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GUERRA, Abilio. Niemeyer e Artigas: sobrevivências da tradição clássica. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 034.02, Vitruvius, out. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.034/3176>.


Na segunda metade da década de 70 do século passado, um filme com nome curioso tornou-se cult entre os cinéfilos brasileiros. Jonas que terá 25 anos no ano 2000 – eis o nome do filme! – trazia como diretor o hoje quase esquecido suíço Alain Tanner e tinha como protagonistas da história os participantes das manifestações estudantis e operárias de maio de 1968 em Paris. Quase uma década mais velhos, defrontam-se com o fracasso cultural das idéias que defendiam. A sociedade mais fraterna, fundada nas bandeiras da “paz e amor”, já não passava de um esboço desbotado diante do arrefecimento da Guerra Fria na cena política internacional e do modus vivendi pequeno-burguês hegemônico na cena doméstica. Os personagens desencantados suportam a realidade cada um a sua maneira, com evasões diversas ou novos engajamentos que negam os princípios anteriormente defendidos. Temos a hippie que fuma marijuana embalada por música oriental, o inconformado que se bandeia para a luta armada, a moça bonita que casa e se aninha no conforto doméstico...

Um dos personagens tornou-se professor de história de uma escola de primeiro ou segundo grau e protagoniza uma das cenas mais marcantes do filme. Em uma espécie de happening – performance com pretensões artísticas tão em voga naqueles anos – o professor entra em sala de aula e coloca sobre sua mesa uma tábua de carne, um enorme machado de açougueiro e uma lingüiça cumprida, sem gomos. Com gestos dramáticos, coloca o embutido sobre a tábua e diz para os alunos atônitos: “– A lingüiça é a história e o açougueiro é o historiador”, e, em ato contínuo, começa a segmentar, com golpes precisos de machado, a peça estendida e inerte. Não sei ao certo o quanto desta sinopse e desta cena específica fazem parte realmente do filme e qual a contribuição da elaboração da minha memória fantasiosa, afinal são quase três décadas que nos separam da projeção que assisti no ano de 1975.

Contudo, o filme e a cena explodiram espontaneamente na minha cabeça bem no meio da leitura da dissertação de mestrado de Ana Paula Pontes. Estamos diante destes mecanismos de associação anímica, sempre fora de controle, mas muitas vezes surpreendentes por sua carga de sentido e significados profundos. Compreendi que, assim como o filme, o texto de Ana Paula tinha como temática essencial a complicada relação entre a história vivida e a percepção que temos dela. Se aos nossos olhos são flagrantes as mudanças trazidas pelo tempo quando olhamos a história em perspectiva, muitas delas tão rápidas e numerosas que pensamos imediatamente em uma ruptura, por outro lado não há como negar a constatação racional da existência de múltiplas conexões entre um determinado fato histórico e eventos antecedentes. Um problema historiográfico, portanto, que tem incomodado os historiadores ao longo do tempo, para o qual buscam métodos que anulem ou ao menos minimizem os problemas decorrentes. Um problema que afeta diretamente as periodizações – os cortes abruptos na “lingüiça” contínua da história, como nos parece dizer metaforicamente o historiador performático do filme de Alain Tanner. Mas também um problema que diz respeito à própria possibilidade de se compreender e se falar com propriedade sobre a história, tarefa que pressupõe, em última instância, compreender as mudanças ocorridas ao longo do tempo.

Não é um incômodo particular do historiador, mas uma pedra no sapato de estudiosos não só das ciências humanas, mas das ciências em geral. A grande contribuição de Charles Darwin, por exemplo, foi a de conseguir formular uma hipótese para a evolução das espécies que articulasse de forma coerente as imensas transformações de indivíduos da mesma espécie quando separados por largo espaço de tempo e a grande proximidade existente entre um ser vivo e sua ascendência e descendência imediatas. A Teoria da Evolução darwinista – a mais antiga ainda aceita pela comunidade científica – consegue articular de forma satisfatória a continuidade e a ruptura com um par de conceitos: a hereditariedade, que garante a transmissão dos caracteres; e a seleção natural, que pressupõe a sobrevivência do mais apto na luta perpétua dentro do quadro geral da natureza. Para que a dupla conceitual funcione, Darwin introduz um diferencial fundamental em relação às idéias de Lamarck que o antecede e a quem deve tributos inegáveis: as mudanças genéticas não são diretamente produzidas pelo embate com o meio natural (visão mecanicista vinculada às teorias científicas do século XVII), mas frutos de uma propensão pela variedade própria da vida orgânica. Nesse sentido, as diferenças são produzidas continuamente pelos mecanismos de reprodução orgânica e apenas as mais adaptadas ao meio natural (que muda continuamente) sobrevivem e, através da hereditariedade, são transmitidas para a descendência. A teoria darwinista consegue assim fazer com que as duas visadas possíveis sobre a história da natureza – a panorâmica, que vê fundamentalmente as transformações e rupturas; e a focada, que enxerga a perpetuação do parentesco – participem, sem contradições, da mesma narrativa. O impressionante avanço da genética nos últimos anos só vieram confirmar a intuição genial de Charles Darwin, que prognosticou com grande grau de acerto a codificação genética nos seres vivos.

