Em um interessante livro recentemente publicado, intitulado Obituário Arquitetônico: Pernambuco Modernista (1), o arquiteto e professor da UFPE Luiz Amorim apresenta um inventário de dezenas de edifícios projetados por mestres da arquitetura moderna pernambucana, como Luís Nunes, Delfim Amorim e Acácio Gil Borsói que, nas últimas décadas, foram gradativamente substituídos por construções de qualidade arquitetônica significativamente inferior.
Na sua curiosa análise, Amorim agrupa esses exemplos em função da causa mortis. Assim, segundo o autor, existe a morte prematura (que ocorre "antes mesmo da arquitetura se tornar plena em forma, função e espaço"), a morte de nascença (devida a mazelas genéticas, "que fazem o corpo sucumbir sem avisar"), a morte por vaidade ("quando ao espelho não se reconhece ou quando suas entranhas não mais obedecem ao sentido que lhes foi dado"), a morte por parasitas ("pela presença parasitária de usos não previstos que a carcomem por dentro e por fora"), a morte por abandono ("morte lenta e dolorosa", "quando dela se esvaem sentidos, funções e pessoas") e, por fim, "a pior das mortes" e "a que mais mata", nas palavras de Amorim: a morte anunciada.
É esta última – "a rainha das mortes arquitetônicas" – que nos interessa aqui. Segundo Amorim, esta morte, "conhecida pelas alcunhas de progresso, demanda habitacional ou, simplesmente, investimento imobiliário", é anunciada "nas normas dos homens, que estabelecem o princípio de que trocar uma arquitetura por outra é um bom negócio", pelo menos para os investidores.
Muitos dos exemplos de "morte anunciada" de Amorim são de residências unifamiliares construídas nos anos 1950 e 1960 em áreas que, como a praia de Boa Viagem, em Recife, passariam por processos de valorização imobiliária e de verticalização extremamente acelerados nas décadas seguintes. Em contraposição às dezenas de exemplos de "morte anunciada" de residências unifamiliares, o autor apresenta apenas um exemplo de edifício público pernambucano que tenha sucumbido a este tipo de ataque. Para ele, embora os edifícios públicos tenham "uma grande resistência" ao ataque da "morte anunciada", "em tempos de neoliberalismo ficaram mais suscetíveis".
Se algum pesquisador se propusesse a realizar o "obituário arquitetônico" da Salvador moderna, certamente não lhe faltaria trabalho. Nas últimas décadas, as mais representativas residências projetadas nos anos 1950 e 1960 por Diógenes Rebouças, Assis Reis, Pasqualino Magnavita e Gilberbert Chaves vêm sendo demolidas para dar lugar a edifícios de apartamentos e comerciais.
Este longo preâmbulo, contudo, tem como objetivo tão somente tornar possível dimensionar o absurdo da ação que o Governo do Estado da Bahia está prestes a realizar. Diógenes Rebouças, o mais importante, mais prolífico e mais influente arquiteto baianos dos anos 1950 e 1960, tem no Estádio Octávio Mangabeira – mais conhecido como Estádio da Fonte Nova – não somente uma das suas obras mais importantes mas, acima de tudo, aquela que representa a sua afirmação como o principal arquiteto moderno baiano.
Durante a elaboração do projeto do Estádio da Fonte Nova, inaugurado em 28 de janeiro de 1951, Diógenes Rebouças teria contado com uma consultoria informal de alguns dos mais importantes arquitetos brasileiros de então, dentre eles Oscar Niemeyer. O próprio Rebouças desenvolveria, entre 1968 e 1971, o projeto de ampliação do estádio, com a construção do anel superior.
Ao longo de mais de meio século, o Estádio da Fonte Nova representou a principal arena baiana daquele que é o esporte brasileiro por excelência – o futebol. E justamente agora, quando a FIFA divulga que o Brasil abrigará a Copa do Mundo de 2014, o Governo do Estado da Bahia acena com a possibilidade de demolir a Fonte Nova.
Segundo a imprensa, inicialmente a idéia da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (órgão do Governo do Estado responsável pela gestão da Fonte Nova) era construir um novo estádio na Avenida Paralela. O antigo estádio seria então demolido para dar lugar a um empreendimento privado – curiosamente, no momento em que aquele terreno se torna mais acessível e mais valorizado economicamente, devido à iminente entrada em funcionamento do metrô de Salvador, que conta nesta primeira etapa com duas estações nos arredores.
Embora não seja aceitável, é até compreensível que, seguindo a lógica do mercado, a especulação imobiliária queira se aproveitar da inauguração do metrô e da realização na Copa do Brasil para lucrar com a demolição de um edifício tão importante.
