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FALBEL, Anat. Cidade e memória. Resenhas Online, São Paulo, ano 06, n. 070.03, Vitruvius, out. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.070/3101>.


“Ressurreição de realidades enterradas, reaparição do esquecido e do reprimido que como outras vezes na história pode desembocar em uma regeneração . As voltas às origens são quase sempre revoltas: renovações, renascimentos"

Octavio Paz, 1994

Em 1972 Octavio Paz (1914-1998) observou a crise dos valores da modernidade e a transformação de seus poderes de mudança, crítica e transgressão em repetições rituais e retóricas.

Para um homem de letras como Paz, a renovação que faria frente à pretendida universalidade dos sistemas elaborados no Ocidente, não seria encontrada entre os particularismos despertados pela modernidade européia, mas na recuperação de significados, ou conforme a sua metáfora poética: “as portas se abrem de par em par: o homem regressa [...] O bosque dos significados é o lugar da reconciliação”. (1)

Fruto do mesmo Zeitgeist, a obra escrita de Joseph Rykwert sugere algumas aproximações com as formulações de Paz no que diz respeito ao ocaso da modernidade. Como arquiteto e historiador da arquitetura Rykwert empreende uma busca pessoal pelos significados que poderiam fazer frente à uma “modernidade diagramática”.

Para Rykwert, o tradutor de Alberti, a cidade é sentida como gostaríamos que fosse a casa, e a casa constitui não somente o espaço da reconciliação das constantes essenciais da existência, mas também o lugar da memória que abriga nossas raízes e sonhos conforme escreveu Gaston Bachelard (2), uma das fontes de sua formação humanista. Portanto se para Paz, o poeta, “a poesia é a memória dos povos, e uma de suas funções é a transfiguração do passado em presença viva”, para Rykwert, o arquiteto, a casa – protótipo conceitual da cidade – é a memória que perpetua e recompõe no tempo, os homens que ali viveram e por ela passaram, suas vontades, pensamentos, leis e sentimentos.

Assim, o entendimento da A Idéia de Cidade de Joseph Rykwert, não pode ser dissociado da trajetória e da busca – ou do reencontro – do autor pela sua própria singularidade, assim como pelas raízes nas vivências espaciais do seu exílio. Nesse sentido, a sugestão do arquiteto Louis Kahn de que “uma cidade é o lugar onde um menino ao percorrê-la pode descobrir algo que lhe diga o que gostaria de fazer com a sua vida” (3) pode ser perfeitamente aplicada ao nosso autor pois a cidade da memória de Kahn, aquela que o levou à arquitetura assemelha-se aos espaços vividos por Rykwert.

Nascido em Varsóvia em 1926, nosso arquiteto cresceu no seio de uma família pertencente à próspera e cosmopolita classe média judaica e nesse aspecto suas lembranças movem-se não somente pelos espaços da intimidade familiar, mas também pelos parques, ruas e calçadas de sua cidade natal, cruzamento de comércio e cultura secular, cujo tecido urbano marcado por cem anos de dominação russa, desafiava arquitetos e políticos para a construção de uma cidade moderna. O cosmopolitismo do milieu confirma-se nas lembranças que ultrapassam fronteiras recordando outras paisagens européias como Marienbad e Abbazia, ou cidades litorâneas como Brighton e Bournemouth. No entanto, se a condição de estrangeiro foi parte da sua infância e adolescência o verdadeiro exílio inicia-se com a fuga de Varsóvia, poucos dias antes da rendição polonesa enquanto o fantasma do inenarrável ainda pairava sobre a Europa. A condição de exilado permanecerá, mas a memória necessita de ancoragem, e talvez por isso Londres, a cidade que o recebeu na infância, a mesma que acolheu a família em sua condição de refugiada, e onde ainda iniciou sua formação como arquiteto na Architectural Association, será o seu porto, a cidade de onde partiu, mas sempre retornou ao longo dos anos.

A idéia de cidade, o livro

A primeira versão do texto de Rykwert, foi publicada originalmente em 1963, em um número especial da revista Forum holandesa, editada pelo arquiteto Aldo Van Eyck. A revista tinha como cerne a formulação da “outra idéia” de Van Eyck, elaborada no contexto da representação holandesa do Team 10, perspectiva que vinha de encontro à visão esquemática do modernismo, ao mesmo tempo em que estimulava uma modernidade poética e multifacetada, propondo uma arquitetura e um urbanismo geradores de ambientes significativos, que pudessem refletir a identidade pessoal e coletiva do indivíduo em oposição às idéias e métodos preconizados pelo CIAM do período do entre guerras, voltados à solução de problemas funcionais.

Por outro lado, a formulação da “outra idéia”, ainda compreendia o conceito da configuração do “entre-lugar” (in-between), uma metáfora espacial que tinha como origem as elaborações do filósofo Martin Buber, que Van Eyck interpretava como qualquer relação entre o homem e seu semelhante, ou então entre o homem e as coisas, ou o espaço da reconciliação das polaridades e das ambivalências da mente humana: “um espaço feito à imagem do homem [...] no qual este último pudesse se reconhecer”. (4)

Se podemos afirmar que na literatura arquitetônica textos produzidos em um mesmo período tendem a refletir temas e obsessões similares, no cenário dominado pela arquitetura homogênea e diagramática das agências do governo para a reconstrução da Europa – o encontro entre dois arquitetos como Rykwert e Van Eyck, ou mesmo Louis Kahn, se fizeram na contramão de seus pares, a partir do entendimento de que as experiências do passado arquitetônico deveriam ser incorporadas ao pensamento projetual contemporâneo. Sob uma perspectiva moderna – e sem o risco das reproduções ecléticas – o passado fortificaria o presente pelo aprofundamento temporal e pela perspectiva associativa que Van Eyck definiria como “a interiorização do tempo ou o tempo que se fez transparente” (5) e Rykwert explicitaria através da impossibilidade de dissociação da arquitetura da história.

Em tal contexto, a publicação do ensaio de Rykwert a respeito da cidade etrusca-romana, no último número da Forum, confirmava através de um sólido estudo de caráter arqueológico e antropológico que a implantação e o desenho das cidades antigas do ocidente não eram fundamentadas em princípios funcionais ou utilitários, mas em uma visão cosmológica presente como um fenômeno universal entre todos os povos. Rykwert buscava demonstrar a concepção de cidade dos antigos romanos figurada como reflexo do universo, de modo que a fundação de cada novo assentamento constituía um ritual da afirmação da cosmogonia, ou da criação original do mundo. O ritual consistia basicamente no estabelecimento da intersecção de dois eixos o cardo e o decumanu que alinhados com os eixos primevos do universo pretendiam evocar – juntamente com o plano no qual se articulavam os edifícios institucionais e os monumentos da cidade – o drama, a estrutura e o equilíbrio cósmico, que por sua vez eram comemorados pela renovação do ritual que se dava em festividades recorrentes e regulares. O paralelismo encontrado nas civilizações mediterrâneas, no oriente e nas sociedades tribais da África e das Américas no tocante às correspondências entre assentamentos e cosmos, implicava para o autor na existência de um modelo fundamental do pensamento humano enraizado na estrutura biológica do homem, e cuja essência estaria na reconciliação do indivíduo com seu próprio destino.

Nesse sentido, a proposição de Rykwert de que qualquer moradia humana ou edifício comunal e como conseqüência a própria cidade constituía de certa forma uma anamnésia, ou a memória da fundação do centro do mundo inseria-se perfeitamente no âmbito maior da formulação da “outra idéia” de Van Eyck a partir das pesquisas deste último a respeito dos povos dogon no Sudão ou dos zuni no Novo México do mesmo modo que o entendimento dos rituais de passagem como o mundus ou o pomoerium, poderiam ser interpretados paralelamente ao conceito de “soleira”, entendido como a materialização do “entre-lugar”.

Comprometida com a revisão do movimento moderno, a hipótese levantada por Rykwert – de que toda forma apresentava um significado simbólico – questionava a eficácia da manipulação da estrutura física e estética da cidade moderna desvinculada dos significados simbólicos que teriam sido transformados ou perdidos com o aprofundamento da sua complexidade física e social, propondo um modelo que pudesse ser aplicado na contemporaneidade.

A crítica antifuncionalista nada mais era que a continuidade no plano da cidade dos argumentos levantados durante a metade da década de 1950 em textos como Meaning and Building e The Sitting Position-A question of method nos quais o autor propunha a recuperação do elemento inconsciente no homem e seus arquétipos como critério de viabilidade do espaço como habitat sugerindo que a história e a memória coletiva deveriam ser entendidas como método e instrumento de trabalho do arquiteto. Nesse aspecto, a atuação do historiador e particularmente do historiador da arte seria desvendar os significados contidos no ambiente de formas simbólicas em seu contexto social e temporal, a partir do discurso que os gerou.

O “aluno rebelde” e seus mestres

A análise de A Idéia de cidade de Rykwert permite identificar algumas das principais influências na formação intelectual de seu autor. A primeira delas vincula-se ao historiador e crítico Siegfried Giedion (1888-1968) que Rykwert conheceu durante o encontro do CIAM 7 em 1949. Desde Space, Time and Architecture (1941) Giedion já apontava para uma relação entre o passado e o presente na escritura da narrativa histórica, como condição fundamental do fazer a história. Em Mechanization Takes Command (1947) – – Giedion estendia suas hipóteses alertando para o papel do historiador no despertar do sentimento de continuidade histórica e destacando a importância das inter-relações entre os eventos históricos e seus desenvolvimentos para o entendimento das tendências e dos significados de um período. Entretanto, a maior incidência de Gideon sobre Rykwert diz respeito ao seu método – a sua “perspectiva tipológica” cujo exercício Rykwert iniciou nos anos 50 (Meaning and Building, The Sitting Position), continuando a empregar em textos como A Idéia de Cidade (1963), A Casa de Adão no Paraíso (1972) e A Coluna Dançante (1996).

