A FAUUSP acaba de editar, com dois Volumes iniciais, a coleção Arquiteses, que reúne artigos síntese das melhores teses e dissertações produzidas no programa de Pós Graduação Estruturas Ambientais Urbanas. A área de concentração, embora genérica originalmente, foi recentemente subdividida em oito áreas mais específicas, que vão da história da arquitetura, da cidade e do urbanismo, planejamento urbano, paisagem e ambiente, projeto, tecnologia e design. Essa amplitude é recortada efetivamente pelas dissertações e teses que conseguem resgatar uma pauta preciosa dos principais problemas de pesquisa em arquitetura e urbanismo.
No volume 2 “Cidade: impasses e perspectivas”, longe de uma justaposição, o trabalho de editoria sob a responsabilidade de Maria Lucia Gitahy e José Tavares Correia de Lira consegue compor os trabalhos em uma seqüência que potencializa o encadeamento das argumentações, com uma complementaridade equilibrada entre o teórico e o empírico. O mosaico de textos, através de sua composição, é um retrato atual não só dos problemas a serem enfrentados no mundo urbano contemporâneo, mas também das lacunas não resolvidas, possibilitando a abertura para inúmeros novos projetos de pesquisa. Isto torna obrigatória a leitura para alunos e professores de programas de pós-graduação e dos cursos de graduação que valorizam a pesquisa na formação de estudantes de Arquitetura e Urbanismo.
A abertura do volume cabe ao artigo de Andréa de Oliveira, que através da revisão crítica apresenta a importância da precisão na definição conceitual de “centro” e “centralidades”. Ao longo do século XX a expansão periférica e a necessidade de intervenções renovaram estes termos, destituindo seu caráter simbólico. A autora alerta que a indefinição do conceito resultado de visões acríticas que se sucederam provenientes de saberes diversos levam a interpretações duvidosas e, portanto, servem como um discurso flexível, que se presta a justificar intervenções ao sabor de interesses diversos. Se o centro anteriormente diferenciava-se das centralidades por conter condições históricas, hoje representam a concentração de fluxos produzidos pelos agentes imobiliários.
O texto seguinte, de Beatriz Diógenes, dialoga com o anterior através da descrição do deslocamento de atividades no bairro de Aldeota, em Fortaleza. A partir de hipóteses de Flávio Villaça – fonte referencial recorrente na maioria das pesquisas –, a autora aponta que a percepção “do perto e do longe” é produzida pelas elites, que dá consistência metafórica ao próprio conceito de novo centro da cidade, isto é, de reunir condições históricas socialmente abrangentes, na nova centralidade. A confusão entre os termos nos remete novamente à necessidade de precisão dos mesmos e, ao mesmo tempo, reitera o conteúdo ideológico dessa confusão.
Karin Ianina Matzkin apresenta texto comparativo entre a produção dos espaços de São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México. Ao retomar o debate conceitual, reiterando a relação entre a forma urbana, seus problemas e a própria constituição da sociedade que a produz, a autora aponta, com muita propriedade, a importância dos processos históricos na constituição das três cidades, em detrimento da lógica homogeneizadora que a visão dos processos de globalização, reestruturação produtiva e reformas neoliberais vêm imprimindo às pesquisas sobre grandes cidades. A autora aponta que os efeitos espaciais da chamada globalização não explicam a diversidade que se manifesta diferentemente nas cidades contemporâneas. As referências teóricas da globalização captam fragmentos das transformações urbanas, decorrentes das hierarquias estabelecidas das especificidades do mercado imobiliário e da ação do Estado: nacional e local. O texto aponta ainda diferenças espaciais nas três cidades, decorrentes da estruturação dos sistemas de transporte, decisões de política urbana e dinâmicas diferentes que produziram e reproduziram diferenciações espaciais advindos de processos históricos excluídos das análises globais. A importância das particularidades nacionais e regionais é considerada, contrapondo-se a uma integração passiva e subordinada à economia global.
A busca de fomento internacional pelas cidades é avaliada criticamente por Pedro Arantes através da análise dos financiamentos do Banco Mundial e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para as políticas urbanas. Quem ganha e quem perde com tais financiamentos? Através do discurso dos gestores, as conclusões são contraditórias. De um lado, uma visão catastrofista aponta a reprodução do neoliberalismo através das chamadas “boas práticas” a serem replicadas país afora; de outro, uma percepção de falta de alternativas para o próprio financiamento da cidade. A questão que se coloca é de como medir os ganhos sociais e, mais do que isto, como garantir estrategicamente esses ganhos e qual o contorno político necessário para tanto.