O que não é nem aceitável nem compreensível é que o Governo do Estado da Bahia compactue com esta ação, quando seu papel seria justamente o de preservar o Estádio da Fonte Nova, seja pelos seus inquestionáveis méritos arquitetônicos, seja pela sua importância na história da arquitetura baiana e do futebol baiano, seja ainda pela sua excepcional integração com a paisagem em que se insere – a encosta sobre a qual se assenta e o Dique do Tororó para o qual se abre.
Mais recentemente, a imprensa tem noticiado que a estratégia do Governo Estadual seria a de demolir o Estádio da Fonte Nova para construir uma nova arena em seu lugar, incluindo ainda centro de convenções, praça de alimentação, elevadores e estacionamentos e atendendo a todas as determinações da FIFA. Segundo o jornal A Tarde, em matéria curiosamente publicada no último Dia de Finados, "a demolição da Fonte Nova para a construção de um novo estádio é a hipótese mais provável para que a Bahia se torne forte candidata a subsede da Copa do Mundo do Brasil, em 2014" (2).
Não existe qualquer dúvida quanto à pertinência de manter naquele local o principal equipamento esportivo da cidade, nem tampouco da necessidade de adaptá-lo às normas da FIFA. O que é surpreendente é a declaração do Governador Jaques Wagner de que "não existe nenhuma possibilidade de reforma da Fonte Nova para a Copa de 2014", publicada na mesma matéria, e de que apenas a sua demolição e a construção no mesmo local de um novo complexo esportivo tornaria possível atender às determinações da FIFA. Esta estratégia não possui nenhum respaldo técnico e é, portanto, leviana e precipitada, por pelo menos duas razões.
Em primeiro lugar, a requalificação e adaptação de estádios para atender às novas necessidades e aos padrões estabelecidos pela FIFA e por outras organizações esportivas internacionais têm sido uma constante nos últimos anos. Exemplos não faltam, como o Estádio de Monjuïc em Barcelona, inaugurado em 1929 e requalificado pelo renomado arquiteto italiano Vittorio Gregotti para as Olimpíadas de 1992, ou o Estádio Olímpico de Berlim, inaugurado em 1936 e que foi a principal referência arquitetônica de Rebouças no projeto da Fonte Nova, requalificado para a Copa do Mundo da Alemanha de 2006. No Brasil, os gaúchos já se adiantaram e elaboraram um projeto de requalificação do Estádio do Beira-Rio, originalmente construído entre 1956 e 1969, visando adaptá-lo às normas da FIFA.
Como se não bastassem os exemplos listados acima, os arquitetos baianos também se pronunciaram contra a demolição da Fonte Nova. O Departamento da Bahia do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB-BA, em um editorial publicado no último dia 13 de agosto, afirmou que "em lugar de propor a construção de um novo estádio para Salvador [...], o mais sensato, mais econômico e mais coerente seria requalificar o Estádio da Fonte Nova, adaptando-o aos padrões esportivos internacionais mais atuais" (3).
Nas últimas semanas, o arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo, professor titular da Faculdade de Arquitetura da UFBA e presidente do IAB-BA, publicou artigo em que defende a adaptação da Fonte Nova aos padrões estabelecidos pela FIFA e coloca o IAB-BA à disposição para colaborar com o Governo do Estado na realização de um concurso público de arquitetura tendo como objetivo a requalificação do Estádio. Por sua vez, o arquiteto Heliodório Sampaio, também professor titular e ex-diretor da Faculdade de Arquitetura da UFBA, ameaçou fazer uma representação junto ao CREA-BA caso se consolide a hipótese da demolição do estádio, uma vez que é co-autor do projeto de ampliação coordenado por Rebouças em 1971.
Frente a uma situação tão surreal, em que o próprio Governo Estadual propõe a demolição de um bem que, seja por razões históricas, seja por razões arquitetônicas e paisagísticas, seja ainda por razões econômicas, deveria preservar, é impossível não citar o ex-governador Octávio Mangabeira, responsável pela construção do estádio que leva seu nome: "pense em algo excêntrico, inusitado, em algum absurdo qualquer: ele já aconteceu na Bahia".
notas
1
AMORIM, Luiz. Obituário arquitetônico – Pernambuco modernista. Recife, 2007. Ver resenha do livro: LARA, Fernando. “Ars longa, vitabrevis?”. Resenhas online, n. 181. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2007 <www.vitruvius.com.br/resenhas/textos/resenha181.asp>.
2
"Governo pensa em implodir a Fonte Nova". A Tarde, Caderno Esporte Clube, p. 3.
3
”Editorial”. Salvador, IAB-BA, 13 ago. 2007.
sobre o autor
Nivaldo Vieira de Andrade Junior é cidadão soteropolitano, arquiteto-urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura da UFBA, onde desenvolve pesquisa de doutorado sobre a arquitetura moderna na Bahia.