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GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya. Influência da casa bandeirante na construção sulina. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 034.03, Vitruvius, out. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.034/3175>.


Em 18 de dezembro de 2003, quando participei da banca de avaliação da dissertação Antigas fazendas sulinas: no caminho das tropas do Planalto Médio – século XIX, do professor, arquiteto e urbanista Nery Luiz Auler da Silva, no programa de Pós-Graduação em História, da Universidade de Passo Fundo, comecei dizendo que, apesar de não ser cristã, gostava de presentes de fim de ano. Essa dissertação tinha sido por demais generosa para mim e, a partir da presente publicação acredito que para aqueles que se interessam pelas várias histórias, dos diversos lugares, das diferentes arquiteturas rurais sulinas. Conhecimento tão raro e tão necessário. Em especial, será apaixonante para aqueles que, diante das dificuldades da atual conjuntura internacional, dão ênfase ao pensamento e às ações locais, porque compreendem o valor da existência das estruturas ambientais que resistiram através dos tempos e, igualmente, entendem que essas constituem suporte para planos e gestões atuais e futuros.

Nessa agradável tarefa de apresentar o presente texto, é preciso dizer que, incansavelmente, com seguras passadas, a narração acompanha passo a passo o extenso e árduo caminho realizado pelas tropas de mulas e de homens pelas terras do Planalto Médio. Como no emaranhado enfrentado pelos pioneiros, não há desvios, Nery segue com firmeza pela farta e adequada documentação oral, manuscrita, impressa, iconográfica com que se envolve. A linguagem é, surpreendentemente, didática. Transita com facilidade entre diferentes escalas, vai do espaço territorial a minúcias de detalhes técnicos e construtivos.

Tem-se a emoção de viajar pelas passagens recém-abertas pela ocupação luso-brasileira, através da região dos atuais municípios de São Borja, Cruz Alta e Vacaria, para daí tomar o rumo da grande feira de animais de Sorocaba. Ao longo dessa rota, a sensação adentra detidamente por quatorze fazendas pastoris. Penetra pelo espaço privado das casas e dos sobrados senhoriais. Porém, não encontra as características das fortificações apresentadas nas vivendas das estâncias da região da campanha. Apesar de serem habitações assoalhadas e forradas, o autor e o leitor vão topar com o despojamento em relação aos imóveis e aos móveis. Talvez, a falta de ornamentação, de requinte e de conforto revele o gosto pela austeridade, comum aos militares, maioria dos proprietários dos criatórios levantados.

Em um apêndice fora da sede, a percepção alcança a cozinha do senhor, mais afastada ainda, no quintal ou no galpão; a visão se depara com a cozinha suja, com o forno de pão e com o poço de água.

As impressões atravessam galpões, construção típica nos estabelecimentos pastoris rio-grandenses, com funções domésticas e produtivas. Um, sem forro, de chão batido ou de piso em pedras irregulares, acolhe as despensas; bem como as casas de carne, de embutidos e de charque, os quartos de dormir de peões, de criadas e de escravas. Outro, mais rústico que o anterior, tem o calor do fogo de chão, a casa dos arreios, os depósitos de sal, o quarto de hóspedes, às vezes, com piso e forro de madeira, e mais quartos de peões. Mais precário de todos, o terceiro galpão conta com estrebarias, currais, galinheiros, pocilgas, paios, depósitos de ferramentas e senzalas para os homens. A minuciosa descrição é sempre acompanhada das técnicas e materiais utilizados nas edificações e nas estruturas que dão apoio aos trabalhos realizados ao ar livre. Aí o percurso atravessa vários tipos de mangueiras para a encerra de animais.

