“A rentabilidade do mercado financeiro com a segurança do mercado imobiliário”, era a promessa miraculosa anunciada na euforia da globalização dos anos 90, acompanhando a transformação de edifícios em títulos vendidos no mercado financeiro. Como é que, a partir de então, o capital se urbanizou em São Paulo? Os fundamentos desse processo são brilhantemente analisados por Mariana Fix em “São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem”.
No início da década passada, com a estabilização monetária, a desindustrialização, a entrada maciça de capital estrangeiro e a grande transferência patrimonial dela decorrente (privatizações), até a produção de imóveis passou a ser regida pela busca de mobilidade e liquidez. Na prática, as grandes empresas deixaram de estabelecer-se em sedes próprias, pensadas historicamente como patrimônios sólidos, e passaram a alugar andares de edifícios comerciais, podendo deslocar-se com mais facilidade no território. Já os novos proprietários, nesse esquema, deixaram de ser os empreendedores capitalistas tradicionais, tornando-se, doravante, investidores anônimos, como os fundos de pensão.
Assim, enquanto as empresas se beneficiam com a maior flexibilidade (podem aumentar ou diminuir seus quadros bruscamente, ou simplesmente abandonar o local, a cidade e o país), os investidores lucram à medida que um mercado se constitui como “novo vetor” de valorização imobiliária, em áreas com terrenos inicialmente baratos (vizinhos de favelas, com modesta infra-estrutura) que se tornam focos de grandes obras do governo em Operações Urbanas e “parcerias público-privadas”. Tal é o caso paradigmático do eixo Faria Lima-Berrini-Marginal Pinheiros, para o qual foram canalizados cerca de 85% dos investimentos públicos da cidade na década passada.
Esses novos edifícios corporativos de alto padrão são, portanto, como mostra Fix, “bases hospedeiras” para o capital transnacional em errante migração, realizando-se muitas vezes como enclaves globais em meio a metrópoles periféricas. Seu estudo se completa apontando a fratura desse processo local de globalização, uma vez que em São Paulo a aliança entre mercado imobiliário e de capitais mostrou-se imperfeita, truncada, dada a inexistência de um sistema de crédito efetivo no Brasil, como é o de hipotecas nos Estados Unidos e Europa. Assim, com as crises econômicas mundiais do final da década, mais a diminuição do ciclo de privatizações, o mercado imobiliário corporativo de São Paulo viveu uma crise de superoferta, assistindo a uma enorme queda nos preços e aumento na taxa de vacância dos imóveis, afugentando os investidores – só na nova Faria Lima 70% dos imóveis chegaram a ficar vagos. É quando incorporadoras emblemáticas como a Birmann, por exemplo, acabam quebrando.
O resultado é uma paisagem fantasma que arrebenta a infra-estrutura da cidade, num ciclo predatório em que o lucro vive do antiplanejamento. Ironicamente, esse processo de enorme concentração de renda e segregação espacial é financiado pelo Estado e por fundos em cuja origem está a histórica contribuição salarial dos trabalhadores.
[texto originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, segunda-feira, 28 maio 2007, p. E2.]
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"Antigamente, imóveis...", de Francisco de Oliveira, sobre o livro de Mariana Fix
sobre o autor
Guilherme Wisnik é arquiteto, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e mestre em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas na mesma universidade. Publicou diversos textos sobre arquitetura e colaborou no livro Paulo Mendes da Rocha. Assina coluna semanal sobre arquitetura no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo.