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my city ISSN 1982-9922

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Leia o artigo sobre a cidade histórica de Paraty, que abriga desde 2003 a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, e conheça mais sobre esse evento que trouxe significativas mudanças à constituição urbana da cidade.

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MUNHOZ, Mauro. Eventos culturais e seu impacto nas cidades. Festa Literária de Paraty – Flip. Minha Cidade, São Paulo, ano 12, n. 138.03, Vitruvius, jan. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.138/4160>.



Imagine uma bucólica cidade histórica no Brasil. Você caminha por suas ruas de pedra enquanto simpáticos moradores o cumprimentam. É um passeio agradável, e seu percurso segue calmamente em linha reta. Ao final da rua, é possível avistar o mar. Dezenas de barcos se apinham no cais. Ao fundo, emoldurando a água, aponta a mais bela e verde mata já vista. É uma cidade dos sonhos e, quase trezentos anos depois de sua fundação, ela se encontra preservada aos modos do século XVIII. A cidade perfeita. Bem, perfeita até certo ponto, porque aqui, nesta cidade bela, conservada e aparentemente propícia às mais criativas contribuições, nenhum projeto consegue ir para frente.

É quase impossível acreditar que um município a beira-mar, situado entre dois rios e a Mata Atlântica, possa mesmo ter esse estigma de fracasso que Paraty, no litoral fluminense, carrega. Ou melhor, carregava – há dez anos a Casa Azul, organização da sociedade civil de interesse público, com projetos desenvolvidos para a revitalização urbana sustentável de Paraty, deu início a uma das mais positivas reviravoltas da história desta cidade. Revertendo a ordem local, em que a quase totalidade dos planos jaz eternamente no papel, foi concebido um festival literário nos moldes de bem-sucedidas experiências como a de Hay-on-Wye, na Inglaterra, uma empreitada cultural que nos modificou a todos, Casa Azul e Paraty. O ano era 2002, e afloravam ali os contornos da Festa Literária de Paraty, a Flip.

Paraty, uma cidade de beleza singular, esteve isolada ao longo de mais de 100 anos, antes da inauguração da rodovia Rio-Santos (BR-101), em 1973. Antes do impacto gerado pela abertura desta estrada e a consequente “invasão” de turistas e veranistas, um mundo muito peculiar escorregou para dentro dela – era o mundo dos intelectuais, do Cinema Novo, de atores como Paulo Autran, Hélio Braga, Maria Della Costa, de artistas como Djanira e Mark Scheffer, todos eles vindos de cidades grandes para fixar morada naquele que era considerado, ainda, o paraíso. Deu-se, assim, uma mistura de repertórios onde, até hoje, a intelectualidade se alia às raízes, uma amálgama cultural tão específica que é capaz de defender Paraty de invasões destrutivas ao mesmo tempo em que também cria uma circunstância onde é trabalhoso fazer algo positivo. Afinal, o isolamento físico também compreende o isolamento das instituições em geral e das regras – e qual projeto se concretiza sem planos nem regulamento?

Pensada para ser um evento distante dos extremos do comercial e do acadêmico, a Flip tem como princípio fundamental a permanência. Esta permanência define-se em diversas frentes, das questões territoriais às sociais, caracterizando o festival como algo diverso do que comumente se vê – eventos “alienígenas” que, a exemplo de um disco voador, pousam na cidade, ficam cinco dias e depois partem, deixando pouco para trás. A Flip se beneficia de Paraty, e Paraty se beneficia da Flip. A Flip não existe sem a comunidade local simplesmente pelo fato de que existe exclusivamente por ela. Em ordens práticas, produtores, montadores e recepcionistas, por exemplo, são habitantes de Paraty, e oferecem ao público um trato informal e não-pasteurizado. Principal anfitriã do evento, a cidade participa ativamente dos cinco dias de duração da festa, o que contribui para que a experiência dos autores e visitantes seja positiva e agradável.

Tanto zelo resulta em indicadores estimulantes. Em recente levantamento realizado pelo Instituto Datafolha, é possível verificar que 95% dos que foram à edição 2011 do festival mostram-se dispostos a voltar no ano seguinte, e que a nota média dada à Flip é de 4 sobre 5. Trata-se de um turismo específico, o turismo cultural. A mesma pesquisa mostra ainda que 32% dos visitantes definem sua motivação como “interesse cultural” e, destes, 24% são ainda mais específicos e fixam a razão de sua ida à Flip no “gosto pela leitura”. O Ministério do Turismo brasileiro, em parceria com o Ministério da Cultura e o Iphan, elaborou uma definição específica para este tipo de atividade, dada a sua abrangência e diversidade, e concluiu que ela baseia-se, fundamentalmente, nos conceitos de valorização, preservação e conservação. Diferentemente da atividade turística em geral, o turismo cultural revela-se, assim, um turismo qualificado (e superavitário: Paraty, durante os cinco dias da Flip, recebe mais de R$ 10 milhões).

