os processos de fabricação e a maquinaria empregada. Dentre os inúmeros aspectos da cidade de São Paulo relatados em seu livro, a fábrica possui lugar de destaque.
O predio [...] é, alto, vasto, vistoso e todo construido de tijolos. Em frente fica-lhe o escriptorio, em bonito chalet e nos fundos passa-lhe a Estrada de Ferro Ingleza, com a qual tem communicação. A fabrica occupa uma extensão de 250 metros de frente por 100 de fundos e o escriptorio e mais dependencias uma extensão de 80 metros por 120. A parte mais alta do edificio tem 30 metros e a chaminé 36. [...] A fabrica possue um desvio da linha ingleza que possibilita transportar de Santos para o quintal da fabrica todos os productos importados, principalmente cevada, garrafas, carvão e os machinismos, cujos volumes dão muitas vezes de um peso excessivo. Além disso, um girador, que a fabrica mandou construir, divide o desvio em cinco partes, nas quaes as respectivas mercadorias podem ser carregadas nos seus depositos (2).
Em alguns casos, a implantação de fábricas em áreas praticamente desocupadas também contribuiu para definir acessos e até mesmo o próprio arruamento da região, fato que pode ser observado na instalação do primeiro edifício fabril do Cotonifício Crespi. O alinhamento do galpão construído por volta de 1897 definiu o traçado das atuais ruas Javari e Taquari.
A crescente ocupação dos terrenos ao longo da ferrovia Santo-Jundiaí, junto às margens do rio Tamanduateí, determinou um longo eixo industrial, do Brás até a região do Grande ABC, paulatinamente ocupado desde o início do século até a década de 1950.
A importância da Mooca
No bairro da Mooca, a maior concentração de edificações industriais datadas do início do século XX, localiza-se ao longo da faixa ferroviária. Ao ocupar esses terrenos, as indústrias e armazéns voltaram os fundos para a via férrea – recurso que permitia o recebimento e escoamento de produtos – e o acesso principal para ruas paralelas, como a atual avenida Presidente Wilson (antiga alameda Bavária) e a rua Borges de Figueiredo. Seguindo pela ferrovia em direção a Santos, logo após a Hospedaria dos Imigrantes encontramos hoje, à esquerda, os antigos edifícios da São Paulo Alpargatas, atualmente ocupados por uma universidade e, à direita, os antigos Armazéns Ernesto de Castro (3). Depois de ultrapassar o viaduto Alcântara Machado, à esquerda encontramos galpões e armazéns com acesso pela rua Almeida Lima; à direita os Armazéns Piratininga e, mais à frente, os edifícios mais antigos da Companhia Antarctica Paulista, originariamente Fábrica de Cerveja Bavária, com fachada para a avenida Presidente Wilson. Seguindo em frente, encontramos à esquerda uma extensa sucessão de galpões com acesso pela rua Borges de Figueiredo que se estendem até a rua Sarapuí e o viaduto São Carlos, incluindo os galpões da RFFSA; o antigo Moinho Gamba e anexos; os Armazéns das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo; os galpões da CEAGESP e os da Cooperativa Banco do Brasil - conjuntos que se encontram ameaçados.
Além desta faixa de ocupação industrial mais densa, diversos estabelecimentos instalaram-se em quarteirões mais afastados da ferrovia. Dentre as indústrias afastadas cujos edifícios originais ainda hoje existem, podemos destacar o conjunto industrial do Cotonifício Crespi, na rua Javari; a tecelagem Labor, na rua da Mooca; uma tecelagem na rua Orville Derby e uma fábrica de papel na rua do Hipódromo.
A técnica utilizada e a arquitetura adotada na construção destes edifícios não variava muito: eram construídos com alvenaria de tijolos aparentes e estrutura de ferro fundido ou aço. Em alguns casos, as estruturas metálicas eram importadas da Europa e montadas no Brasil. As coberturas de estrutura metálica ou madeira eram a solução mais usual, em sheds ou em duas águas sucessivamente repetidas lado a lado.
Muitos dos grandes lotes determinados pela ocupação industrial ainda hoje permanecem. Mesmo nas áreas em que o desenvolvimento de outras atividades ocasionou o desmembramento dos conjuntos industriais e a divisão dos lotes, podemos perceber suas características originais.
Atualmente, após cem anos de transformações urbanas que conferiram à região novos potenciais de uso, o bairro da Mooca ainda guarda inúmeros conjuntos fabris de grande interesse histórico e arquitetônico, cuja configuração espacial revela uma intrincada rede urbana sistematicamente voltada para a atividade produtiva. Não menos importante, é a presença desses espaços como marcos de patrimônio imaterial, das memórias e dos processos de trabalho ora extintos.
A Mooca é um bairro onde os sentidos se afloram, bastando ficar atento aos cheiros que marcam a vida em alguns pontos do espaço comum: cheiro de diesel das locomotivas, de carvão das padarias, do malte e cevada da Cervejaria Antártica, de fumo, de café torrado. Da mesma maneira para os sons: máquinas das gráficas e tecelagens, dos gritos da torcida no estádio da rua Javari, do trem correndo sobre os trilhos, do apito das fábricas, das pessoas conversando (4).
Preservação e destruição
A permanência dessas estruturas no tecido urbano atual permite o resgate dessas relações, bem como a compreensão de sua representatividade no contexto das transformações urbanas de toda a cidade. Com a evasão das grandes indústrias a partir da década de 1960, o bairro da Mooca foi uma das regiões da cidade mais atingidas. O patrimônio urbano de origem industrial existente no bairro – em grande parte ainda preservado em suas características compositivas originais – vem sofrendo constante ameaça de investidores imobiliários que encontram nesses amplos espaços a possibilidade para empreendimentos lucrativos como hipermercados e torres residenciais.
A comunidade local, ciente deste fato, se mobilizou para sugerir que os terrenos às margens da ferrovia, fossem utilizados para a criação de um parque ecológico, iniciativa que revitalizaria os edifícios de interesse histórico e também supriria a carência de áreas verdes na região. A ferrovia poderia ser configurada para abrigar um trem metropolitano, o que traria uma solução interessante para o transporte de passageiros da região.
A população sugeriu a preservação de uma série de edifícios industriais na Mooca e bairros adjacentes: o edifício da fiação do antigo Cotonifício Crespi, a Tecelagem Labor, o Moinho Gamba, o Moinho Matarazzo, a Tecelagem Mariângela, o Lanifício Paulista, o Gasômetro da Figueira, travessias da estrada de ferro na altura da estação Brás, a Vila Maria Zélia e outros conjuntos de casas e vilas, no Belém, julgadas representativas do caráter histórico do bairro (5).
Tais indicações foram encaminhadas para o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (COMPRESP), para futuras análises. Na sequência dos estudos, o Plano Diretor Regional recomendou um mapeamento do patrimônio existente (conjuntos arquitetônicos como vilas, fábricas e casario), para possível aplicação de instrumentos urbanísticos que estimulem sua preservação e orientem a reconversão de uso. Neste sentido, é proposta a criação de novas ZEPECs, Zonas Especiais de Preservação Cultural - zoneamento que delimita áreas de interesse cultural – e permite o ressarcimento financeiro aos proprietários de áreas preservadas através da transferência do direito de construir. O potencial construtivo do lote demarcado como ZEPEC é transferido para outros terrenos.
Outro importante instrumento de gestão urbana destacado pelo PDRM é a demarcação de áreas sujeitas ao direito de preempção, instrumento urbanístico proposto pelo Estatuto da Cidade que permite ao poder público a prioridade de compra de um terreno no momento em que estiver à venda. A Prefeitura define no Plano Diretor as áreas onde quer exercer o direito de preempção, geralmente porções consideradas estratégicas para futuros projetos de requalificação ou reestruturação urbana (6). Algumas destas propostas foram, de certa forma, incorporadas na redação final do Plano Diretor. O Plano, votado em 2004, delimitou Zonas Especiais de Preservação Cultural nas áreas sugeridas pela população e demarcou também grande parte do eixo da estrada de ferro como área sujeita ao direito de preempção (7). O exercício destes mecanismos possibilitaria a criação de parques lineares e recuperação paisagístico-ambiental do eixo do rio Tamanduateí. Seria prioritária implementação de infra-estruturas que poderiam suprir um posterior adensamento residencial em áreas específicas que não ameacem o patrimônio industrial local.
Mas, a iniciativa privada começa a dar sinais de suas diretrizes e intenções de ocupação, através de projetos que desrespeitam as proteções de entorno dos bens a serem tombados, assim como o próprio bem, como acontece ao longo da rua Borges de Figueiredo, com o edifício do Moinho Gamba, que preservado individualmente torna-se descontextualizado e perde seu sentido.