Algumas respostas aparecem no trabalho de Ângelo Filardo, a partir da crítica conceitual da gestão ambiental do Programa Guarapiranga. A análise econômica transcende as totalizações de custos e benefícios chegando à avaliação das perdas e ganhos entre os agentes e com o ambiente. Para o autor, a ação dos diferentes agentes sociais na busca de benefícios tem efeito estruturante na cidade e uma manifestação material inscrita no espaço urbano.
Ainda oferecendo respostas à questão de quem ganha e quem perde na produção do espaço urbano, temos o artigo de Claudia Maira Beré, jurista vinculada à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo. Através de uma parceria na disciplina ministrada pela professora Maria Lucia Refinetti R. Martins, que envolveu os alunos na pesquisa, o texto constata que o não cumprimento da legislação tem suas causas na falta de alternativas habitacionais oferecidas à população de baixa renda e, mais profundamente, nos salários que não incluem o valor da moradia no seu custo global, indicando uma correlação política de forças abissalmente distanciada de um Estado do Bem Estar. As propostas alternativas para a “solução desses problemas” passam pelo Estatuto da Cidade e seus novos instrumentos, com destaque para a “regularização fundiária sustentável”, que poderá garantir títulos aos moradores, desde que atingidas as melhorias urbanísticas ambientais, repartindo-se despesas de implementação entre o Estado e os moradores.
As questões do financiamento da cidade e da constituição de uma nova centralidade reaparecem no texto de Mauro Kuznir através da Operação Urbana Água Branca. Para o autor, os interesses imobiliários predominaram sobre a criação de uma cidade mais justa e equilibrada. Apesar de não apresentar fundamentação empírica, o autor aponta a produção de novos empreendimentos de alto padrão fora dos limites da operação, cujos recursos gerados não são suficientes para a criação do novo pólo terciário, mas cuja expectativa de implementação gera novos valores artificiais apropriáveis. É louvável a defesa da necessidade de promoção de largas reformas sociais em detrimento de um urbanismo voltado apenas para atender aos interesses especulativos.
A história da habitação em São Paulo é apresentada de forma complementar através dos estudos de caso sobre as casas em série do Brás e da Mooca, e dos conjuntos residenciais Ana Rosa e Copan, respectivamente de Luciana Alem Gennari e Fernanda Bárbara. Os dois trabalhos apresentam tipologias de qualidade, que não puderam ser mais construídas em São Paulo pelas modificações da legislação urbanística. Abrangendo um período que vai do início até meados do século XX, as pesquisas têm em comum mostrar que, mesmo sendo um “negócio”, a produção habitacional poderia ter padrões e qualidades superiores, trazendo alternativas de mercado para as populações de média e, principalmente, de baixa renda. Segue daí uma indagação: Por que a qualidade dos projetos habitacionais e da legislação foi sendo historicamente reduzida?
Álvaro Puntoni traz um texto essencial para quem se debruça sobre a pesquisa em projeto de arquitetura. Através da investigação projetual dos vazios urbanos da Avenida Nove de Julho, chega a uma proposta de reconfiguração urbana que torna o método de projetar o próprio caminho e a justificativa da forma resultante. A tese, presente no texto, consiste em afirmar que o projeto revela os objetivos e a própria pesquisa do qual é resultante. O texto, essencial a professores de Arquitetura e Urbanismo, aponta ainda a necessidade de construir um acervo de referências necessário ao ensino e ao processo de projetação do arquiteto.
A participação popular é a questão analisada por Caio Boucinhas. O texto se baseia em experiências concretas envolvendo comunidades, prefeituras e pesquisadores nas produções participativas de espaços públicos, movimento coletivo de reversão do lamentável quadro de degradação sócio-ambiental da Região Metropolitana de São Paulo. Apesar de um balanço positivo das experiências, fica de fora o efetivo alcance dos projetos, bem como de sua escala de intervenção.
