História da arte como historia da cidade gira em torno de três importantes conceitos levantados por Giulio Carlo Argan: cidade, objeto e arte. Segundo Argan, a obra de arte determina um espaço urbano: “o que a produz é a necessidade , para quem vive e opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação espacial em que opera” (Argan, p. 74, 1984). Argan vê o espaço urbano de uma forma ampla, parte de um todo e que abrange desde o quarto de dormir até a zona rural. Aldo Rossi, assim como Argan, também desenvolveu durante vários anos uma pesquisa acerca das questões que envolvem os espaços urbanos e seus problemas. Em sua principal obra A arquitetura da cidade, Rossi escreve sobre fatos urbanos, memória privada e reflete sobre o cotidiano das cidades. Questões ligadas as duas principais idéias discutidas por Rossi: os fatos urbanos, que estão em ação permanentemente e universalmente dentro das cidades e os problemas históricos ligados a estes fatos urbanos.
Diante dos conceitos estabelecidos por estes dois autores, percebeu-se que é possível traçar diversos e oportunos paralelos entre eles, e mais especificamente, acerca da problemática levantada por Argan a respeito da obra de arte como determinante de um espaço urbano – que Rossi chama de fatos artísticos – e os problemas de preservação e conservação dos patrimônios históricos das cidades.
Uma construção isolada em uma zona rural pode nos dar a nítida impressão de estarmos diante simplesmente de uma obra de arquitetura, entretanto, um grupo de construções imediatamente nos sugere a possibilidade de se criar uma arte diferente. Se pensamos assim, podemos compreender melhor quando Argan considera arte e cidade como uma só coisa. Segundo Argan, não deve haver uma separação entre zona urbana e zona rural, como também entre zona “histórica” e zona “moderna”, afinal todos estes espaços vistos como um todo constroem a cidade. Existe uma arte do relacionamento dos fatos urbanos, que ao todo e juntos, formam o ambiente urbano.
Primeiramente é importante que se compreenda, segundo Rossi, o que vem a ser os fatos urbanos. De acordo com o autor, fatos urbanos – igrejas, casas particulares, monumentos, praças, etc. – são singulares, únicos, pedaços de cidades que formam esta. Rossi divide estes fatos em área-residência e elementos primários, ou seja, esfera particular e esfera privada.
Quando Rossi escreve sobre fato urbano como fato artístico chegamos ao primeiro e importante paralelo que podemos fazer entre o que pensam ele e Argan. Para Rossi, “na natureza dos fatos urbanos há algo que o torna muito semelhante, e não só metaforicamente, à obra de arte” (Rossi, p. 18, 1966). De acordo com o autor tal caráter artístico dos fatos urbanos está ligado à sua qualidade e unicidade. Aqui podemos compreender que, quando Rossi escreve sobre este fato urbano, ele está se referindo a uma ponte, uma rua, uma casa particular ou a um bairro. Argan quando escreve sobre esta questão vai mais longe, para ele fatos urbanos são todo e qualquer tipo de arte, “(...) todavia uma cidade não é apenas produto das técnicas de construção. As técnicas da madeira, do metal, da tecelagem, etc. também concorrem para determinar a realidade visível da cidade, ou melhor, para visualizar os diferentes existenciais da cidade” (Argan, p. 75, 1984).
Argan também nos alerta – de forma até mesmo catastrófica – a respeito do que pode acontecer a uma sociedade que não valoriza a história e vê seus objetos de arte como fragmentos do passado e fora de um contexto atual. O que, segundo o autor, faz com que se considere apenas como obras de arte aquilo que está dentro dos museus, o que conseqüentemente contribui para que cada vez mais os fatos urbanos não sejam vistos como fatos artísticos. Rossi também prevê isto, talvez de forma menos fatalista, entretanto, para ele os fatos urbanos são fatos artísticos quando são coisa humana por excelência:
“Como os fatos urbanos são relacionáveis as obras de arte? Todas as grandes manifestações da vida social têm em comum com a obra de arte o fato de nascerem da vida inconsciente , esse nível é coletivo no primeiro caso e , individual no segundo, mas a diferença é secundária, porque umas são produzidas pelo público, as outras para o público, mas é precisamente o público que lhes fornece um denominador comum” (Rossi, p. 19, 1966).
Sobre isto, Rossi ainda cita Maurice Halbwachs, quando este vê nas características da imaginação e da memória coletiva o caráter típico dos fatos urbanos. Portanto, Argan e Rossi afirmam, de formas particulares, que a cidade é coisa humana, obra produzida por nossas mãos, testemunho de memória, valores e, é portanto, objeto e fato artístico.
Acerca da preservação e conservação dos fatos urbanos, ou seja, fatos artísticos, pode-se fazer também outro paralelo entre o que escreve Rossi e Argan. O segundo nos fala sobre cidade real e cidade ideal e afirma que “a relação entre quantidade e qualidade é proporcional no passado e antitética hoje, e está na base de toda problemática urbanística ocidental” (Argan, p 74, 1984), ou seja, para Argan uma ruptura entre cidade histórica e cidade moderna gera um sentido anti-histórico ao núcleo novo da cidade e um caráter somente histórico ao núcleo antigo. Assim, a cidade moderna cresce sem grandes preocupações qualitativas, enquanto que a cidade histórica se torna encerrada, estagnada. Muitas destas estagnações se refletem em falta de preservação e restauração. Portanto, dos dois lados temos a problemática qualitativa.
Rossi, sobre este assunto, destaca a situação da cidade de Bari, em que zona antiga e nova não se relacionam, sendo assim, dois extremos dentro da mesma cidade. De acordo com Rossi é exatamente isto que não pode acontecer. Para o autor, o que enriquece a cidade e os fatos urbanos – tantos antigos, quanto novos – é a sua constante transformação. Ou seja, os diferentes tempos presentes em um mesmo núcleo urbano, o que demonstrará uma cultura em transformação. Argan e Rossi se definem claramente contrários à idéia de uma cidade histórica intacta. Rossi dá um outro exemplo sobre este fato ao citar a cidade de Moscou e sua zona periférica. Os diversos tempos presentes nesta cidade coexistem proporcionando a sensação de uma cultura em transformação, ou seja, uma fruição estética. Entretanto, Rossi destaca que para isto deva haver algum controle, o que nos remete novamente ao conceito da qualidade destes fatos urbanos.
Dinamização da cidade, este termo pode sintetizar o que Argan e Rossi compreendem como continuidade e desenvolvimento de cidade histórica e cidade moderna. A cidade antiga não deve se tornar obsoleta e estagnada, seus monumentos devem ser vistos como fatos artísticos, mesmo estando fora do museu, e assim, a cidade nova não se torna anti-histórica. Argan escreve sobre uma contraposição que existe entre cidade antiga e cidade nova, quando esta não possui instituições carismáticas e acaba por transformar-se desordenadamente.
Um paralelo entre História da arte como história da cidade e Arquitetura da cidade contribui para que se compreenda melhor importantes pontos levantados pelos dois autores. Fatos urbano-artísticos devem fazer parte de nossas vidas, e talvez por isso, Argan não tenha apenas escrito sobre o tema, ele enfrentou a cena dura das ruas quando aceitou tornar-se prefeito de Roma. Foi a transposição imediata das idéias para a prática. Uma das conclusões que se chega ao ler seu livro é a de que Argan nunca se cansou da história, e portanto – como ele mesmo disse – nunca foi um utopista. Decidiu sair às ruas, não para protestar, mas para fazer o que lhe cabia. Seu sucesso em Roma foi discutível, mesmo porque a ex-capital do mundo talvez seja ingovernável. O que importa é o fato concreto de Argan ter colocado em prática suas idéias sobre a ação política e para a urbe.
sobre o autorCristiane Alcântara é Designer. Atualmente, conclui o Mestrado em Arte – na linha de Teoria e História – pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília, UnB.