Não há aqui nenhuma pretensão em se fazer uma transposição mecânica de uma teoria de dois séculos atrás, mas nos interessa apresentar com clareza a questão fundamental que estamos nos defrontando, suas implicações na historiografia, os riscos e as possibilidades que dela derivam. De Darwin podemos pedir emprestado, mesmo que de forma metafórica, a introdução do acaso no entendimento da vida (no caso dele, orgânica, no nosso caso, cultural). Contudo, a admissão do acaso não significa, no caso do naturalista inglês, na negação da transmissão direta – a hereditariedade –, que continua a dar inteligibilidade ao parentesco, à filiação, à prole, etc. Em nosso caso, interessados na história da cultura, as questões em jogo mantêm grande analogia com as presentes nas hipóteses darwinistas, pois também precisamos compreender as grandes transformações dentro do quadro da estabilidade, como também precisamos acatar a presença do acaso, mas sempre levando em conta as conexões imediatas dos fenômenos.

Diálogos silenciosos entre a tradição clássica e o moderno

O título do trabalho de Ana Paul Pontes é muito sugestivo e muito feliz. “Diálogos silenciosos: arquitetura moderna brasileira e tradição clássica” aponta para uma conexão sutil entre fenômenos históricos aparentemente apartados por uma incompatibilidade estrutural entre visões de mundo. A autora, ao relatar durante o seu trabalho a presença de diversos princípios e procedimentos neoclássicos no raciocínio dos arquitetos modernos Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas, não se atribui um papel de desbravadora de uma nova senda. Ao contrário, apóia suas hipóteses com demonstrações de outros estudiosos que a antecederam, como é o caso de Edson Mahfuz, Carlos Eduardo Comas, Roberto Conduru, João Masao Kamita e outros. Não por coincidência, temos aqui pesquisadores do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, pólos que têm uma produção recente voltada para a revisão crítica da historiografia hegemônica até há pouco tempo no Brasil, que via no Moderno uma ruptura imensa com o Ecletismo reinante no período anterior. Entendo que, mesmo diante de alguns exageros e muitas hipóteses a serem ainda comprovadas por estudos mais sistemáticos, tais trabalhos colocaram o bom senso novamente em pauta, trazendo para o primeiro plano as óbvias relações do moderno brasileiro com o período imediatamente anterior, em especial com a tradição clássica importada por D. João VI e que tem na Escola de Belas Artes sua principal fonte difusora. Ou seja, os diálogos já não são mais silenciosos no que diz respeito à sua presença na historiografia e na crítica recentes.

O silêncio presente no título da dissertação de Ana Paula Pontes obviamente diz respeito aos mecanismos de ocultação (conscientes e inconscientes) presentes no discurso moderno inicial, principalmente no de Lucio Costa, e que foram repetidos ad nauseum, por várias décadas, até se transformarem em lugares-comuns. O constructo artificial de Lucio Costa, que supõe um vínculo “espiritual” da Arquitetura Moderna Brasileira com a tradição construtiva colonial, soterrava possíveis conexões com o passado neoclássico imediatamente anterior, conexões de resto trazidas à luz pelos diversos autores já citados. Mas para além das diversas implicações imediatas decorrentes do compromisso ideológico de Lucio Costa, o que me parece extremamente importante é apontar a brutal diferença entre o ambiente cultural de irradiação do moderno (a Europa Ocidental) e o ambiente local de chegada (o sudeste brasileiro), que abrigava em sua agenda questões exóticas para o ponto de vista europeu, como é o caso da identidade nacional.

