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ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. A cidade dos prazeres. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 034.01, Vitruvius, out. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.034/3177>.


No pós-guerra começou a crescer a desconfiança face à atitude moderna na arquitetura e no urbanismo que favoreceria o surgimento de teorias alternativas para novas disposições empenhadas em restaurar a credibilidade dos projetos e planos. Robert Venturi foi um desses teóricos que ofereceu elixires e formulou conceitos para encorajar arquitetos.

Para superar a crise, escreveu o tratado Complexidade e contradição na arquitetura, de 1966, e este manual de urbanismo Aprendendo com Las Vegas, de 1972. Ambos livros lidam com idéias incomuns mas correlatas. O primeiro, defende uma sensibilidade favorável às decisões complicadas, contraditórias e equívocas, apoiada num historicismo erudito. O segundo, amparado no conceito britânico da townscape – paisagem urbana – e estimulado pela pop art, insistiu em assimilar materiais insuspeitos: letreiros e outdoors.

Certos acontecimentos dessa época são sintomáticos. Em 1951, Heidegger leu Construir, habitar, pensar em encontro para discutir a cidade devastada e a sua reconstrução. Surpreenderia o argumento de que o mal-estar urbano resultava do ceticismo embutido na idéia contemporânea de habitar. O déficit das cidades não seria suprido com a fabricação de moradias standard, mas com a recuperação do sentido primordial que anima construí-las e habitá-las, com a retomada do vínculo original entre construir e habitar e com o conseqüente acordo entre homem e habitat: entre homem e meio.

Também em 1951, o 8º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Hoddesdon, atacou a arquitetura racional responsável pelos ásperos e cinzentos conjuntos habitacionais que constituiriam a experiência moderna, para propor, em seu lugar, um desenho comum conduzido pela atenção aos valores históricos e culturais condensados nos centros urbanos tradicionais. Defendia-se que a construção da cidade acrescentasse significados e emblemas aos novos espaços públicos e a integração da arquitetura ao existente. A partir daí a paisagem urbana tornaria-se decisiva para o projeto e a cidade deixaria de ser apenas um assunto técnico e quantitativo, reduzido a categorias funcionais isoladas. Encolhiam-se a utopia e a visão progressista da cidade para acatar valores essenciais ativados por esse existencialismo de raiz. O elogio à ágora – piazza – e à cabana primitiva, feitos primordiais da sociabilidade e abrigo humanos, ecoava.

Mas estes autores iriam mais longe, já que supuseram que, reconhecido o vernáculo primitivo, se admitiria o vernáculo comercial: o prestígio da arquitetura comercial mais ordinária.

Em 1960, Kelvin Lynch publicou A imagem da cidade, em 1961 Gordon Cullen reuniu seus diversos artigos da revista “Arquitectural Review” em capítulos do livro A paisagem urbana. Nesses livros a cidade, mais palpável do que nunca, tornou-se uma sucessão de imagens selecionadas por uma atenção fugaz, avessa ao juízo e cada vez mais ocupada com o trivial: calçadas, lugares de encontro, arquitetura sem arquitetos e manifestações artísticas populares ou medíocres.

Urbanistas conformados trocariam a análise pelo realismo rasteiro: a paisagem colonizada pelo carro e pela comodidade drive in. A descrição da cidade e da paisagem segundo o movimento do automóvel fora publicada em 1964 com o sugestivo título The view from the road (A paisagem vista da estrada), de D. Appleyard, K. Lynch e J. R. Myer. A nova apreensão da cidade já existia: uma paisagem percebida desde o pára-brisa do automóvel em movimento, um ponto de vista oportuno e privilegiado para entender a estrutura de Las Vegas: suas “strips” – corredores comerciais – construídas de acordo com essas “ordens complexas” e pouco evidentes tão gratas a Venturi.

Paisagens urbanas associadas ao lugar espontâneo, cotidiano, informal e – por que não? – ao “espalhamento” urbano e às “strips” de luzes publicitárias e acostamentos conquistavam espaço como assunto urbanístico na cultura americana.

Composto de duas partes, Aprendendo com Las Vegas tem na primeira o estudo de caso: a cidade dos prazeres, onde além de casamentos relâmpago e jogos de azar haveria o que aprender com alusões, “improvisações baratas”, “oásis em desertos de asfalto” e tótens informativos. Na segunda, se constrói a teoria das imagens referidas à arquitetura e absolve-se o ornamento do crime.

Como a imagem contradiz a forma pura, pelo mesmo motivo que o símbolo, a mensagem e o significado sufocam na forma moderna, os autores foram levados a inventar a dupla “duck” e “decorated shed”. Dois conceitos negligentes que corrigiriam o lapso representacional da arquitetura: o “pato” encarnaria o símbolo e o “galpão decorado” corresponderia ao edifício enfeitado. Comparam-se obras e períodos para explicar a preferência pela comunicação dos elementos decorativos, igualam-se o heróico e original ao feio e banal. Prefere-se a ambivalência: coisas familiares e não familiares unidas a elementos convencionais empregados de maneira não convencional: pop.

O livro também confirma como é difícil esquecer Roma e como é vantajoso o aval da história, por isso equipara o supermercado ao bazar, o shopping center ao comércio medieval e o estacionamento dos clientes à “evolução do espaço amplo desde Versailles”. O melhor é que homem e cidade persistam: Las Vegas evoca Roma, seus cassinos as igrejas e a Rota 66 a via Appia.

Os autores lembram pioneiros que desafiam o leste aristocrático, refinado como eles, a aceitar o deserto e a periferia dispersa da mesma maneira que o artista pop aceitaria a sucata. Mas agem como subversivos ou irresponsáveis ao não prever que suas teses, quando generalizadas, legalizam patéticas realidades urbanas sem conferir-lhes atributos: a pior arquitetura.

A máxima “aprende-se com tudo” que providenciou o título deste diário de viagem poderia ter os seguintes corolários: aprende-se mais com algumas coisas do que com outras e tudo pode encerrar algum dote artístico. A pertinência da arte não depende de disposição que confira atenção a tudo. O oportuno da lata de sopa de tomate Campbell’s, seu desconcerto estético, dependeram menos da atenção ao prosaico e mais de singular intuição e perspicácia. A façanha multiplicadora das massas é diminuir a proporção de Warhols ao exacerbar o número de urbanistas inexpressivos. Se o homem comum é limitado por sua estreita compreensão: em suas mãos tudo será vulgar. De nada adianta um urbanismo popular e tolerante referido a um mundo feio e banal que reproduza bizarrias e de nada serve sua interpretação mais ilustrada, se obscura para a maioria.

[texto originalmente publicado com o nome A cidade dos desejos, in Jornal de Resenhas nº 101, Folha São Paulo. São Paulo, 8 de novembro de 2003, p. 6.]

leia também

"Quando o pós-modernismo era uma provocação", de Silvana Barbosa Rubino, sobre o livro de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour

sobre o autorLuis Espallargas Gimenez é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

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