A publicação desta competente seleção de textos desenvolvidos por vários autores a partir de suas teses de doutorado e mestrado permite a um público variado acompanhar o andamento da produção de conhecimento através de pesquisas de Pós-Graduação na área de Arquitetura e Urbanismo. Na apresentação dos 19 textos que compõem o primeiro volume da coleção Arquiteses, os organizadores alertam para a amplitude de campos de pesquisa ali reunidos: história da arquitetura, do urbanismo e da cidade, projeto de arquitetura, tecnologia de projeto e construção e design gráfico e industrial.
Trata-se de uma amplitude que caracteriza a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo desde a sua re-estruturação em 1962, quando a formação em arquitetura passou a englobar, além das tradicionais áreas de projeto, história e técnicas construtivas, o planejamento urbano e o design (gráfico e industrial). A criação do seu programa de pós-graduação, dez anos depois, foi concebida como uma extensão desse quadro, gerando um curso que além de precursor, abriga no seu interior uma pluralidade de temas, abordagens e métodos única no panorama brasileiro.
A introdução produzida pelos organizadores do volume é minuciosa, procurando apresentar com cuidado as características dos textos. A complexidade e o tamanho desse esforço são proporcionais à abrangência de temas e métodos de pesquisa aqui reunidos. Mas a fertilidade dessa pluralidade não é a única qualidade a ser destacada nesta resenha. Algumas questões relevantes emergem da leitura dos trabalhos.
O grande destaque deste volume é a concentração de pesquisas sobre a história recente. Com a exceção da excelente pesquisa sobre o “urbanismo pombalino em Belém” no séc. XVIII, de Yara Reis, o foco histórico principal é o Séc XX . Mesmo quando as pesquisas se estendem ao Séc. XIX, buscam ali as origens de práticas e conceitos que resultaram na condição contemporânea das cidades brasileira. Essa característica é comum a um primeiro conjunto composto pelos textos de Arasawa sobre o papel dos engenheiros na construção de São Paulo entre 1892 e 1940; de Marcos da Silva, com as origens da aplicação de idéias biológicas para entender e intervir na cidade; e de Maia Costa, com a presença norte-americana na formação do pensamento urbanístico paulista (1886-1919).
O principal problema do Séc. XX, comum a um segundo conjunto de pesquisas, é o processo de construção e difusão do moderno no Brasil. O trânsito internacional de variadas concepções de modernidade é objeto que aproxima alguns textos. Salvi se dedica à forte presença norte-americana nos principais projetos de urbanização destacando o papel de Nelson Rockefeller em momentos estratégicos desse processo e ampliando para o período de 1939-1969 a questão do texto de Maia Costa. Veiga de Castro acompanha como o estrangeiro e o nacional se combinam na construção da imagem da cidade moderna em São Paulo através dos escritos de Menotti del Picchia na imprensa dos anos 1920.
Outros trabalhos se debruçam sobre o movimento inverso: o processo como o moderno produzido no Brazil foi recebido no exterior. Cappello o realiza com uma pesquisa ampla pelas revistas européias de arquitetura. Vaz Milheiro prefere escolher o tema da presença da arquitetura tradicional na arquitetura moderna brasileira para acompanhar sua influência na importante pesquisa sobre arquitetura popular realizada em Portugal entre 1955 e 1961.
Contrariando visões simplistas sobre o moderno no Brasil, sua complexidade na relação com a história aflora em mais dois trabalhos. Lia Mayumi nos permite refletir sobre o papel do modernismo brasileiro na invenção do patrimônio histórico colonial a partir da análise de alguns casos de restauro. Breia mostra a difícil substituição do modelo beaux-arts pelo paradigma moderno no ensino de arquitetura do Mackenzie.
Outros dois textos colocam problema da caracterização da produção das décadas de 1960 e 70. Koury recupera para as novas gerações, o papel fortemente ativo que a arquitetura cumpriu para o desenvolvimento dos meios de produção da construção civil nesse período, engajada que estava na constituição de um projeto de nação. Spadoni prefere abordar o mesmo período pelo conceito de transição entre moderno e contemporâneo. Ainda dentro de uma abordagem histórica, a pesquisa de Medeiros recompõe a trajetória de Waldemar Cordeiro com sua atuação de liderança entre os concretistas e a prática profissional de paisagista.
Na seleção da coletânea, poucos trabalhos se afastam da abordagem histórica. Apesar da FAU ser uma instituição que defendeu o projeto de arquitetura como modalidade de pesquisa acadêmica, apenas dois trabalhos podem ser classificados como projetuais. Angelo Bucci realiza uma construção poética dentro da qual o projeto é o esboço de uma disposição espacial para a cidade. O outro trabalho que elabora uma proposição formal é o de Cristiane Bertoldi, graduada na Escola de Comunicação e Artes. A partir de uma reflexão sobre a pobreza do design que impera na industria de revestimento cerâmico, baseada na adaptação de padrões importados de qualidade questionável, Betoldi desenvolve belíssimas propostas que são simuladas em laboratórios de tecnologia. Apesar da sua enorme aplicabilidade no projeto de arquitetura, a ótima pesquisa de Miranda de Andrade que explora as relações entre espaço e produção nos edifícios e escritório permaneceu no campo analítico e não projetual.
Alguns trabalhos apresentam recortes específicos, sem parceiros claros na coletânea, apesar de representarem modalidades de pesquisa importantes na área. Luiz Nunes escolhe a cidade de Santos para acompanhar a relação entre política e planejamento urbano e Mendes André estuda a contribuição do humor do Barão de Itararé ao design gráfico da imprensa brasileira.
O volume “Tempo, cidade e arquitetura” constitui uma dessas poucas oportunidades nas quais o “estado da arte” da produção acadêmica em nossa área é oferecido a um público mais amplo. Não se trata, é verdade, de uma publicação introdutória aos estudos de arquitetura, pois exige alguma familiaridade com sua história. No entanto, qualquer pesquisador, iniciante ou não, deve estar atualizado em relação aos trabalhos mais recentes em seu campo de conhecimento, procurando as possibilidades de interlocução com outras pesquisas recém-concluídas.
Para aqueles que pretendem iniciar um curso de pós-graduação, Arquiteses revelará que a natureza desse percurso é o da produção do conhecimento através da pesquisa. Uma condição muito diversa da imagem amplamente difundida pelo mercado atual de cursos para graduados, que vende a idéia de que uma continuidade dos estudos facilitaria a inserção profissional. Uma iniciativa como essa confirma que, ao menos para os melhores centros de pós-graduação do país, essa atividade se relaciona à pesquisa de ponta, tendo como objetivo ampliar o conhecimento disciplinar e, a partir dela, para a construção, a indústria, a cultura e a cidade.
sobre o autor Renato Anelli é professor livre-docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo.