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my city ISSN 1982-9922

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No conto literário “Solidão”, Ítalo Stephan e Camilla Carneiro se inspiram no fato de que mais de 20% das cidades brasileiras estão perdendo população.

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STEPHAN, Ítalo Itamar Caixeiro; CARNEIRO, Camilla. Solidão. Uma história real de uma cidade imaginária. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 199.03, Vitruvius, fev. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.199/6416>.


Cidade de Solidão, em algum lugar imaginário do interior do Brasil
Desenho Ítalo Stephan


A cidadezinha Solidão, como passou a ser chamada por último, já teve seus tempos de glória. Já se chamou Santa Cruz do Eldorado, depois Vila Esperança. Nela já se tirou ouro, plantou-se cana-de-açúcar, café, criou-se gado; lá já teve estrada de ferro e até indústria. Teve em seu território muitos mineradores, fazendeiros, trabalhadores rurais, comerciantes e funcionários públicos. Com o tempo, foram tirando tudo dela, esgotando todos os recursos que suas terras podiam oferecer. Por isso, a população foi diminuindo, diminuindo até quase acabar. Das quase vinte mil almas do inicio do século passado, não sobraram na cidade nem cem e, no campo, nem sessenta delas. Solidão tem mais idosos que crianças. A renda do município quase se resume ao Fundo de Participação e às aposentadorias.

Em um artigo publicado num amarelado jornal da capital, Oiliam, um falecido historiador residente descreveu: “Na época da mineração, veio muita gente. Mexeram nas encostas dos morros, tiraram o ouro que tinha, acabaram com a vegetação nativa e assorearam o rio. Depois que o ouro acabou, plantaram cana-de-açúcar”. E continuou: “construíram engenhos, desmataram os vales, plantaram, colheram, queimaram o canavial; novamente plantaram, colheram, queimaram e foi assim até empobrecer de vez a terra. Empobreceu-se também a população, pois muita gente foi embora de Solidão”. Oiliam completou: “décadas depois, plantaram café, trouxeram a ferrovia e esgotaram o que sobrou do solo. E foi mais gente embora. Tentaram criar gado para produzir leite, mas o pasto já não era bom. Trouxeram uma fábrica de laticínios, mas não havia leite. Por fim, desativaram a ferrovia”.

O acesso à cidade mais próxima nunca era asfaltado. Fecharam os armazéns, fecharam o comércio. Veio enchente, matou muitos; veio deslizamento de terra, morreu mais gente. A cidade ficou pobre e muitos solidenses foram embora para a capital. Por fim, veio a lama, que cobriu parte da cidade e adoeceu muita gente e mandou outros tantos embora.

Seu Wilson, um ex-ferroviário comenta: “aqui é a cidade do já teve”. Conta que muitas casas foram abandonadas e, com o tempo, algumas se desmancharam. Sobraram ruínas e umas poucas casas persistem com gente convivendo com goteiras, cupins, mofos, morcegos e ratos. Das igrejas, uma desabou, uma foi demolida e a que restou teve sua última reforma há mais de cinquenta anos. Dos armazéns, dois foram demolidos, um virou mercearia e outro um templo evangélico. A secadora de café está abandonada; a estação de trem virou depósito da prefeitura, mas ficou abandonada por mais de cinquenta anos. Dos engenhos de cana-de-açúcar só sobrou um. Das fazendas de café sobraram três casarões e apenas um está habitado. Das três praças bonitas, uma deu lugar ao posto de saúde e outra ao posto de gasolina que fechou e agora é um terreno baldio. A cidade já teve banda, cinema, sorveteria, clube, restaurante e até um jornal semanal.

Seu Wilson, completa: “É... já teve. Ainda me lembro do barulho do apito e do cheiro que o trem espalhava quando chegava; mas assim como a fumaça se espalha e some, tudo aqui parece estar virando fumaça. Vejo que a paisagem do campo também mudou: as culturas de milho, café e feijão deram lugar a um matagal rasteiro, onde pastam alguns bois magros. Já não há mão-de-obra para o cultivo, pois toda aquela gente foi embora e, se voltar, é só quando se aposentar...”

A quase centenária Dona Nega comenta: “é difícil fazer as coisas darem certo aqui”. Uma vez, seu sobrinho resolveu voltar e aplicar o que aprendera na faculdade: “conhecia bem a história de sua cidade e queria fazer algo por ela. Em suas pesquisas, descobriu que até a história do seu povo estava se perdendo. Os papéis amarelados pelo tempo, esquecidos no fundo de gavetas, se desintegravam. Ali estava perdida a memória de pessoas que lutaram para construir uma cidade melhor, onde todos pudessem ter uma boa qualidade de vida, sem precisar buscar emprego na cidade grande. Motivado por esse resgate histórico e cultural, quis interferir na realidade de seu município. Procurou o prefeito e por um tempo, conseguiu sensibilizá-lo, sendo por ele contratado”.

O entusiasmado cidadão trabalhou para criar uma política de patrimônio cultural; fez projetos de melhorias da praça, para conseguir recursos para o tratamento de esgoto da cidade, para restaurar a igreja. Conseguiu trazer pequenas indústrias e melhorar a assistência técnica aos produtores rurais. Dona Nega continua: “os recursos chegaram, mas nada foi aplicado onde devia. Por um tempo a administração funcionou, veio dinheiro pelo funcionamento da política de patrimônio e para o saneamento. Mas o dinheiro foi parar na reforma do apartamento do prefeito, na capital e no imenso parque de exposições, usado uma vez por ano. O dinheiro acabou, o técnico agrícola foi embora. E meu sobrinho, que perdeu as esperanças, foi embora também”.

Na eleição seguinte, quando mais gente tinha ido embora da cidade, o prefeito foi reeleito. E o que ele fez durante a campanha? Asfaltou em frente à igreja – que não foi restaurada – e ofereceu transporte gratuito para as pessoas, além de outras obras. Ganhou a eleição com facilidade.

A professora Elza também tem a sua história: “trabalho em uma escola rural, com turma multisseriada e ando cerca de trinta quilômetros todos os dias para lecionar. Apesar de concursada, por questões políticas, fui afastada de meu trabalho pelo prefeito. Recebia um terço do salário mínimo nesse período. Ainda assim, consegui manter meus dois filhos na Universidade”.

Continua: “na área rural de Solidão, restam apenas nove crianças. Muita gente foi embora à procura de trabalho e de escola para seus filhos. Eu sigo firme, lutando pelos meus direitos e pelo desejo de continuar na minha cidade natal”.

Vários anos depois, conforme declara Dona Cora, professora aposentada e ex-vereadora, foi a vez de um novo prefeito – Alonso – querer fazer as coisas direito. Era jovem e conseguiu se eleger por uma margem muito pequena de votos.

Diz Dona Cora: “ele manteve a cidade limpa, fez projetos, trouxe recursos para aplicar em saneamento e proteger as nascentes; criou um código de obras; criou uma biblioteca e um pequeno museu. Mas não presenteou os apadrinhados políticos, não aumentou seu patrimônio, não doou telhas e tijolos, não asfaltou o trecho que faltava perto da igreja. Ninguém respeitou o código; a biblioteca e o museu fecharam. Nunca mais foi reeleito”. Enquanto isso mais gente foi embora.

Nesses dias, Solidão tem um prefeito, o Pampinha, em seu quinto mandato. Depois que a lama tóxica invadiu metade das casas; depois que morreram várias pessoas soterradas e outras por complicações respiratórias, só ficou na pequena cidade quem não quis e quem não conseguiu ir embora. Ninguém quer voltar. Restou pouco de Solidão, que aos poucos vai ficando parecida com aquela “aldeia de vinte casas de barro e taquara” e que um dia será “arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens”, que Gabriel Garcia Marques chamou de Macondo. Assim como Oiliam, as memórias de Seu Wilson, Dona Nega, Professora Elza e Dona Cora se transformarão em fumaça e desaparecerão para sempre.

sobre os autores

Ítalo Stephan é arquiteto e urbanista, doutor pela FAU USP, professor da Universidade Federal de Viçosa.

Camilla Magalhães Carneiro é graduanda em Arquitetura e Urbanismo no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa.

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