Entendo que a hipótese de que a escolha de Lucio Costa pela linguagem moderna de Le Corbusier se deu pela identidade de ambos na busca de uma “expressão da identidade local” [hipótese de Comas, assumido pela autora, p. 53], é aceitável, mas insuficiente, pois negligencia fortes conexões da visão cultural de nosso mestre maior com as discussões culturais em curso no modernismo brasileiro e que envolviam matrizes intelectuais diversas, como o romantismo, o positivismo e até mesmo um darwinismo difuso. Vários desses pressupostos, presentes no ambiente cultural brasileiro e, por decorrência, nas proposições de Lúcio Costa, também habitavam a visão de mundo de Le Corbusier, o justifica de forma ainda mais segura e comprovada os motivos da escolha. O liame espiritual de Oscar Niemeyer com Aleijadinho, defendido por Lúcio Costa, é praticamente inexplicável sem levar em conta tais relações.

Mas não é correto cobrar da autora da dissertação o que ela não se propunha a fazer. Apenas cito isso pelo simples fato de que a suposição de uma identidade intelectual entre Lucio Costa e Le Corbusier, acaba por recalcar as diferenças brutais dos ambientes culturais de saída e chegada, o que equivaleria – se suportarmos ainda mais um pouco a metáfora darwinista – em desconsiderar o novo habitat na compreensão da evolução específica de um animal levado por alguma fatalidade para um outro território. Estamos aqui, talvez, diante do maior problema do trabalho de Ana Paula Pontes, que considera de modo insuficiente – obviamente, do meu ponto de vista – as especificidades locais, cuja característica marcante era a grande liberdade, graças às enormes limitações intelectuais de um ambiente provinciano de baixa densidade, com que assimilava “as últimas idéias de Paris”.

Se não há uma distinção de fundo entre o moderno daqui e o de acolá (e, em certo sentido, não há mesmo, pois não há a pureza em nenhum dos dois), é muito arguto o passo seguinte dado pela autora no sentido de comprovar que o Moderno na fonte também estava contaminado pelos humores neoclássicos. Ana Paula Pontes vai usar da autoridade de autores reconhecidos como Colin Rowe, Reyner Banham, Vicente Scully, Kenneth Frampton e William Curtis para comprovar que o moderno europeu e norte-americano mantinham contatos, negados pelos principais protagonistas, com o universo intelectual da tradição clássica e, principalmente, neoclássica. Como suas preocupações vão se focar principalmente nas figuras de Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas, Ana Paula Pontes vai priorizar as conexões clássicas e neoclássicas de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, reconhecidamente influências marcantes na trajetória dos mestres brasileiros. Sobre o arquiteto norte-americano, a autora diz o seguinte:

“Embora Wright tenha manifestado diversas vezes sua repulsa à arquitetura tradicional do ocidente, sua obra não estaria isenta de ser contaminada por ela. Isso é especialmente evidente em alguns de seus edifícios públicos, cujos amplos espaços internos exerceram reconhecida influência sobre Artigas”. [p. 103]

Sobre Le Corbusier, Ana Paula Pontes se municia das palavras de Argan, que critica com evidente impaciência a permanência de valores tradicionais na arquitetura do mestre suíço-francês:

“Ao termo do seu processo, Le Corbusier se encontra numa posição fundamentalmente clássica, é um classicismo sem frisos, ordens, colunas, mas igualmente certo dos valores fundamentais, em certo sentido, igualmente naturalistas: o equilíbrio dos volumes, o harmônico desdobrar-se das superfícies, a clareza das linhas simples e das proporções claras, a beleza do problema bem colocado são apenas o segredo de um novo acordo entre o homem e o mundo natural. Tudo, para ele, se torna fácil, lógico, espontâneo: talvez até demais”. [p. 31]

Tanto Le Corbusier como Frank L. Wright teriam, a contragosto ou de forma inconsciente, contrabandeado para dentro do raciocínio moderno, procedimentos projetuais ou mesmo valores intelectuais do ambiente tradicional ao qual se antepunham com notável vigor. A transmissão desses mesmos procedimentos e valores para a tradição que se forma a partir de suas lições seria praticamente inevitável: “Sendo Wright personagem vital da fundação de uma nova tradição – a arquitetura moderna – não é de se admirar que características entranhadas de modo amplo e profundo em sua obra continuassem a ser transmitidas aos seus sucessores, mesmo sendo essas vinculadas a um passado que o arquiteto ajudou a transpor”. [p. 113]

Niemeyer e Artigas, Grécia e Roma

Creio que esteja mais do que na hora de ressaltar algumas qualidades inegáveis da dissertação de Ana Paula Pontes: trata-se de um trabalho muito bem escrito, muito bem estruturado, que usa com rigor e precisão os argumentos alheios, convertendo-os em premissas poderosas na conclusão das questões mais pontuais aonde se desencadeia o enredo de sua montagem histórica. Diria até que estamos diante de uma maturidade pouco comum em dissertações de mestrado, o que nos leva a um grau de exigência que certamente transcende o exigido em tais circunstâncias. Mas como cada obra traz consigo o próprio tacão de medida, não podemos nos furtar a prosseguir as considerações levando em conta as expectativas criadas pelo próprio trabalho.