Ainda dentro do conceito de permanência, o objetivo é que estes recursos disponibilizados – tanto os de ordem material quanto os imateriais – fiquem em Paraty e gerem resultados e transformações que se incorporem à cidade. Especialmente transformações urbanas e sociais. Em conseqüência da inauguração da BR-101, a partir dos anos 1980, paulistas e cariocas começaram a comprar as casas do centro histórico e das costeiras, casas à época habitadas por pessoas de Paraty. Esta população, com a chegada dos “estrangeiros”, acabou sendo removida para a periferia, para os bairros da Ilha das Cobras e Parque da Mangueira – as mais populosas comunidades do município, cada uma delas hoje com 2 mil e 7 mil habitantes, respectivamente. É um momento simbólico para Paraty, a exemplo do que pôde ser percebido em outros casos semelhantes no território nacional.

O Recife antigo e Salvador, na Bahia, por exemplo, sofreram processos parecidos. A Operação Pelourinho promoveu uma “reforma-relâmpago” no centro histórico da cidade em 1992, a fim de “enobrecer” aquele que viria a ser o maior ponto turístico baiano – para que isso acontecesse, na visão dos governantes, era necessário expulsar os antigos moradores. Tanto nas cidades do nordeste brasileiro quanto em Paraty, com a modificação do rosto da população do centro histórico, é possível assinalar o início de um processo de gentrificação. Questão complexa para qualquer evento de grande porte como a Flip, este conceito recebe toda a atenção da Casa Azul, que busca fazer sua parte e agir como um dos fatores de reação à problemática. A segunda edição da Flip, em 2004, é um ponto emblemático desta tentativa de combate à gentrificação da cidade, pois foi neste ano que foi realizada a mais importante mudança espacial do festival.

Hoje a Flip se desenrola, em seus cinco dias, em uma organização que compreende atividades espalhadas por diversos pontos da cidade, e também em tendas erguidas especialmente para o evento – a Tenda dos Autores, onde acontecem as mesas literárias, e a Tenda do Telão, que transmite esses debates. No primeiro ano da Flip, quando estas mesas de autores ainda se realizavam na Casa da Cultura de Paraty, a Tenda do Telão foi plantada na Praça da Matriz, um desenho óbvio que foi revisto assim que se tornou evidente a necessidade de valorizar Paraty e seus habitantes, e evitar que o rio continuasse a ser uma espécie de “fundos” da cidade, o local dos artigos de “segunda classe”. Já na segunda Flip, a Casa da Cultura havia ficado pequena para o número de interessados nas mesas, e deu lugar à definitiva Tenda dos Autores. Com base nisso e na decisão de rever a ordem original, foi decidido inverter o posicionamento da primeira edição, transferindo-se o coração da Flip – os autores – para a outra margem do rio, e abrindo, assim, o Centro Histórico para o Telão e para os paratienses nativos e paratienses em formação.

Para produzir a Flip, a Associação Casa Azul se beneficia, em proporções variáveis a cada edição, de leis de incentivo como a Lei Rouanet – que permite às empresas abaterem de seu Imposto de Renda devido os investimentos em cultura –, do apoio financeiro do Governo do Estado do Rio de Janeiro e do Ministério do Turismo, da lei do ICMS do governo fluminense – que oferece desconto neste imposto àqueles que investirem em projetos culturais –, e também do patrocínio privado direto e de recursos próprios obtidos, por exemplo, através da bilheteria e da loja que funciona durante o evento. Considerando-se que os autores convidados não recebem cachê, o dinheiro arrecadado pode ser aplicado na infraestrutura da festa e nos projetos educativos desenvolvidos pela Casa Azul em Paraty, voltados aos públicos infantil e jovem, e ligados visceralmente aos ideais da associação desde sua fundação.

