Faz frio em Nova Friburgo e, por vezes, é penoso atravessar o pequeno jardim de especiarias e concentrar-se nas atividades da jornada. Especialmente na fase de preparação do material, quando a água sai gelada das torneiras e é com ela que se preparam as argilas, que se executam as misturas de materiais a serem modeladas no torno.
Faz frio e, no auge do inverno, as delicadas mãos de Beth sofrem. Curiosidade de visitantes, o atelier cerâmico não diletante é trabalho árduo. Preparo dos materiais, torno, acabamentos, forno de alta temperatura e também embalagem, expedição, notas fiscais...
Ceramistas como Gilberto e Beth vivem numa espécie de ponto de contato de dois mundos. Para quem faz o discurso nostálgico da cerâmica e de outros fazeres artesanais, essa atividade se reduz à teimosia frente ao mundo industrializado. Para esses, basta repetir velhas formas numa espécie de reverência historicista, como se os materiais e a própria água já não estivessem marcados pela indústria contemporânea.
Essa ingenuidade não pertence ao quadro de referências dessa cerâmica especial. O casal prefere o forno elétrico; investiga fornecedores de matérias-primas; lida com a burocracia da comercialização. No entanto, consegue aquilo que a maioria já perdeu, razoável controle de seu trabalho, da escolha dos materiais e instrumentos às formas modeladas e, sobretudo, da gestão do seu tempo.
Tal domínio implica luta libertária contra a tirania do monótono. E lá se metem eles a descobrir composições de óxidos; experimentar temperaturas, propor-se dificuldades técnico-estéticas que fazem a graça de sua faina. O raro lilás de um prato (n.37) foi obtido na temperatura exata – 10 graus a mais e o resultado seria um horrível azul; dez graus a menos e surgiriam manchas na superfície. O amarelo citrino (n.51) também é cor rara em alta temperatura, mas são esses os obstáculos deliciosos de superar, às vezes produtos do acaso, dom que os artistas aceitam com gratidão, como ensina Henri Focillon.
O mundo dos fornecedores, do comércio, do mercado enfim, está lá com onipresença por vezes acachapante, por vezes sutil e perigosa. No entanto, o terreno do fazer, do diálogo mão/cérebro se impõe. Gilberto e Beth não traçam sua produção a partir do mercado, pois sabem que em todos os continentes haverá quem reconheça e ame suas peças.
Outros mundos nos quais transitam são o moderno e suas oposições, o pré e o pós-moderno. Do moderno há uma espécie de herança austera, ciente da justeza dos utilitários singelos; do trabalho com os desenhos indígenas brasileiros no que eles têm de construtivos; no traçado das linhas dos esgrafitos que permitem o adorno como trama próxima àquela do tear, uma espécie de grau mínimo do ornamento.
Gilberto e Beth, no entanto, não são titânicos na busca da expressividade dos materiais em sua verdade essencial, mito moderno. Muitas vezes a textura de seus trabalhos faz emergir a visualidade e mesmo a impressão tátil de outra substância, tão distinta da cerâmica como a folha seca da bananeira (n.36). Também não há nos dois a busca programática por elementos seriais que componham com suas peças, o que, de fato, seria paradoxal para o ofício que exercem. Lá estão delicadas alças feitas de bambu preto, cultivado em Friburgo e que dispensa a pintura; a madeira geometrizada de tampas, fruto de suas pesquisas junto a outros artesãos.
E ainda, aos utilitários se postam, contíguos, os objetos – brinquedos, piões que, como em esculturas de Brancusi, questionam o equilíbrio das coisas, mantendo ponto de estabilidade. Mas também, e aí percebemos os traços modernos, surgem as reentrâncias de certos vasos, explicitação da plasticidade da porcelana em estágio anterior ao cozimento (n.14). (Estudiosos de design, Gilberto e Beth poderiam aqui fazer falso discurso da ergonomia...).
Esse trânsito de períodos artísticos se explica. Há no trabalho dos artesãos, avisa-nos Octavio Paz, uma espécie de continuidade de passado e presente, refutação de certas miragens da história. E, quando olhamos para os objetos industrializados que nos cercam, a maioria deles despidos de atributos de sensibilidade, percebemos que sua historicidade é uma faca afiada contra sua permanência, se não como testemunho dos tempos.
O trabalho artesanal que persegue a beleza é uma sorte de reduto da poesia, aquela de que nos fala Edgar Morin como tendo perdido o sentido, “elemento inferiorizado com relação à prosa da vida”. No entanto, cada vez mais necessária. Os objetos de Gilberto Paim e Beth Fonseca, poemas físicos, nos fazem reencontrar esse sentido tão distante, e ao mesmo tempo tão próximo, de nossas melhores possibilidades.
[o presente texto é a apresentação do livro]
sobre o autor
Ethel Leon é jornalista e professora de história do design na Faculdade de Campinas. É autora de autora do texto crítico de "João Baptista da Costa Aguiar, Desenho Gráfico 1980-2006", São Paulo, Editora Senac, 2006. Foi curadora das mostras Singular & Plural quase 50 anos de design brasileiro (Inst. Tomie Ohtake, 2001); Ornamentos do corpo e do espaço com retrospectiva de Livio Levi (Inst. Tomie Ohtake, 2005) entre outras