A defesa do Patrimônio Histórico não é saudosismo ou nostalgia, antes implica um reconhecimento das origens da formação e ocupação de nossa cidade, possibilitando a manutenção de monumentos urbanos representativos para toda uma população e a atribuição de um novo significado a determinados espaços na atual trama urbana, num sentido de inserção e continuidade. Essa defesa implica, ainda, explorar o relacionamento entre a memória, o território e seus habitantes de maneira a criar laços de pertencimento, criar maneiras de usar e experimentar o meio. Caminhar por uma cidade é viver a experiência de suas ruas, praças e moradores, ato que nos permite apreender a cidade enquanto construção subjetiva, enquanto feito sócio-cultural.
Enquanto uma construção permanece ao longo do tempo, sua utilização, sua forma de ser vista, podem modificar-se; e provavelmente assim se fará para que seja possível que este edifício permaneça existindo, mesmo tendo seu significado original desaparecido. Utilizando-se da capacidade de mudança e adaptação do homem diante de novas circunstâncias, o edifício antigo volta do passado para a atualidade.
No Brasil, a preservação do patrimônio industrial ainda se encontra em seus primórdios. Tendência existente desde a década de 1970 nos países europeus e mais tarde em países vizinhos da América Latina, no Brasil ainda existe uma visível dificuldade, com louváveis exceções, de compreender e validar a importância desses exemplares industriais dentro da trama urbana, como registro da arquitetura industrial e como parte da história do trabalho.
Em 1998, foi fundado o Comitê Brasileiro de Preservação do Patrimônio Industrial (representante nacional do TICCIH – The International Committee for the Conservation of Industrial Heritage), organismo internacional que reconhece e protege exemplares que atestam a atividade industrial. O Comitê se encontra face à descaracterização e demolição de exemplares importantes de nossa indústria, como o atual caso da Mooca. Infelizmente, a especulação imobiliária não atua com a mesma lentidão. Cientes de que altigos galpões, fábricas e armazéns industriais hoje ocupam partes nevrálgicas dos bairros, as incorporadoras lançaram-se a uma voraz busca por espaços para seus empreendimentos imobiliários, desrespeitando a história e a memórias dos locais, confundindo as populações com supostos abaixo-assinados pelas melhorias do bairro (nos quais é omitida a informação das demolições), sem estudos sobre o impacto dos prédios nas redes elétrica e de esgotos do bairro, no sistema de tráfego, e, principalmente, sem observar se há contaminação nos terrenos utilizados.
As áreas industriais influenciaram a lógica de ocupação de São Paulo, marcando historicamente a evolução da cidade e até mesmo de todo o conglomerado metropolitano, tal preservação se faz necessária em uma cidade que já perdeu muito de sua identidade histórica e memória urbana.
notas
1
RUFINONI, M. R. Preservação do patrimônio industrial na cidade de São Paulo: o bairro da Mooca. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FAUUSP, 2004, pp. 6-30.
2
PINTO, Alfredo Moreira Pinto. A cidade de São Paulo em 1900. São Paulo, Governo do Estado, 1979.
3
Para uma descrição detalhada da paisagem industrial do bairro da Mooca, v. RUFINONI, M. R., op. cit., pp. 50-114.
4
Folder da exposição Mooca Oggi, realizada no Memorial do Imigrante.
5
As propostas da comunidade local foram apresentadas e discutidas durante as plenárias para a elaboração do Plano Diretor Regional Mooca. SÃO PAULO (Cidade). Plano Diretor Regional da Subprefeitura Mooca – Relatório Final. São Paulo, SEMPLA, Instituto Polis, 2003. v.1,v.2.
6
Sobre as Zonas Especiais de Preservação Cultural, bem como sobre o Direito de Preempção, v. BRASIL. Lei n. 10257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).
7
SEMPLA, Secretaria de Planejamento da Prefeitura Municipal de São Paulo (org.) Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, 2002-2012. São Paulo, Senac. PMSP, 2004.
sobre os autores
Cristina Meneguello é doutora em história, professora do Depto. de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente do Comitê Brasileiro de Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH Brasil)
Fernanda Valentin é arquiteta e urbanista, graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua monografia intitula-se: Reorganização Territorial do Bairro da Mooca – ramal sudeste da linha férrea
Giancarlo Bertini é arquiteto e urbanista, graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Realizou uma monografia intitulada: Requalificação urbana: Reestruturação urbano-territorial do eixo Tamanduateí – ramal ferroviário do bairro da Mooca
Manoela Rufinoni é doutoranda em História da Arquitetura pela FAU-USP, no momento realiza estágio na Università degli Studidi Roma "La Sapienza" com bolsa concedida pelo CNPq. Autora da dissertação de mestrado: Preservação do patrimônio industrial na cidade de São Paulo: o bairro da Mooca.