A relação de Niemeyer com a tradição clássica se daria – segundo a autora – através de ao menos duas conexões possíveis. A primeira, mais genérica e comum a praticamente todo o movimento moderno, seria com a arquitetura neoclássica do século XVIII, que sob a condução dos princípios iluministas vigentes, tinha rompido com as normativas impostas pelo Renascimento e prorrogados pelo Barroco. É justamente a negativa altiva de seguir o conjunto de cânones herdados dos séculos anteriores, fundados na convicção na harmonia cósmica e nos sistema neoplatônico de proporções geométricas imutáveis, que teria dado à arquitetura de Boullé, Ledoux e companheiros o estatuto de arte revolucionária, pois teria aberta a porta da renovação formal mais radical dos séculos subsequentes. A arquitetura neoclássica, autônoma em relação aos sistemas formais predeterminados (mesmo que herde sem maiores incômodos o arsenal de elementos isolados da tradição), coloca em primeiro plano uma nova ambição – a expressão do caráter – e um novo princípio de agenciamento formal – a composição. Uma arquitetura, portanto, que vai investir na valorização extrema do manuseio dos volumes, tratados com grande autonomia e sem os antigos compromissos com a totalidade. Niemeyer seria tributário de tal renovação estética, pois seu agenciamento formal é marcada pelo método compositivo, sempre buscando a expressão do caráter – a sensualidade racial, o hieratismo do poder central, a inserção na natureza brasílica, o contraste visceral entre objeto e paisagem, etc. O projeto mais emblemático dessa relação seria o Museu de Caracas, aonde Niemeyer teria explorado mais fortemente a “poética do sublime” [p. 59, usando argumentos de Argan sobre o Neoclássico], elaborando uma forma radicalmente expressiva, tensa e trágica, como o Cenotáfio para Isaac Newton, obra visionária não construída de Boullé.

A segunda relação de Oscar Niemeyer com a tradição clássica seria, no ponto de vista de Ana Paula Pontes, sua intimidade com a tradição clássica grega. Os Palácios de Brasília teriam no Templo Grego sua principal referência arquitetônica, transfigurada por uma linguagem absolutamente moderna na exploração das formas livres, mas também comprometida com a expressão do caráter monumental, adequado à convergência de poder central e identidade nacional que se daria na nova Capital Federal (a autora faz a lição de casa e coloca em cena o debate sobre o tema dentro das hostes modernas na década de 50, tendo Josep Lluis Sert como um de seus principais protagonistas). Dando vida a um novo conjunto de colunatas e propondo proporções muito distintas, Niemeyer se apropria do Templo Grego como modelo por sua marcada externalidade e relação harmoniosa com o ambiente natural, ponto de partida para a obtenção da desejada expressão do caráter elevado, que alia monumentalidade e nobreza. São tais procedimentos adotados e predileções assumidas que teriam dado aos Palácios de Brasília aquela sensação estranha de formas novas das quais emulam simulacros familiares.

A dupla relação com a tradição clássica presente na obra de Oscar Niemeyer teria sido transmitida por vínculos distintos: sua formação tradicional dentro da Escola de Belas Artes e o contato direto com a obra de Le Corbusier. Contudo, Ana Paula Pontes, ao estabelecer as conexões específica de Le Corbusier com o universo clássico, o faz via argumentos de Argan – que aponta o apego do mestre suíço-francês à “eterna beleza universal” [p. 31] – e Colin Rowe – que constata a utilização de princípios da proporção geométrica, comparando a Villa Stein corbusiana à Villa Foscari do renascentista Andrea Palladio. Ou seja, de um lado temos a conexão de Niemeyer com os templos da antigüidade grega e com os princípios de composição e expressão do caráter do neoclássico iluminista, enquanto que uma das possíveis “correias de transmissão” dos princípios clássicos, Le Corbusier, demonstrava apego à geometria harmônica pré-revolucionária da arquitetura palladiana. Não afirmo que haja nesta passagem uma incompatibilidade total, mas entendo que a argumentação sofre aqui alguns solavancos e que mereceria da autora alguma reflexão e uma resposta mais precisa e documentada.