Portanto assim como Giedion que fez uso de peças aparentemente insignificantes como uma fechadura, ou então um hábito como o banho, para demonstrar o processo de transformações de um tipo ao longo de vários períodos e campos, simultânea e panorâmicamente, Rykwert acompanha as transformações de uma cadeira, uma cidade, uma casa ou então uma coluna, revelando o seu compromisso com o reconhecimento da longa aculturação das formas arquitetônicas.

A segunda personalidade importante na formação de Rykwert é Rudolf Wittkower (1901-1971) cujas conferências ele começou a freqüentar ainda estudante secundário. O historiador de arte alemão parece ter sido o mais importante intermediário entre Rykwert e os historiadores de Warburg, cuja ascendência pode ser reconhecida no cuidado do uso das fontes originais, e na busca pelo sentido dos seus objetos nos escritos que lhes foram contemporâneos. No entanto, também devemos destacar o modelo metodológico do Principles of Architecture in the Age of Humanism cuja interpretação da arquitetura como a materialização de uma Weltanschauung – ou de uma relação entre arquitetura e sociedade – foi instrumental não somente para Rykwert, mas para uma geração de críticos de historiadores entre os quais Colin Rowe, Alan Colquhoun, Stanford Anderson, e historiadores como Reyner Banham e William Jordy, todos discípulos de Wittkower, e que durante as décadas de 1950 e 1960 questionaram a interpretação e os limites dos textos seminais do Movimento Moderno – International Style de H. R. Hitchcock e P. Johnson (1932), Pioneers of the Modern Movement, de N. Pevsner (1936), Space, Time and Architecture de S. Giedion (1941) – propondo a análise da arquitetura dos anos 20 e 30 no quadro mais complexo e significativo de uma cultura própria envolvendo as aspirações e os desenvolvimentos culturais, sociais e políticos da sociedade que a promoveu e projetou.

Conclusão: um método para o reexame da arquitetura moderna

Assim, é no contexto do modelo metodológico sugerido por Wittkower que poderíamos inserir a proposição de Rykwert a partir de sua interpretação do desenho das cidades pré-modernas como a materialização de uma visão cosmológica segundo os arquétipos que permitiram a legitimação da cultura urbana. Neste sentido, o conceito de anamnésia de Rykwert aproxima-se da hierofania de Mircea Eliade (6) mais uma entre as fontes da formação humanista de nosso autor que as dispõe de modo consciente para desenvolver uma história cultural a partir da qual de forma diacrônica e sincrônica busca “algum fundamento para [...] dar forma ao ambiente humano” (7). No entanto, se para Wittkower, o mestre, os conceitos de ordem em civilizações adiantadas como a nossa revelavam-se apartados do constructo de significados da cultura que os havia gerado, desvinculados da religião, e nesse aspecto devendo assumir uma nova ordem essencial, a partir da relação entre a natureza e o intelecto do homem, para Rykwert, o “aluno rebelde”: “perdemos todas as belas certezas acerca de como o universo funciona [...] [o que] nos obrigará a buscar o sentido dentro de nós mesmos, na constituição e na estrutura do ser humano”. (8)

Essa “busca do sentido dentro de nós mesmos” encontra-se subjacente no âmago da obra de Rykwert, apresentando-se como um fio que perpassa sua notável elaboração teórica que projeta num plano mais elevado o significado da arquitetura como resultado ou fruto de um diálogo interior que não exclui o transcendental, mas que se inspira numa filosofia da liberdade.

[o presente texto é uma versão resumida da introdução ao livro.]

notas1
PAZ, Octavio. “La casa de la presencia”. In: Obras Completas Cidade do México, Fondo de Cultura Económica, 1994.

2
BACHELARD, Gaston. La terre et les raveries du repos. Paris, Librairie José Corti, 1963.

3
SCULLY, Vincent J. Louis Kahn. Nova York, George Braziller, 1962.

4
STRAUVEN, Francis. Aldo Van Eyck. The shape of relativity. Amsterdam, Architectura & Natura, 1998.

5
VAN EYCK, Aldo. “La Interioridad del tiempo”. In: El significado em arquitectura. Org C Jencks e G. Baird. Madri, Hermann Blume, 1975.

6
ELIADE, Mircea. El mito del eterno retorno: arquétipos y repetición. Buenois Aires, Emecé, 1968.

7
RYKWERT, Joseph. A idéia de cidade: a antropologia da forma urbana em Roma, Itália e no Mundo Antigo. Coleção Estudos nº 234. São Paulo, Perspectiva, 2006.

8
Idem, ibidem.

sobre o autorAnat Falbel, engenheira, doutora em arquitetura pela FAU-USP, professora do IFCH UNICAMP.

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