O Instituto Nacional de Habitação (INH) e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) de Portugal, nos brindam com esta impecável publicação sobre a produção habitacional de caráter social promovida nos últimos 20 anos em Portugal, incluindo Açores e Ilha de Madeira. Até o momento, tinha-se bom conhecimento sobre as características e as qualidades da arquitetura habitacional de interesse social promovida no país na primeira metade do século XX, passando pelo período de ditadura, apresentando uma boa “arquitetura habitacional moderna popular” nos chamados “anos verdes”. Todavia, em que pese os meritórios esforços do Núcleo de Arquitetura e Urbanismo (NAU) do LNEC neste sentido, não havia ainda uma obra que revelasse de modo integrado, organizado e crítico, muitas das boas práticas de projeto, construção e uso existentes no país, sobretudo no período de abertura democrática, em que Portugal passa a fazer parte da Comunidade Européia. O trabalho incansável do arquiteto e pesquisador do LNEC, Dr António Baptista Coelho, autor desta publicação, fez com que a organização e a sistematização desta produção, para efeito de divulgação aos estudiosos, se tornasse uma realidade. Coelho, discípulo de Nuno Portas e de Reis Cabrita, é o atual chefe do NAU-LNEC e profundo conhecedor dos espaços domésticos, suas qualidades arquitetônicas, suas relações com o espaço urbano. Sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, configura-se em testemunha documental desta manifestação (1).
O livro 1984-2004 – 20 anos a promover a construção de habitação social trata-se na verdade de uma publicação comemorativa dos 20 anos de criação do INH o qual tem entre suas atribuições “ preparar o plano nacional de habitação e os planos anuais e plurianuais de investimento no setor” talvez assemelhado ao nosso extinto Banco Nacional da Habitação (BNH). Investe recursos próprios em ações voltadas à promoção de habitações de interesse social (ou Habitações a Custos Controlado HCC, como são chamadas) nas modalidades municipais, cooperativas e empresas privadas. Nesta linha de financiamento, promoveu entre 1984 e 2004 mais de 126 mil unidades, sendo cerca de 47% para aluguéis e o restante para venda. Também apóia, desde 1993, Programas de Realojamento (o atual PER), os quais totalizaram no mesmo período, aproximadamente 60 mil unidades habitacionais.
A obra ora resenhada, embora datada, inicia-se com uma reflexão crítica sobre a promoção e a produção da habitação de interesse social em Portugal, no século XX, antes da criação do INH, destacando, por exemplo, as práticas das Câmaras Municipais de Lisboa e do Porto, tais como – dentre outros inúmeros exemplos – no caso de Lisboa, o Bairro Social de Alvalade e os Olivais Norte ou no caso do Porto, o Ramalde ou o Bom Sucesso.
Posteriormente, o livro descreve a iniciativa louvável do chamado “Prêmio INH”, realizado desde 1989, cujo júri é constituído por especialistas – arquitetos e engenheiros – no tema, é realizado anualmente e tem como critérios, definidos na página 84:
- “A salvaguarda e valorização da qualidade da paisagem global;
- O modelo e a integração urbanística com a compreensão da aptidão dos espaços e dos valores naturais e culturais existentes;
- A imagem e a organização arquitetônica;
- As técnicas e a racionalidade construtiva, integrando valores de caracterização local e aplicando soluções, tecnologias e materiais amigos do ambiente que reduzem o consumo de energia;
- A compatibilização das instalações e equipamentos;
- A integração quando for caso disso, de equipamento de exterior de desporto e de lazer atendendo a todas as classes etárias;
- A apropriação pelos utilizadores (usuários, no Brasil), quer no interior quer no exterior dos edifícios.”
O arquiteto Baptista Coelho, tem participado ativamente das atividades do Prêmio INH, o qual se caracteriza não apenas como uma premiação “tradicional” para projetos de arquitetura, mas envolve análises de projeto e visitas ao conjunto construído e em uso, quando o júri tem a oportunidade do contato com os projetistas coordenadores, os promotores, os construtores e representantes de moradores. Tais procedimentos aproximam esta modalidade de premiação, da Avaliação Pós-Ocupação (APO) pois não prescinde do contato com a realidade física e com os usuários finais. Certamente, as preocupações com a qualidade arquitetônica e o rigor quanto à obrigatoriedade da correta inserção do conjunto habitacional na malha urbana e dos acabamentos definitivos dos espaços públicos integrados ao conjunto de HCCs, Coelho incorporou dos resultados das pesquisas sobre habitação social realizadas no NAU-LNEC (2). À experiência do NAU-LNEC (3) pode-se somar as pesquisas aplicadas em APO e os estudos voltados à análise de projetos arquitetônicos e seus aspectos funcionais a partir da sintaxe espacial, promovidos pelo Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura do Instituto Técnico de Lisboa (4) e os checklists associados a escalas de valores, desenvolvidos pelo Centro Português de Design (5).