Portanto, são inúmeras as reflexões que podem ser trabalhadas a partir desta pesquisa. Chamo a atenção para duas delas. A primeira diz respeito ao discurso referente ao abrandamento da escravidão sulina. É fácil imaginar patrões e cativos, lado a lado, tropeando, levando os animais das fazendas e estâncias para locais de comercialização do gado. Porém, nos inventários dos fazendeiros do Planalto Médio do Rio Grande, o autor registra a inexistência de trabalhadores escravizados com a ocupação de tropeiro. Quando tratei o mesmo tipo de documentação, mas referente aos estancieiros e aos charqueadores da região de Pelotas, centro meridional escravista de manufatura das carnes salgadas da colônia e do império do Brasil, o mesmo ocorreu. Nery Luís e eu encontramos apenas campeiros, quer dizer, aqueles cavaleiros que no máximo chegavam aos limites dos campos de seus senhores. Igualmente, as pesquisas se aproximam quando é demonstrado que a metade da população escravizada estava entre 14 e 35 anos de idade. Mais coincidência aparece entre as estâncias da Campanha e as fazendas do Planalto – as mulheres (sempre em menor número) e homens escravizados não compartilhavam os mesmos espaços. Outro duro golpe nas hipóteses que tentam provar a freqüente presença de famílias escravas nos estabelecimentos rurais do Rio Grande. O número de cativos nas fazendas estudadas demonstra que não é pequena a escravidão no mundo pastoril do sul do país. Enfim, os achados vão paulatinamente dando cabo aos pensamentos que tentam diminuir e amenizar o cativeiro no estado da fronteira meridional.

Um segundo ponto que trago à discussão é a influência das soluções paulistas nas construções sulinas. Em História da casa brasileira, o pesquisador, arquiteto e urbanista, Carlos Lemos, professor da Universidade de São Paulo, diz:

“Neste mesmo século [XVIII], os paulistas também iniciaram o comércio de mulas e de cavalos, trazidos do Rio Grande do Sul para a feira de Sorocaba, transformando o itinerário das tropas num vasto cenário de troca de informações. Esses contatos realizados no interior foram importantes principalmente quanto à disseminação das técnicas construtivas, mas não foram fundamentais na divulgação dos partidos arquitetônicos ou programas residenciais.
Embora a taipa de pilão, técnica vinda de São Paulo, tenha sido usada nas charqueadas gaúchas, por exemplo, as residências daqueles complexos de indústria agropastorial nada têm a ver com a casa paulista”.

Por um lado, nem nas fazendas do Planalto Médio, nem nas estâncias e charqueadas, foram encontradas taipas de pilão. No caso das charqueadas, foi verificada a produção de tijolos e telhas, nos períodos da entressafra da matança, como uma produção alternativa à salgadora. Nesse mesmo caso, as primeiras edificações eram de pau-a-pique. Logo em seguida, foram substituídas por alvenarias de tijolos de barro cozidos. Dos quatorze estabelecimentos estudados por Nery Luís, apenas um é de taipa, mas, taipa de sopapo, conhecida também como pau-a-pique. Metade das residências analisadas são de alvenaria de pedras argamassadas com barro, quase 40% são de alvenaria de tijolos, duas têm paredes de madeira. Portanto, a taipa de pilão, técnica utilizada em São Paulo, não teve influência no Planalto Médio, nem alcançou a área da fronteira. Raro é o uso dessa técnica construtiva no Rio Grande do Sul.

Por outro lado, nas fazendas do Planalto Médio, os levantamentos realizados demonstraram a influência da casa bandeirante na disposição dos ambientes que compunham as sedes das fazendas do Planalto. Conclusão de extrema importância. Independentemente, do fato de as plantas baixas apresentarem a formas de “L”, de um “U”, ou outra, quase que permanentemente sobressai o retângulo dos paulistas. Não há como negar.

Além da discussão acadêmica, que propicia e que qualifica ainda mais o trabalho, essa investigação colabora na produção do conhecimento sobre a história das arquiteturas e das cidades gaúchas, pouco valorizadas, exatamente, pela quase inexistência de pesquisas. Enquanto isso, é iminente o risco que corre este patrimônio, ou pior, como denuncia Nery Luís, “inexorável perda”.

Antigas fazendas sulinas: no caminho das tropas do Planalto Médio, século XIX fornece novas e importantes informações sobre a temática, possui atrativos para pesquisadores e para apreciadores de uma boa leitura.

[o presente texto é a “Apresentação” do livro Arquitetura rural do Planalto Médio. Século XIX: antigas fazendas, de Nery Luiz Auler da Silva, Porto Alegre, Imprensa Livre, 2003.]

sobre o autorEster Judite Bendjouya Gutierrez, arquiteta e urbanista, doutora em História do Brasil, professora da Universidade Federal de Pelotas

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