Volto aqui ao problema metodológico de se abordar as permanências dentro de contextos de mudanças históricas. Elogiei anteriormente o uso da expressão “diálogos silenciosos”. Não gostaria de parecer que tiro com uma mão o que dei com a outra, mas talvez seja uma metáfora feliz mais por sua beleza, do que por sua precisão na transferência de significados, afinal ela é pouco consistente se considerarmos que um diálogo só é possível entre instâncias que se comunicam em um dado momento e em um dado lugar, o que não ocorre – evidentemente – entre fenômenos que estão apartados por longo tempo histórico e grandes distâncias geográficas. Contatos deste tipo só podem ter relações unidirecionais, pois não há como influenciar ou transformar fatos ontológicos (evidentemente podemos mudar nossa visão do passado, mas aí entramos em outros aspectos da discussão teórica, que não têm maiores implicações aqui). A metáfora de minha predileção para apontar uma conexão pouco visível entre fenômenos históricos apartados no tempo é falar em um “rio subterrâneo”, pois ele pressupõe um percurso e uma conexão que só existe em um único sentido.

Há algum interesse em comentar estas coisas se levarmos em consideração que só é aceitável, do ponto de vista de uma historiografia com preocupações materialistas, uma discussão sobre permanências históricas se conseguirmos estabelecer os elos de transmissão. Ana Paula Pontes mostra ter plena consciência de ao menos um dos aspectos do problema: a de que um mesmo conjunto de princípios e valores podem se metamorfosear, ao serem transmitidos para um outro contexto, em materialidades culturais formalmente distintas. Os “pressupostos racionalistas vinculam-se” – diz a autora – “aos valores iluministas corporificados na arquitetura neoclássica do século XVIII, e estão na origem tanto da arquitetura acadêmica do século XIX, quanto do Movimento Moderno do século XX, apesar das radicais diferenças de linguagem nos dois últimos” [p. 29]. Ou seja, os mesmos pais podem ter filhos muito diferentes, que devem ser necessariamente explicados pelo ambiente cultural de chegada, uma vez que o de partida é o mesmo.

Contudo, não é muito clara ao longo da dissertação uma preocupação equivalente em explicitar os riscos dos “falsos gêmeos”, ou seja, das materializações culturais formalmente próximas, mas cuja aparência é fruto do acaso. É célebre o conto de Jorge Luis Borges (uma das principais referências de O nome da Rosa, de Umberto Eco), que narra as aventuras de um personagem que encontra em locais diversos uma série de moedas perdidas e elabora uma narrativa sofisticada para explicar os fenômenos, mas que se mostra absolutamente incompatível com a realidade. Estamos aqui diante de um sério problema quando se trata de história da cultura, aonde elaborações mentais sem a devida comprovação documental podem relacionar com intimidade indevida os alhos aos bugalhos. Creio que esteja apontando para uma faceta mais prosaica – portanto menos “teórica” e “filosófica” – do ofício do historiador, que é comprovar as relações pressupostas documentando os elos de transmissão, que podem ser os mais diversos e variados – leitura, aprendizado formal, contato pessoal, viagens de estudo, etc.

Se realmente não é muito evidente a preocupação em documentar os elos de transmissão dos contatos de Niemeyer com o universo clássico – o que demonstra uma certa frouxidão metodológica que deveria ser enfrentada –, o mesmo não poderíamos dizer em relação às conexões de Artigas com a mesma tradição – o que demonstra que a autora tem plena consciência da questão. No meu entendimento, Ana Paula Pontes consegue tanto estabelecer as possíveis sobrevivências de princípios clássicos na obra madura de Artigas, como também elucidar os mecanismos de transmissão e as condições pessoais e institucionais de seu funcionamento. Diferentemente de Oscar Niemeyer, que adota como referência o Templo Grego e sua decorrente externalidade em confronto perene com a paisagem, Vilanova Artigas teria escolhido um “tipo” romano – o Fórum – que concentra sua maior expressividade em seu interior. Do ponto de vista da fruição estética, temos uma distinção antípoda, com o contraste extremo entre a contemplação e a vivência. Tal oposição permite à autora construir um conjunto de oposições entre os dois arquitetos brasileiros: a arquitetura de Niemeyer teria compromisso com a leveza, abstração do objeto harmônico acomodado, idealidade plástica extrovertida, etc.; a obra de Artigas, em contraposição, denotaria o peso, a tensão conflitiva do objeto impregnado de contradição, a sobriedade utilitária introvertida...