O INH convida todos os anos os agentes envolvidos com a HCC cujos empreendimentos foram concluídos naquele ano, a se candidatarem e a Premiação ocorre no ano subseqüente. No período 1989 a 2004 foram visitados por júris com esta finalidade mais de 500 conjuntos habitacionais, representando, conforme destaca Coelho, cerca de 30% da promoção financiada em cada ano. Os premiados – muitos deles passíveis de leitura na publicação em questão, a partir de fichas técnicas contendo plantas, cortes, fotos dos empreendimentos e detalhes – podem ser apreciados nas publicações específicas realizadas anualmente pelo INH. Estas apreciações comparativas e de certo modo, competitivas, incluindo as análises e os comentários críticos dos membros do júri, têm auxiliado no incremento dos atributos arquitetônicos e urbanísticos dos empreendimentos que se sucedem, voltados à “nova” habitação social portuguesa.
A fotografia que encabeça esta resenha é um exemplo destes conjuntos de HCCs recentemente apoiados pelo Estado português e visualizados em profusão no trabalho de Coelho.
O livro termina, apoiado em boa bibliografia sobre habitação social recente em Portugal e outros países europeus e também com um texto que demonstra de que forma as pesquisas aplicadas realizadas desde a década de 60 no hoje NAU-LNEC puderam impactar efetivamente a concepção, o projeto, a construção e o uso de HCCs, no caso português. Neste capítulo são abordados tópicos importantes como a “qualidade arquitetônica e a satisfação residencial”, as “ tipologias, modos de vida e variedade de programas de vizinhança próxima” e por fim, como “qualificar e humanizar a habitação”.
Nesta obra, um verdadeiro guia sobre as práticas da habitação portuguesa, a ser utilizado como livro texto em disciplinas de graduação e de pós-graduação em escolas de arquitetura e urbanismo, voltadas ao estudo da habitação social e também por profissionais que atuam nestes tipos de empreendimentos, pode-se perceber uma verdadeira preocupação com a moradia digna e que atende as necessidades dos seus usuários. É possível se verificar in situ o uso de critérios tais como: escala humana, inserção na malha urbana, harmonia entre elementos urbanísticos, paisagísticos e arquitetônicos, diversidade de unidades habitacionais (1 a 4 dormitórios, no mesmo bloco, em função do tamanho da família ocupante), respeito aos aspectos culturais e aos modos de vida dos moradores, diversidades de blocos de edifícios – em fita, mais horizontalizados ou mais verticalizados, contemplando uso comercial no térreo ou equipamentos sociais como escolas, pequenos serviços etc- gerando paisagens diferenciadas e dinâmicas. Impressiona ainda o grande número de arquitetos, construtores e de promotores cooperativados, municipais e privados envolvidos neste processo (listados ao final do volume) o que pode sugerir uma ampla participação de agentes diferenciados da construção civil portuguesa.
Evidentemente o livro publicado pelo INH não deve ser entendido pelos estudiosos como uma receita sem equívocos para a solução definitiva da questão habitacional, mas certamente oferece pistas consistentes neste sentido. Ou seja, merece um olhar reflexivo e atento à luz das experiências brasileiras recentes voltadas a habitação social, no que tange aos seus aspectos positivos e aos seus aspectos negativos. Por último, sem tirar o brilho desta portentosa edição e desde já pensando numa próxima, que virá, sugiro a inclusão de alguns mapas de Portugal localizando por tipo de promoção, quantidade de unidades habitacionais e, talvez por tipologia, os conjuntos nos distintos municípios.
notas
1
COELHO, António Baptista. Qualidade Arquitectónica Residencial. Rumos e factores de análise. Lisboa, Portugal: Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2000. 475p. [Informação Técnica Arquitectura ITA 8].
2
COELHO, António Baptista; PEDRO, João Branco. Do Bairro e da Vizinhança à Habitação. Tipologias e caracterização dos níveis físicos residenciais. Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 1998. [Informação Técnica Arquitectura ITA 2].
3
É oportuno recomendar a consulta ao http://infohabitar.blogspot.com/ denominado Infohabitar – A Revista/blog do Grupo Habitar, gerenciada pela APPQH – Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional, gerenciado por Baptista Coelho. Nele é possível encontrar textos e imagens abrangendo não só o tema da habitação social portuguesa, mas também um amplo debate sobre a requalificação dos espaços urbanos, notadamente aqueles centrais e de valor histórico.
4
HEITOR, Teresa Valsassina. A vulnerabilidade do espaço em Chelas. Uma abordagem sintáctica. Porto, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2001.
5
Centro Português de Design. Do Projeto ao Objecto. Manual de boas práticas de mobiliário urbano em centros históricos. Lisboa, Portugal, Centro Português de Design, 2005, 2ª edição.
sobre o autor
Sheila Walbe Ornstein, arquiteta e urbanista, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especialista em Avaliação Pós-Ocupação (APO) do Ambiente Construído e nas Relações Ambiente Construído – Comportamento Humano (RACs)