A questão habitacional é retomada em vários ângulos nos artigos de João Alberto Cantero, Caio Santo Amore de Carvalho e Nelson Baltrusis. O primeiro aponta a locação social como a forma mais adequada da produção habitacional, em contraposição à ideologia da casa própria. Além de constituir-se em novo paradigma de qualidade projetual, a locação social permite superar a equação perversa de localização e de viabilidade econômica para uma população de baixa renda, reunindo elementos para a revisão da política habitacional.
O mutirão é dissecado por Carvalho, retomando de forma crítica o debate a respeito do tema, em especial questões como o sobre-trabalho, os limites dos projetos de assessoria técnica, os custos da obra, a necessidade de parâmetros mais flexíveis de legislação e, finalmente, o mito da participação. O autor revela a disputa de bastidores por cargos e fundos públicos que, mais do que atender aos movimentos populares, encobre um real descolamento entre a direção e suas bases.
Baltrusis analisa o mercado imobiliário das favelas, desmontando a tese do economista peruano Hernando de Soto de que a simples regularização fundiária produziria a recuperação urbana. Contrapondo-se a De Soto, o artigo mostra a fórmula só funciona com a necessária ação do poder público na provisão de infraestrutura, estabelecimento de novos e claros marcos regulatórios e, principalmente, regulação do desempenho democrático da indústria da construção. O autor defende a idéia que não existem milagres ou fórmulas mágicas no âmbito da política urbana. É necessária uma política pública de provisão habitacional, uma continuidade dos processos de regularização e urbanização de áreas degradadas e, em especial, a ampliação da ação de agentes privados na produção de habitação de baixa renda dentro do mercado.
Um tema inovador enfocando a interface rural-urbana à luz do caso dos assentamentos rurais de Araras é apresentado por Márcia Renata Itani. A possibilidade de ampliação da inserção produtiva das famílias assentadas seria, segundo a autora, o caminho para a superação dos conflitos existentes com outras formas de ocupação periurbana, o que implica na necessária presença dessas condições para o sucesso do modelo a ser replicado no país.
A modificação perversa da paisagem de Belo Horizonte metropolitana é apontada por Stael de Alvarenga Pereira Costa. A superação desse problema de degradação ambiental deve ser enfrentada, segundo a autora, com um novo modelo de planejamento regional-ambiental, co-responsabilizando atores públicos e privados.
Os três trabalhos que encerram o volume apresentam textos abordando a preservação e o planejamento físico territorial do patrimônio cultural e paisagístico, bem como a questão de destinação dos resíduos sólidos domiciliares em megacidades.
Silvia Passarelli enfoca a importância da identificação de elementos urbanos ao longo da via férrea de Santo André como constituição da identidade de um município fundado no binômio indústria-ferrovia. Além disso, a formulação de uma política de preservação do patrimônio passa pela articulação de diversos níveis de governo interagindo nas diferentes escalas, bem como o envolvimento dos cidadãos na identificação dos bens a serem preservados.
Maria Luiza Marques Dias examina três experiências de escalas e conteúdos diferenciados de valorização do patrimônio em ação planejada: o tombamento da Serra do Mar, conjunto importante de patrimônio natural; a imaterialidade do Projeto Velho Cinema Novo; e o planejamento de Curitiba à luz do conceito de patrimônio. O resultado aponta, nos três casos, que planejamento e preservação não são políticas antagônicas e seus componentes simbólicos são passíveis de apropriação pela população e poder público, gerando a re-significação de uma nova cultura urbanística.
Por fim, a destinação de resíduos sólidos domiciliares, analisada em São Paulo, serve de base para Claudia Ruberg formular uma proposta que opta pela redução do volume de resíduos através da incineração e de uma distribuição das estações de modo a reduzir racionalmente as viagens e a poluição por ela gerada.
Para os organizadores, as publicações das súmulas de trabalhos realizados entre 2004 e 2006 retratam a reorganização do Programa de Pós-Graduação nas novas áreas de concentração e do debate que as caracterizaram. Do nosso ponto de vista esse livro vai, além disto despertar nos leitores a vontade de conferir as teses e dissertações em sua íntegra, e ainda proporcionar, pela sua qualidade e problemas levantados, novos e amplos caminhos de pesquisa que dêem conta do desenvolvimento das nossas cidades.
sobre o autor
Nadia Somekh, arquiteta, é diretora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.