O tipo do Fórum Romano adotado por Artigas para a elaboração dos projetos maduros e, em especial, do edifício da FAU-USP, teria como base intelectual o espaço cívico priorizado pela tradição romana e revisitada pela visão neoclássica, que lhe dá um elevado estatuto moral e uma revigorada dimensão simbólica. A expressão do caráter dessas edificações de caráter coletivo resulta em edifícios de acolhida de grande público, aonde a importância de abrigo de manifestações cívicas resultam em espacialidades grandiosas. A Biblioteca Real de Paris, de Boullé, é a grande expressão das possibilidades desse encaminhamento. Por outro lado, a obra de Frank Lloyd Wright, obra que serve de referência para as primeiras investidas de Artigas, também vai se valer do mesmo tipo para projetar 3 de seus mais importantes edifícios de uso coletivo – Edifício Sede da Larkin, Templo Unitarista e Museu Guggenheim. Admirador da espiritualidade laica do arquiteto norte-americano, Artigas tinha especial interesse nas possibilidades transformadoras de um espaço interior dinâmico e agregador. A FAU-USP, no entendimento de Ana Paula Pontes, seria a releitura da tipologia clássica do Fórum Romano a partir das duas formulações apresentadas: a neoclássica de Boullé e a moderna de Frank L. Wright, ambas fundada na necessidade da expressão do caráter coletivo e cívico da edificação. No caso de Artigas ganha peso a conotação democrática e atividade educativa, motivadas pela visão política e ideológica do arquiteto brasileiro. Entendo que a argumentação de Ana Paula Pontes é mais eficaz em relação a Artigas, pois as conexões surgem com maior clareza, uma vez que são evidenciados os elos de transmissão e também o ambiente cultural de chegada.

Para finalizar, gostaria ainda de comentar que a autora tenta abrandar as seguidas referências às conexões entre os arquitetos modernos brasileiros e a tradição clássica ressaltando o quanto Artigas e Niemeyer possuem um raciocínio voltado para a expressão de uma técnica moderna, dentro de possibilidades formais absolutamente novas. Entendo que seja um mecanismo psicológico de acomodar possíveis e talvez inevitáveis críticas daqueles que colocaram nossos mestres em pedestais e santuários. Diria até que a autora, nascida e formada em São Paulo, só teve as possibilidades intelectuais, acadêmicas, psicológicas e mesmo anímicas de escrever este trabalho por estar agora radicada no Rio de Janeiro. Entendo como improvável um trabalho com este encaminhamento em uma Universidade paulista. Mas, creio que os cuidados extras da autora não sejam necessários, pois não há qualquer tipo de insídia em suas afirmações e em suas hipóteses. Mais do que isto: seu trabalho é muito bom, muito seguro, muito bem escrito e muito bem argumentado. Quem faz isso, não precisa se desculpar por nada.

O que entendo como uma possível limitação do alcance de seu trabalho estaria em outro lugar, mais precisamente na coordenação entre as permanências e as transformações. Penso que contar a história de permanências culturais alcançam uma maior amplitude quando temos como objetivo compreender o que já não é mais igual, ou seja, quando tentamos a partir das sobrevivências circunscrever e entender a transformação. Lembro que os irmãos Campos disseram que o novo é sempre um “desvio da tradição” – ao que eles chamaram de “canto paródico”. Tudo que é novo tem uma sobrevivência dentro de si, mas também tem o germe do novo, do nunca visto. O que significa que – se voltarmos a nossa imagem inicial da sala de aula do professor açougueiro – um historiador precisa ter a coragem de usar o cutelo.

nota

NA – resenha baseada na argüição pronunciada na banca de mestrado de Ana Paula Pontes Brasil, ocorrida no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-RJ, Rio de Janeiro, no dia 08 de outubro de 2004, e que contou também com as presenças dos Professores Doutores João Masao Kamita (orientador) e Roberto Conduru.]

sobre o autorAbilio Guerra, arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e do Unicentro Belas Artes, é editor do Portal Vitruvius

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Diálogos silenciosos

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Arquitetura moderna brasileira e tradição clássica

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