Flipinha e Flipzona são seus nomes de batismo. O primeiro, voltado aos pequenos cidadãos de Paraty, busca atuar na formação de leitores críticos e reflexivos, aptos a pensar e intervir no futuro de sua cidade. Durante a Flip, oficinas de arte e contação de histórias fazem parte do programa, e ao longo de todo o ano o projeto se estende com atividades cujos resultados possam ser apresentados ou expostos durante o evento principal. Seu conteúdo inclui informações e sugestões de leitura do autor homenageado da Flip e dos autores convidados, bem como propostas de exercícios realizados a partir de tais obras. Durante todo o ano, a equipe do Núcleo de Educação e Cultura da Associação Casa Azul oferece suporte prático e teórico aos educadores, tanto para o desenvolvimento dos projetos que são apresentados quanto nas atividades de leitura realizadas nos outros onze meses. Prestigiando o público jovem surgiu a Flipzona, com braços que visam à produção audiovisual, cultural e a comunicação nas redes sociais. Estudantes de escolas públicas e privadas da zona rural e urbana de Paraty, os trinta adolescentes participantes desenvolvem curta-metragens, animações e documentários sobre o patrimônio cultural da cidade, elaboram conteúdo para as ferramentas virtuais da Flipzona e ajudam na realização de eventos culturais.

Simpática a todas as iniciativas do festival, do show de abertura às conquistas dos projetos educativos, a mídia realiza uma cobertura de proporções inimagináveis desde suas primeiras edições e vem dedicando a cada ano mais e mais espaço em seus telejornais, veículos impressos e cadernos de cultura em geral. Ao lado dos parceiros e patrocinadores, que entendem e embarcam na proposta do minimalismo e da sutileza visual da Flip, é fundamental afirmar o status de capital positivo que a imprensa desempenha na divulgação do festival. Por compreender que o evento vai além dos cinco dias de sua duração, a cobertura e sua consequente visibilidade para a cidade de Paraty são inigualáveis. Cobertura esta, aliás, que cresce a galopes – a valoração de mídia espontânea mostra que, dos pouco mais de R$ 20 milhões de retorno da primeira edição, logo houve um salto para quase R$ 65 milhões, e que, em 2011, este pulo ultrapassa a marca dos R$ 120 milhões. Para se ter uma ideia, é mais do que o governo brasileiro, através da Embratur, investe em publicidade do Brasil no exterior.

Sob esta ótica, torna-se evidente a transformação urbana que um projeto cultural pode trazer a um município, algo que se revela tão poderoso quanto uma revitalização de espaços públicos, por exemplo. Intervenções físicas sem o envolvimento das pessoas – a troca de um pavimento, a colocação de um banco, uma nova árvore – compartilham da mesma dimensão de importância que uma festa literária. Considerando-se que o uso vem antes da configuração física de um projeto, desaparece a idéia de que há a formulação, o desenho, a construção e só depois a participação popular. Entre os maiores desafios da Associação Casa Azul está o desejo de encurtar o caminho que separa o plano das instituições e o das relações reais, e isso só pode ser conseguido através do diálogo e do envolvimento humano. Não à toa, o modelo de governança vigente compreende duas sedes, uma na capital paulista e outra no coração de Paraty, esta empregando em sua totalidade força local viva e atuante.

Além do diálogo, existem dois outros conceitos fundamentais em qualquer processo criativo, seja ele o desenho de uma nova casa, a concepção de um romance ou a criação de um festival cultural numa bucólica cidade histórica no Brasil – é preciso ler e compreender. A observação e a interpretação do repertório cultural, do modo de vida de um grupo, das condicionantes climáticas, físicas e formais do território possibilitam o processo de transformação de Paraty. Oswald de Andrade, homenageado na edição de 2011 da Flip, dizia que só lhe interessava aquilo que não era seu. Na Casa Azul também é assim, o “outro” é fundamental – se deixa de ser, a invenção se transforma em algo que não se conecta.

A Flip se conecta com Paraty a partir do momento em que se mostra uma ação enraizada e universal. Para reconhecer um bem como Patrimônio Histórico da Humanidade, a Unesco exige que seja algo singular, que só aconteça naquele lugar e naquela circunstância, mas que, ao mesmo tempo, tenha um valor universal, que ilumine e sirva ao mundo todo. Paraty é isso, a Flip é isso. Não existe nenhum outro evento como a Flip. Ambas, a cidade e seu festival, tem a mesma vocação: ser um lugar que cada vez mais refina, valoriza e perpetua valores singulares e locais – e que também, a cada vez mais, está aberta para o mundo e seus visitantes.

sobre o autor

Mauro Munhoz é arquiteto e urbanista formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) em 1982, e mestre pela mesma escola em 2003. A pesquisa para sua tese sobre a borda d’água de Paraty levou à criação da Associação Casa Azul. Dessa iniciativa, nasceu em 2003 a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), da qual Munhoz é diretor geral e de arquitetura.

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